terça-feira, 23 de setembro de 2025

A ESCOLA ESPÍRITA AMERICANA[1]

 


Allan Kardec

 

Algumas pessoas perguntam por que a Doutrina Espírita não é a mesma no antigo e no novo continentes e em que consiste a diferença. É o que tentaremos explicar.

Como se sabe, as manifestações ocorreram em todos os tempos, tanto na Europa quanto na América, e hoje, que nos damos conta da coisa, lembramos uma porção de fatos que tinham passado despercebidos, muitos dos quais consignados em escritos autênticos. Mas esses fatos eram isolados; nestes últimos tempos eles se produziram nos Estados Unidos numa escala bastante ampla para despertar a atenção geral dos dois lados do Atlântico. A extrema liberdade existente nesse país favoreceu a eclosão das ideias novas, e é por isto que os Espíritos o escolheram para primeiro teatro de seus ensinos.

Ora, acontece muitas vezes que uma ideia surge num país e se desenvolve em outro, como se vê nas ciências e na indústria. Sob esse aspecto, o gênio americano deu suas provas e nada tem a invejar à Europa; mas, se excede em tudo o que concerne ao comércio e às artes mecânicas, não se pode recusar à Europa o das ciências morais e filosóficas. Em consequência dessa diferença no caráter normal dos povos, o Espiritismo experimental ocupava seu espaço na América, enquanto a teoria e a filosofia encontravam na Europa elementos mais propícios ao seu desenvolvimento. Assim, foi lá que nasceu, conquistando, em poucos anos, o primeiro lugar. Ali os fatos inicialmente despertaram a curiosidade; porém, uma vez constatados e satisfeita a curiosidade, logo se cansaram das experiências materiais sem resultados positivos. Já o mesmo não ocorreu desde que se desdobraram as consequências morais desses mesmos fatos para o futuro da Humanidade. A partir daí o Espiritismo tomou posição entre as ciências filosóficas; marchou a passos de gigante, a despeito dos obstáculos que lhe foram suscitados, porque satisfazia às aspirações das massas, porque prontamente compreenderam que vinha preencher um imenso vazio nas crenças e resolver o que até então parecia insolúvel.

A América foi, pois, o berço do Espiritismo, mas foi na Europa que ele cresceu e fez suas humanidades. Isto é motivo para a América ficar enciumada? Não, porque noutros pontos ela levou vantagem. Não foi na Europa que as máquinas a vapor surgiram? E não foi na América que encontraram a sua aplicação prática? A cada um o seu papel, conforme suas aptidões, e a cada povo o seu, segundo seu gênio particular.

O que particularmente distingue a escola espírita dita americana da escola europeia é a predominância, na primeira, da parte fenomênica, à qual se ligam mais especialmente, e na segunda, a parte filosófica. A filosofia espírita da Europa espalhou-se prontamente, porque ofereceu, desde o princípio, um conjunto completo, mostrando o objetivo e ampliando o horizonte das ideias; incontestavelmente, é a que hoje prevalece no mundo inteiro. Até hoje os Estados Unidos pouco se afastaram de suas ideias primitivas; significará isto que, isolados, ficarão na retaguarda do movimento geral? Seria injuriar a inteligência desse povo. Aliás, os Espíritos lá estão para o impelir na via comum, ensinando ali o que ensinam alhures; triunfarão pouco a pouco das resistências que poderiam nascer do amor-próprio nacional. Se os americanos repelissem a teoria europeia, porque vem da Europa, aceitá-la-ão quando surgir em seu meio, pela própria voz dos Espíritos; cederão ao ascendente, não da opinião de alguns homens, mas ao controle universal do ensino dos Espíritos, esse poderoso critério, como o demonstramos em nosso artigo sobre a autoridade da doutrina espírita; é apenas uma questão de tempo, principalmente quando houverem desaparecido as questões pessoais.

De todos os princípios da doutrina, o que encontrou mais oposição na América – e por América deve entender-se exclusivamente os Estados Unidos – foi o da reencarnação. Pode mesmo dizer-se que é a única divergência capital, prendendo-se as outras mais à forma do que ao fundo, e isto porque ali os Espíritos não a ensinaram. Expliquemos as razões disto. Os Espíritos procedem em toda parte com sabedoria e prudência; para se fazerem aceitar, evitam chocar muito bruscamente as ideias preconcebidas. Não irão dizer de chofre a um muçulmano que Maomé é um impostor. Nos Estados Unidos o dogma da reencarnação teria vindo chocar-se contra os preconceitos de cor, tão profundamente arraigados naquele país; o essencial era fazer aceitar o princípio fundamental da comunicação do mundo visível com o mundo invisível; as questões de detalhe viriam a seu tempo.

Ora, é indubitável que esse obstáculo acabará por desaparecer, e que um dos resultados da guerra civil será o gradativo enfraquecimento de preconceitos, verdadeira anomalia numa nação tão liberal.

Se, de maneira geral, a ideia da reencarnação ainda não é aceita nos Estados Unidos, ela o é individualmente por alguns, se não como princípio absoluto, ao menos com certas restrições, o que já é alguma coisa. Quanto aos Espíritos, sem dúvida julgando que o momento é propício, começam a ensinar com cautela em certos lugares e sem rodeios em outros. Uma vez levantada, a questão percorrerá longa distância. Aliás, temos sob os olhos comunicações já antigas, obtidas naquele país, nas quais, sem estar formalmente expressa, a pluralidade das existências é a consequência forçada dos princípios emitidos; aí se vê brotar a ideia. Assim, não há que duvidar que, em pouco tempo, o que hoje ainda se chama escola americana fundir-se-á na grande unidade que se estabelece por toda parte.

Como prova do que avançamos, citaremos o artigo seguinte, publicado no jornal União, de San Francisco, e um extrato da carta que o acompanhou.

Senhor Allan Kardec,

Embora não tenha a honra de ser vossa conhecida, tomo, como médium, a liberdade de vos enviar a notícia anexa, que esses senhores do jornal resumiram um pouco. Contudo, tal como está, muitas pessoas parecem desejar mais. Assim, todos os vossos livros se espalham e logo nossos livreiros terão de fazer novos pedidos...

Recebei etc.

Pauline Boulay

 

NOTÍCIA SOBRE O ESPIRITISMO

 

Basta exprimir em voz alta ideias que nem todos compreendem para se ser tachado de exaltado, extravagante e louco. Não é preciso ser uma literata para escrever o que nos ditam a alma e o coração.

Um espírito forte dizia a uma senhora médium:

         Como vós, que sois inteligente, podeis acreditar em Espíritos invisíveis e na pluralidade das existências?

         Respondeu a dama: Talvez porque eu seja inteligente é que creio nisto; o que sinto me inspira mais confiança do que o que vejo, uma vez que o que vemos nos engana algumas vezes; o que sentimos jamais nos engana. Sois livre para não acreditar. Os que creem na pluralidade das existências não são maus e são mais desinteressados que os que não creem; os incrédulos os tratam de loucos, mas isto não prova que digam a verdade; ao contrário. Duvidar do poder de Deus é ofendê-lo; negar o que existe além do que podemos apalpar é um ultraje dirigido ao Criador.

Temos o hábito, quando nos acontece algo de extraordinário, a atribuí-lo ao acaso. Pergunto: o que é o acaso? O nada, responde a voz da verdade. Ora, não podendo o nada produzir algo, o que existe nos vem de uma fonte produtiva. Seria muito justo pensar que o que acontece independentemente de nossa vontade é obra da Providência, dirigida pelo Senhor de nossos destinos.

Seja o que disserdes, seja o que façais, espíritos fortes, jamais destruireis esta doutrina, que sempre existiu. Como a ignorância das almas primitivas não lhes permite compreendê-la em toda a sua extensão, imaginam que depois desta vida tudo está acabado. É um erro! Nós, médiuns, mais ou menos adiantados, acabaremos por vos convencer.

Não só o Espiritismo é uma consolação, mas ainda desenvolve a inteligência, destrói todo pensamento de egoísmo, de orgulho e de avareza, põe-nos em comunicação com os que nos são caros e prepara o progresso, progresso imenso que, insensivelmente, destruirá todos os abusos, as revoluções e as guerras.

A alma tem necessidade de reencarnar para se aperfeiçoar; numa única vida material não pode aprender tudo quanto deve saber para compreender a obra do Todo-Poderoso. O corpo não passa de um envoltório passageiro, no qual Deus envia uma alma para se aperfeiçoar e sofrer as provas necessárias ao seu adiantamento e à realização da grande obra do Criador, a que somos chamados a servir, quando tivermos sofrido nossas provas e adquirido todas as perfeições. Todas as nossas celebridades contemporâneas são outras tantas almas que progrediram pela renovação das encarnações; muitas dentre elas são médiuns escreventes, gênios que trazem, em cada existência nova, os progressos da ciência e das artes.

A lista dos homens de gênio aumenta todos os anos. São outros tantos guias que Deus coloca em nosso meio para nos esclarecer, nos instruir, numa palavra, nos ensinar o que ignoramos e que é absolutamente necessário que saibamos; eles nos mostram a chaga social, procuram destruir os preconceitos, põem à luz e aos nossos olhos todo o mal produzido pelo egoísmo e pela ignorância. Esses gênios são animados por Espíritos superiores; fizeram mais pelo progresso e pela civilização que toda a vossa pirotecnia, e fazem derramar mais lágrimas de ternura e de reconhecimento que todos os vossos feitos de armas.

Refleti, pois, seriamente no Espiritismo, homens inteligentes, pois nele encontrareis grandes ensinamentos. Não há charlatanismo nesta lei divina: tudo aí é belo, grande, sublime; ela apenas tende a conduzir-nos à perfeição e à verdadeira felicidade moral.

O livro escrito pelos médiuns, ditado por Espíritos superiores e errantes, é um livro de alta filosofia e de uma instrução tão profunda quanto etérea; trata de tudo. É verdade que nem todos estão ainda preparados para esta crença e, para compreendê-la, é necessário que a alma já tenha reencarnado várias vezes.

Quando todo o mundo compreender o Espiritismo, nossos grandes poetas serão mais apreciados e lidos com atenção e respeito. Todos os nossos literatos serão compreendidos por todos os povos e admirados sem inveja, porque serão conhecidas as causas e os efeitos.

O estudo da Ciência é a mais nobre das ocupações; o Espiritismo é a sua divindade. Por ele associamo-nos ao gênio e, como disse um dos nossos cientistas, depois do homem de gênio vem o que sabe compreendê-lo. A instrução faz do Espírito o que um hábil joalheiro faz da pedra bruta: dá-lhe o polimento, o brilho que encanta e seduz, realçando-lhe o valor. A alma não tem forma propriamente dita; é uma espécie de luz que difere por sua intensidade, conforme o grau de perfeição adquirida. Quanto mais a alma progride, tanto mais luminosa é a sua cor.

Quando todos forem médiuns, podereis entreter-vos com os Espíritos, como já o fazemos; eles vos dirão que são mais felizes que nós. Eles nos veem, nos escutam, assistem às nossas reuniões, conversam com nossa alma durante o sono, transportam-se e penetram por toda parte onde Deus os envia.

Pauline Boulay

 

Nota – O princípio da reencarnação acha-se igualmente num manuscrito que nos foi enviado de Montreal (Canadá), e do qual falaremos em breve.



[1] REVISTA ESPÍRITA – maio/1864 – Allan Kardec

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