Marco Milani
O relato mediúnico do Padre Bizet, publicado
por Allan Kardec na Revista Espírita de junho de 1868, apresenta uma descrição
impactante de um fenômeno que afeta muitos Espíritos após a morte física: a
persistência ilusória de sensações materiais.
Bizet narra as cenas de
sofrimento de desencarnados que, tomados pela perturbação, acreditavam estar
submetidos a uma fome dilacerante, reagindo com desespero, violência e
alucinação. Observando esses Espíritos, ele sinaliza com clareza que não há
estômago para digerir, nem órgãos para assimilar, pois, no plano espiritual, a
fisiologia orgânica não encontra correspondência.
Essa constatação remete a um
princípio doutrinário: os Espíritos desencarnados não possuem órgãos físicos ou
assemelhados. A manutenção de percepções típicas da vida corporal é fruto de
condicionamentos psíquicos e apegos não superados, jamais da existência de uma
estrutura orgânica espiritual. Em abril de 1859, Kardec já havia sistematizado
esse ensinamento no artigo "Quadro
da Vida Espírita", publicado também na Revista Espírita, onde resume
as principais características da existência espiritual, entre elas a afirmação
categórica: "não têm órgãos materiais". Isso implica que todas as
percepções, deslocamentos e formas de comunicação dos Espíritos ocorrem por
meios fluídicos, distintos das funções biológicas da matéria densa.
Compreender essa diferença é
essencial para a construção de uma visão racional e desmaterializada da vida
pós-morte, como propõe o Espiritismo. As sensações de fome, sede ou dor
relatadas por Espíritos em sofrimento são, segundo Kardec, reflexos psíquicos
gerados pela condição moral e emocional em que se encontram, resultantes de
hábitos materiais, culpa, apego ou ignorância. À medida que o Espírito se
esclarece e se liberta desses vínculos, tais ilusões desaparecem.
Esse entendimento contrasta com
certas descrições encontradas em romances mediúnicos contemporâneos, que muitas
vezes apresentam o mundo espiritual como uma extensão do mundo físico, com
Espíritos sujeitos a necessidades orgânicas como alimentação, sono, digestão e
até mesmo reprodução biológica. Um exemplo particularmente grave dessa
distorção doutrinária é a afirmação, feita em determinada obra ficcional
mediúnica, de que existiriam casos de gravidez no mundo espiritual. Tal ideia,
além de absolutamente incompatível com a teoria espírita que torna
biologicamente e espiritualmente impossível qualquer processo gestacional entre
desencarnados.
Embora tais narrativas possam
parecer razoáveis sob a perspectiva de encarnados, quando analisadas
criticamente ferem os fundamentos estabelecidos pelo ensino convergente dos
Espíritos e podem gerar confusão entre aqueles mais afeitos à literatura ficcional
espiritualista.
A tentativa de justificar
contradições sem qualquer lastro metodológico objetivo com a frase "Kardec
não disse tudo" representa uma distorção do preceito da fé raciocinada.
Como bem alertou o Espírito Erasto[3],
uma única teoria falsa pode servir de base para a edificação de um sistema
inteiro de erros, que ruirá diante da menor confrontação com a verdade. O
Espiritismo admite progresso e novos conhecimentos, mas sempre mediante
critérios de validação rigorosa, fundamentados em fatos, lógica e no método
objetivo. Revelações isoladas, por mais eloquentes que sejam os médiuns ou
Espíritos que as transmitam, não podem se sobrepor àquilo que foi
universalmente ensinado, confirmado e consolidado.
O Espiritismo, como ciência de
observação e filosofia moral, convida ao estudo sério e à reflexão crítica,
livre de melindres por contrariar autores de estimação ou narrativas populares.
É dever do espírita responsável distinguir entre o que é ensino doutrinário
validado, fruto da fé raciocinada e do método, e o que são criações literárias
ou expressões simbólicas sem valor doutrinário.
Exemplos como o relato de Bizet
e o "Quadro da Vida Espírita", assim como toda a 2ª parte do livro O
Céu e o Inferno, de Allan Kardec, contendo dezenas de depoimentos de
desencarnados sobre como se encontravam na erraticidade permanecem como
referências essenciais para aqueles que desejam compreender, com fidelidade e
lucidez, a vida espiritual. Reconhecer que os Espíritos não possuem órgãos
materiais não é uma mera questão teórica; é uma exigência lógica e doutrinária
para manter a coerência da filosofia espírita e a credibilidade de seu projeto
educativo e emancipador.
Somente com essa base segura
poderemos construir um entendimento racional, ético e livre de ilusões sobre a
vida após a morte, em sintonia com os princípios decorrentes das Leis Naturais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário