terça-feira, 6 de maio de 2025

UMA QUESTÃO DE PRIORIDADE A RESPEITO DO ESPIRITISMO[1]

 


Allan Kardec

 

O Sr. C.H. Renard, um de nossos assinantes de Rambouillet, dirigiu-nos a seguinte carta:

Senhor e digno irmão em Espiritismo, leio, ou antes, devoro com indizível prazer os números de vossa Revista, à medida que as recebo. De minha parte isso não é de causar admiração, já que meus parentes eram adivinhos, geração após geração. Uma de minhas tias-avós ou bisavós havia mesmo sido condenada à fogueira como contumaz no crime de Vauldrie e frequentadora do sabbat[2], somente evitando a morte porque se refugiou na casa de uma de suas irmãs, abadessa de religiosas enclausuradas. Isso fez com que eu herdasse algumas migalhas das ciências ocultas, o que não me impediu de passar pela crença no materialismo, se aí há fé, e pelo cepticismo. Enfim, fatigado, doente de tanto negar, as obras do célebre extático Swedenborg conduziram-me à verdade e ao bem. Tornando-me também extático, convenci-me ad vivum das verdades que os Espíritos materializados de nosso globo não podem compreender. Obtive comunicações de todos os tipos: fenômenos de visibilidade, tangibilidade, transporte de objetos perdidos etc. Bom irmão, teríeis a gentileza de inserir a nota que se segue num de vossos próximos números? Não se trata de amor-próprio, mas da minha própria condição de francês.

Por vezes as pequenas causas produzem grandes efeitos. Por volta de 1840 eu tinha estabelecido relações com o Sr. Cahagnet, torneiro e marceneiro, que viera a Rambouillet por razões de saúde. Apreciei e iniciei esse operário, de inteligência excepcional, no magnetismo humano. Disse-lhe um dia: Tenho quase certeza de que um sonâmbulo lúcido está apto a ver as almas dos mortos e com elas entrar em conversação; ele ficou espantado. Induzi-o a fazer tal experiência quando dispusesse de um sonâmbulo lúcido. Ele o conseguiu e publicou um primeiro volume de experiências de necromancia, seguido de outros volumes e brochuras que foram traduzidos na América sob o título de Telégrafo Celeste. Algum tempo depois, o extático Davis publicou suas visões ou excursões pelo mundo espírita. Sobre os desmaterializados, Franklin fez pesquisas que resultaram em manifestações e comunicações mais fáceis que antigamente. As primeiras pessoas que ele mediunizou nos Estados Unidos foram a viúva Fox e suas duas filhas. Houve uma coincidência bastante singular entre esse nome e o meu, tendo em vista que o vocábulo inglês fox significa raposa (renard).

Há muito tempo os Espíritos me haviam dito que poderíamos entrar em comunicação com os Espíritos de outros globos e deles receber desenhos e descrições. Expus o assunto ao Sr. Cahagnet, mas ele não foi mais longe que o nosso satélite.

Sou etc.

C.H. Renard

 

Observação – A questão de prioridade, em matéria de Espiritismo é, sem a menor dúvida, uma questão secundária; mas não é menos notável que, desde a importação dos fenômenos americanos, uma porção de fatos autênticos, ignorados do público, revelaram a produção de fenômenos semelhantes, seja na França ou em outros países da Europa, em época contemporânea ou anterior. É de nosso conhecimento que diversas pessoas se ocupavam de comunicações espíritas muito antes que se tivesse notícia das mesas girantes, e disso temos provas com datas certas.

O Sr. Renard parece estar nesse número e, segundo ele, suas experiências não teriam sido estranhas às que foram realizadas na América. Registramos sua observação como interessante história do Espiritismo e para provar, uma vez mais, que essa ciência tem suas raízes no mundo inteiro, o que tira, aos que queiram opor-lhe uma barreira, qualquer possibilidade de êxito. Se o sufocam num ponto, renascerá mais forte em cem outros lugares, até que, já não sendo permitida a dúvida, ocupará sua posição entre as crenças usuais. Então seus adversários, querendo ou não, terão que tomar o seu partido.



[1] REVISTA ESPÍRITA – Dezembro/1858 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Grifo nosso. Reunião noturna de bruxaria.

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