Allan Kardec
Médico da marinha e viajante
naturalista, falecido no dia 11 de dezembro de 1858, com 58 anos de idade.
Evocado a 24 do mesmo mês por um de seus amigos, o Sr. Sardou.
1. Evocação.
– Eis-me aqui. Que desejas?
2. Qual é o teu estado atual?
– Erro como os Espíritos que deixam a Terra e que desejam
avançar na senda do bem. Buscamos, estudamos e depois escolhemos.
3. Tuas ideais sobre a natureza do homem modificaram-se?
– Muito. Bem podeis avaliar.
4. Que pensas agora do gênero de vida que levaste durante a
existência que acabas de deixar aqui na Terra?
– Estou contente porque trabalhei.
5. Para o homem, acreditavas que tudo se acabasse no túmulo.
Daí o teu epicurismo e o desejo que algumas vezes exprimias de viver bastante
para aproveitar a vida. Que pensas dos vivos que têm apenas essa filosofia?
– Eu os lamento, embora isso lhes sirva; com tal sistema
podem apreciar friamente tudo quanto entusiasma os outros homens,
permitindo-lhes julgar de maneira sadia muitas coisas que fascinam os crédulos.
Observação – É a opinião pessoal do Espírito.
Nós a damos como tal e não como máxima.
6. O homem que se esforça moralmente, mais que
intelectualmente, age melhor do que aquele que se liga sobretudo ao progresso
intelectual e negligencia o progresso moral?
– Sim. O progresso moral é mais importante. Deus dá o
espírito como recompensa aos bons, enquanto o moral deve ser adquirido.
7. Que entendes por espírito que Deus dá?
– Uma vasta inteligência.
8. Entretanto há muitas pessoas más que possuem uma vasta
inteligência.
– Já o disse. Perguntastes o que era preferível buscar
adquirir e eu vos disse que o moral era preferível. Mas quem trabalha o
aperfeiçoamento de seu Espírito pode adquirir um alto grau de inteligência.
Quando entendereis com facilidade?
9. Estás completamente desprendido da influência material do
corpo?
– Sim. Aquilo que sobre isso vos foi dito não compreende
senão uma classe da Humanidade.
Observação – Aconteceu muitas vezes que
Espíritos evocados, mesmo alguns meses depois de sua morte, declararam
encontrar-se ainda sob a influência da matéria. Entretanto, todos eles tinham
sido homens que não haviam progredido moralmente, nem intelectualmente. É a
essa parte da Humanidade que se refere o Espírito Paul Gaimard.
10. Tiveste na Terra outras existências além da última?
– Sim.
11. Esta última é a consequência da precedente?
– Não; houve um grande intervalo entre elas.
12. Malgrado esse longo intervalo, não poderia haver,
entretanto, uma certa relação entre essas duas existências?
– Se me fiz entender, cada minuto de nossa vida é consequência
do minuto que o precede.
Observação – O Dr. B..., que assistia a esta
reunião, externou a opinião de que certas tendências, certos instintos, por
vezes despertados em nós, bem poderiam ser o reflexo de uma existência
anterior. Citou vários fatos perfeitamente constatados em mulheres jovens que,
durante a gravidez, se viram impelidas a atos ferozes, por exemplo, uma que se
lançou sobre o braço de um açougueiro e lhe deu grandes dentadas; outra que
cortou a cabeça de uma criança e ela mesma a levou ao comissário de polícia;
uma terceira que matou o marido, cortou-o em pedacinhos, salgou-o e dele se
alimentou durante vários dias. O médico perguntou se aquelas mulheres não
haviam sido antropófagas numa existência anterior.
13. Ouviste o que acaba de dizer o Dr. B...; nas mulheres
grávidas, os instintos que conhecemos sob o nome de desejos não resultariam de
hábitos contraídos numa existência anterior?
– Não; resultam de uma loucura transitória; de uma paixão
no seu mais alto grau. O Espírito fica eclipsado pela vontade.
Observação – O Dr. B... faz notar que os médicos consideram
realmente esses fatos como casos de loucura transitória. Nós compartilhamos
essa opinião, mas não pelos mesmos motivos, pois as pessoas que não estão
familiarizadas com os fenômenos espíritas geralmente são levadas a atribuí-los
exclusivamente às causas que conhecem. Estamos persuadidos de que devemos ter
reminiscências de certas disposições morais anteriores; diremos até que é
impossível que seja de outro modo, pois o progresso não se realiza senão
gradualmente. Mas aqui não é o caso, e o que o prova é o fato de as pessoas
mencionadas não demonstrarem nenhum sinal de agressividade fora de seu estado
patológico; evidentemente, nelas só havia uma perturbação momentânea das
faculdades morais. Reconhece-se o reflexo das disposições anteriores por outros
sinais, de certa maneira inequívocos, e que desenvolveremos em artigo especial,
apoiado pelos fatos.
14. Em tua última existência houve simultaneamente progresso
moral e intelectual?
– Sim; sobretudo intelectual.
15. Poderias dizer-nos qual foi o gênero de tua penúltima
existência?
– Oh! Fui obscuro. Tive uma família que tornei infeliz;
mais tarde o expiei amargamente. Mas por que me perguntais? Isso já passou e
agora me encontro em novas fases.
Observação – P. Gaimard morreu celibatário,
com 64 anos de idade. Mais de uma vez lamentou não haver constituído um lar.
16. Esperas reencarnar dentro de pouco tempo?
– Não; antes eu quero pesquisar. Gostamos desse estado de
erraticidade porque a alma tem mais domínio de si; o Espírito tem mais
consciência de sua força; a carne pesa, obscurece e entrava.
Observação – Todos os Espíritos afirmam que no
estado de erraticidade pesquisam, estudam e observam, a fim de poderem
escolher. Não está aí a contrapartida da vida corporal? Muitas vezes não
erramos durante anos, antes de nos fixarmos na carreira que julgamos mais
adequada à nossa caminhada evolutiva? Por vezes não mudamos, à medida que
avançamos em idade? Cada dia não é empregado na busca do que faremos no dia
seguinte?
Ora, o que representam as diferentes existências corporais
para os Espíritos, senão fases, períodos, dias da vida espírita que, como
sabemos, é a vida normal, já que a vida corporal é transitória e passageira?
Haverá algo mais sublime do que essa teoria? Não está em consonância com a
harmonia grandiosa do Universo? Ainda uma vez, não fomos nós que a inventamos e
lamentamos não possuir esse mérito; porém, quanto mais nos aprofundamos mais a
achamos fecunda na solução de problemas até agora inexplicados.
17. Em que planeta pensas ou desejas reencarnar?
– Não sei: dai-me tempo para procurar.
18. Que gênero de existência pedirás a Deus?
– A continuação desta última; o maior desenvolvimento
possível das faculdades intelectuais.
19. Parece que colocas em primeiro plano o desenvolvimento
das faculdades intelectuais, atribuindo menor importância às faculdades morais,
apesar do que disseste anteriormente.
– Meu coração ainda não se encontra bastante formado para
bem poder apreciar as outras.
20. Vês outros Espíritos e com eles entras em relação?
– Sim.
21. Entre eles não haverá alguns que tenhas conhecido na
Terra?
– Sim; Dumont-d’Urville.
22. Vês também o Espírito Jacques Arago, com o qual viajaste?
– Sim.
23. Esses Espíritos se acham nas tuas mesmas condições?
– Não; uns mais elevados; outros em posição inferior.
24. Referimo-nos aos Espíritos de Dumont-d'Urville e Jacques
Arago.
– Não desejo particularizar.
25. Estás satisfeito por te havermos evocado?
– Sim; especialmente por causa de uma pessoa.
26. Podemos fazer algo por ti?
– Sim.
27. Se te evocássemos dentro de alguns meses, estarias disposto
a responder ainda às nossas perguntas?
– Com prazer. Adeus.
28. Tu te despedes; concede-nos o prazer de dizer aonde
vais.
– Neste ritmo (para falar como o fiz alguns dias atrás)
vou atravessar um espaço mil vezes mais considerável que o percurso que fiz na
Terra em minhas viagens, que eu considerava tão longínquas; e tudo isso em
menos de um segundo, de um pensamento. Irei a uma reunião de Espíritos, onde
tomarei lições e poderei aprender minha nova ciência, minha vida nova. Adeus.
Observação – Quem conheceu perfeitamente o Sr.
Paul Gaimard confessará que esta comunicação está marcada pelo cunho de sua
individualidade. Aprender, ver, conhecer era a sua paixão dominante; é isso que
explica suas viagens ao redor do mundo e às regiões do polo Norte, assim como
suas excursões à Rússia e à Polônia,
quando do primeiro surto de cólera na Europa.
Dominado por essa paixão e pela necessidade de satisfazê-la,
conservava um raro sangue-frio diante dos maiores perigos; assim, por sua calma
e por sua firmeza ele soube livrar-se das garras de uma tribo de antropófagos
que o haviam surpreendido no interior de uma ilha da Oceania.
Uma palavra sua caracteriza perfeitamente essa avidez de ver
fatos novos, de assistir ao espetáculo de acidentes imprevistos. “Que
felicidade!” – exclamou certo dia durante o período mais dramático da revolução
de 1848 – “que felicidade viver numa época tão fértil em acontecimentos
extraordinários e imprevistos!”
Seu espírito, voltado quase exclusivamente para as ciências
que tratavam da matéria organizada, negligenciara bastante as ciências
filosóficas. Assim, poder-se-ia dizer que lhe faltava elevação nas ideais.
Entretanto, nenhum ato de sua vida prova que alguma vez tivesse desconhecido as
grandes leis morais impostas à Humanidade. Em suma, o Sr. Paul Gaimard tinha
uma bela inteligência: essencialmente probo e honesto, naturalmente obsequioso,
era incapaz de cometer a menor injustiça a quem quer que fosse.
Talvez lhe possamos apenas censurar o ter sido
demasiadamente amigo dos prazeres; mas o mundo e os prazeres não corromperam o
seu raciocínio nem o seu coração. Por isso o Sr. Paul Gaimard mereceu os
pesares de seus amigos e de quantos o conheceram.
Sardou
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