André Biernath - Role, da BBC News Brasil em Londres - 18
agosto 2025
Sonolência, falta de fome ou de
sede, pele seca e azulada, respiração barulhenta... A chegada da morte pode ser
marcada por uma série de sinais — e saber identificá-los é uma das chaves para
um fim mais suave e tranquilo.
Se a morte é a única certeza que
temos na vida, chama a atenção uma generalizada falta de conhecimento sobre o
que realmente acontece quando o fim está próximo.
Especialistas em cuidados
paliativos ouvidos pela BBC News Brasil dizem que até mesmo médicos e outros
profissionais de saúde muitas vezes não sabem como agir nesse momento e apelam
a procedimentos que são supérfluos, que mais atrapalham que ajudam.
O processo conhecido como fase
ativa da morte acontece durante os últimos dias, ou as últimas horas, de uma
pessoa.
Obviamente, ele não é igual para
todo mundo — e está geralmente relacionado às enfermidades de longo prazo, como
o câncer e a demência, em que a pessoa passa meses, ou até anos, fazendo
tratamentos, até chegar ao ponto em que os órgãos e sistemas que constituem o
organismo não são mais capazes de manter a vida adiante.
Entenda a seguir quais são as
manifestações mais comuns de uma morte iminente, por que elas acontecem e o que
pode ser feito para que esse evento seja suave, com poucos incômodos e
significativo para que vai (e também para quem fica).
O desligar da terra
A médica Ana Claudia Quintana
Arantes, referência nos estudos sobre o envelhecimento, os cuidados paliativos
e a morte no Brasil, faz uma analogia didática, quase poética, entre os
estágios finais da vida e os quatro elementos clássicos da natureza: terra,
água, fogo e ar.
Seguindo a linha de raciocínio
dela, a primeira etapa da morte ativa é simbolizada pela terra, uma
representação do material, do físico, daquilo que a gente toca e pisa.
A terra é o primeiro elemento
que vai embora. Dá um cansaço estranho, que pesa nos olhos, diz a
especialista, autora do livro “A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver” (Editora
Sextante).
Há também um peso no corpo.
Por mais magrinho que esteja, você não consegue movimentar um braço, não
consegue se virar na cama. Você precisa de ajuda, e quando essa ajuda vem, ela
percebe que esse corpo, mesmo que frágil, mesmo que pequenino, pesa muito, pesa
tanto quanto o mundo, complementa Arantes, que também atua no Hospital
Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
É comum então que a pessoa fique
mais reclusa, sonolenta e entre num estado de inconsciência por alguns
momentos.
Aqui, o corpo dela está
começando a se desligar aos poucos, então alguns órgãos ou sistemas funcionam
mais devagar e deixam de ser relevantes.
O médico Arthur Fernandes,
secretário-geral da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, compara esse
momento ao apagar das luzes de um prédio, ou ao desligamento das máquinas que
compõem uma fábrica.
Uma das primeiras partes do
corpo a entrar nessa marcha lenta é o sistema digestivo.
A pessoa que entrou na fase
ativa da morte tem naturalmente menos necessidade de comer ou beber água. E ela
não sente mais fome ou sede como antes.
Com isso, a necessidade de ir ao
banheiro também diminui aos poucos.
Outro sinal típico nesse momento
é a alteração da pele, que se torna cada vez mais pálida e gelada, além de
sofrer eventuais inchaços.
A pele também pode ganhar um tom
azulado ou arroxeado, principalmente nas extremidades, como mãos e pés, além
dos lábios. Isso é normal e indica que a circulação sanguínea também entrou num
ritmo mais lento.
Mesmo que a pessoa esteja
sonolenta, os médicos encorajam que familiares e amigos tenham momentos para
conversar e tocar suavemente nas mãos e nos braços do ente querido.
Estudos indicam que sentidos
como a audição e o tato continuam ativos, e esse contato pode representar uma
fonte de conforto.
A água que se esvai
Seguindo a linha de raciocínio
de Arantes, a segunda onda de transformações que acontece no corpo está
relacionada à água.
O corpo
resseca, então os olhos, os lábios e a boca ficam secos. A saliva, escassa,
lista a médica.
Segundo a especialista, na
maioria das vezes não há necessidade de aplicar soro na veia para reidratar o
corpo.
Mas é possível aumentar o
conforto e o bem-estar da pessoa prestes a partir com algumas medidas básicas,
como molhar os lábios com algodão ou pano umedecido, aplicar colírio nos olhos
e passar hidratantes na pele.
É importante que esses cuidados
sejam sempre discutidos com os profissionais da saúde, para que todos estejam a
par do que está sendo feito.
Outra preocupação comum durante
a morte ativa tem a ver com a dor. Será que morrer dói?
Os especialistas dizem que, sim,
algumas pessoas têm uma piora nos incômodos físicos, e alguns dos remédios
usados deixam de funcionar como antes.
Nas últimas horas de vida,
essa dor pode descompensar e o paciente fica agitado. Além do desconforto,
também pode acontecer falta de ar, enjoo, vômitos..., responde Fernandes.
Mas os profissionais de saúde
podem prescrever medicamentos mais fortes, como a morfina, que dão alívio.
Ou seja, a dor é uma
possibilidade no fim. Mas a medicina tem caminhos para lidar com ela.
Tanto os profissionais da
saúde quanto a família precisam saber dessas possibilidades e deixar tudo
organizado, como ter por perto as doses de medicações e saber as melhores
formas de aplicá-las, para evitar sintomas muito desagradáveis, complementa
o médico.
A melhora da morte
Há também uma etapa da morte
ativa que pode ser simbolizada pelo fogo.
Esse é o momento em que a chama
da vida ganha o seu último fôlego.
Trata-se de um período comumente
chamado de "melhora da morte" ou "a visita da saúde".
Aqui, os sintomas que a pessoa
estava sentindo costumam melhorar, para a surpresa de quem acompanha a
situação.
Ela sai daquele estado de
letargia e inconsciência, volta a se comunicar, quer comer e parece mais
animada, como se o quadro tivesse melhorado de forma repentina.
Mas Fernandes pondera que essa
mudança não é uma coisa da água para o vinho: um paciente acamado por muito
tempo não vai andar de novo, por exemplo.
Mas a volta de uma chama um
pouco mais forte pode representar uma oportunidade única.
O paciente que comia muito
pouco pode agora comer mais. Ele pode experimentar uma comida que gosta muito, para
sentir o sabor. Ele sai daquela sonolência para rever uma pessoa querida,
destaca o especialista.
Esse pode ser o momento em
que ele consegue se despedir, dizer que ama, receber perdão e pedir desculpas
para alguém, complementa ele.
Não raro, os familiares e a
própria equipe de saúde querem usar esse momento para fazer exames ou
intervenções, numa tentativa de ampliar o tempo de vida daquela pessoa.
Mas, segundo Arantes, essas
medidas geralmente são supérfluas — e ocupam o tempo valioso que seria usado
para encontros e despedidas.
Esse tempo deveria ser
utilizado para exercer a autoridade, a autonomia de deixar a sua marca, a forma
de estar no mundo, para as pessoas que você ama, aponta ela.
Esse é o momento de fazer
declaração de amor. De pedir perdão, de perdoar. E reconhecer que nem sempre
foi possível fazer o que se queria ter feito.
Essa é a chance expressar a
sua essência, sem nenhuma reserva, reflete ela.
A melhora da morte costuma durar
pouco tempo — e logo a chama volta a ficar fraca de novo.
O sopro da vida
Para fechar a lista dos
elementos elaborada por Arantes, chegou a hora de entender como o ar se encaixa
nessa história.
E ele simboliza uma das
alterações mais aparentes do corpo na hora da morte.
A respiração sai do padrão que
estamos acostumados. Às vezes, ela fica rápida e curta. Depois, longa e
pausada. Às vezes, até parece que a pessoa deixou de respirar.
Outros eventos comuns nessa
etapa é permanecer com a boca aberta, pelo relaxamento dos músculos que seguram
a mandíbula, e uma respiração bem barulhenta, como se a pessoa estivesse
roncando alto.
Isso acontece porque, naquele
processo de desligamento das funções vitais, o corpo acumula alguns fluidos na
garganta, que geram um ruído quando o ar passa por ali.
Esse sinal pode até ser incômodo
para quem está vendo aquela cena, mas, segundo os médicos, não representa
necessariamente uma aflição para quem está à beira da morte.
Em alguns casos, os
profissionais da saúde podem indicar uma aspiração desses fluidos ou usam
remédios que melhoram esse fluxo de entrada e saída do ar.
Arantes reflete que, quando
nascemos, a primeira coisa que fazemos é respirar, ou puxar a primeira leva de
ar que enche nossos pulmões.
E um de nossos últimos atos em
vida é fazer justamente o movimento contrário: devolver o ar, numa expiração
final.
Você pode entregar esse sopro
sagrado que te foi dado quando nasceu. Se você fez bom uso desse sopro, se você
teve uma vida que valeu a pena ser vivida, essa última expiração é um presente,
acredita ela.
Daí esse fôlego cessa. E você
tem um silêncio, relata a médica.
Nos segundos depois da última
expiração, o coração para de bater. O cérebro apaga. E as células do corpo que
ainda estavam ativas desligam aos poucos.
A vida daquele indivíduo chegou
ao fim.
Arantes orienta às pessoas que
testemunharam esse momento que informem os profissionais de saúde, caso eles
não estejam por perto, mas não há necessidade de fazer tudo com pressa.
Permaneça por um momento
nesse instante sagrado, que parece até fora do tempo normal, sugere ela.
Aquela pessoa que você ama
parou de respirar, está livre da matéria. Ela deixa de existir naquele corpo e
passa a viver no coração de todo mundo que a ama.
Já para Fernandez, a porção
final da vida não deveria ser tratada como algo tão extraordinário — e é vital
que a gente fale mais sobre isso.
É importante que as pessoas
conversem sobre esse assunto em casa, para que a gente construa cada vez mais
uma cultura que abraça a vida sem excluir a morte, pensa ele.
Até porque a morte não é o
contrário da vida. A morte é o antônimo de um processo que a gente chama de
nascimento.
Já a vida é tudo aquilo que
está incluído dentro desse tempo bonito que a gente tem pra viver, conclui
ele.
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