terça-feira, 25 de outubro de 2022

SWEDENBORG[1]

 

Allan Kardec

 

Swedenborg é um desses personagens mais conhecidos de nome que de fato, ao menos para o vulgo. Suas obras, muito volumosas e, em geral, muito abstratas, quase que só são lidas pelos eruditos. Assim, a maioria das pessoas que a elas se referem ficariam muito embaraçadas para dizer o que ele era. Para uns, é um grande homem, objeto de profunda veneração, sem saberem por quê; para outros, não passa de um charlatão, de um visionário, de um taumaturgo. Como todos os homens que professam ideias que não são compartilhadas pela maioria, sobretudo quando tais ideias ferem certos preconceitos, ele teve e ainda tem os seus contraditores. Se estes últimos se tivessem limitado a refutá-lo, estariam no seu direito. Mas o espírito de partido nada respeita, e as mais nobres qualidades não encontram graça diante dele.

Swedenborg não poderia ser uma exceção. Sua doutrina, sem dúvida, deixa muito a desejar. Ele próprio, hoje, está longe de aprová-la em todos os pontos. No entanto, por mais refutável que seja, nem por isso deixará de ser um dos homens mais eminentes do seu século.

As informações seguintes foram extraídas da interessante notícia que a Sra. P... enviou à Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas:

Emmanuel Swedenborg nasceu em 1688, em Estocolmo, e faleceu em Londres, em 1772, aos 84 anos de idade.

Seu pai, Joeper Swedenborg, bispo de Skava, era notável pelo mérito e pelo saber; o filho, porém, o ultrapassou. Destacou-se em todas as ciências, especialmente na Teologia, na Mecânica, na Física e na Metalurgia. Sua prudência, sabedoria, modéstia e simplicidade lhe valeram a alta reputação de que ainda hoje desfruta. Os reis o chamaram para os seus conselhos. Em 1716, Carlos XII o nomeou seu assessor na Escola de Metalurgia de Estocolmo. A rainha Ulrica o fez nobre, e ele ocupou os postos de maior relevo, com distinção, até 1743, época em que teve a sua primeira revelação espírita.

Tinha, então, 55 anos. Pediu demissão e não quis mais se ocupar senão de seu apostolado e do estabelecimento da doutrina da Nova Jerusalém. Eis como ele próprio conta a sua primeira revelação:

“Eu estava em Londres e jantava muito tarde, em meu albergue habitual, onde havia reservado um quarto, a fim de ter liberdade para meditar à vontade. Senti fome e comia com muito apetite. Ao terminar, percebi que uma espécie de nevoeiro se espalhava ante meus olhos e vi o assoalho do quarto coberto de répteis horrorosos, tais como serpentes, sapos, lagartos e outros.

Fui tomado de medo à proporção que as trevas aumentavam; contudo, logo elas se dissiparam. Vi, então, claramente um homem em meio a uma luz viva e radiante, sentado a um canto do quarto; os répteis haviam desaparecido com as trevas. Encontrava-me só; imaginai o pavor que se apoderou de mim, quando o ouvi pronunciar distintamente, mas com um tom de voz capaz de imprimir terror: “Não comas tanto!” A estas palavras, minha vista se toldou, mas, pouco a pouco, se restabeleceu, vendo-me sozinho no quarto. Ainda um pouco apavorado com tudo quanto havia visto, apressei-me em recolher-me ao meu alojamento, sem nada dizer a ninguém sobre o que havia acontecido. Aí me entreguei à reflexão, sem poder admitir que aquilo fosse efeito do acaso ou de qualquer causa física.

“Na noite seguinte, o mesmo homem, radiante de luz, apresentou-se novamente e me disse: ‘Eu sou Deus, o Senhor, Criador e Redentor; escolhi-te para explicar aos homens o sentido interior e espiritual da Sagrada Escritura. Ditarei o que deves escrever'.

“Desta vez não fiquei tão apavorado. A luz que o envolvia, embora viva e resplandecente, não produziu nenhuma impressão dolorosa em meus olhos. Estava vestido de púrpura e a visão durou um bom quarto de hora. Naquela mesma noite os olhos do meu homem interior foram abertos e predispostos a ver o céu, o mundo dos Espíritos e os infernos; encontrei por toda parte várias pessoas do meu conhecimento, algumas mortas há muito tempo, outras recentemente. Desde aquele dia renunciei a todas as ocupações mundanas para não mais me ocupar senão das coisas espirituais, submetendo-me à ordem que havia recebido.

Mais tarde, aconteceu-me diversas vezes ter abertos os olhos do Espírito, percebendo, em pleno dia, o que se passava no outro mundo, falando aos anjos e aos Espíritos, assim como falo aos homens”.

Um dos pontos fundamentais da doutrina de Swedenborg repousa naquilo que ele chama as correspondências.

Segundo ele, estando os mundos espiritual e natural ligados entre si, como o interior ao exterior, resulta que as coisas espirituais e as coisas naturais constituem uma unidade, por influxo, e que há entre elas uma correspondência. Eis o princípio; mas o que se deve entender por essa correspondência e esse influxo é difícil de apreender.

A Terra, diz Swedenborg, corresponde ao homem. Os diversos produtos que servem à nutrição do homem correspondem a diversos gêneros de bens e de verdades, a saber: os alimentos sólidos a gêneros de bens, e os alimentos líquidos a gêneros de verdades. A casa corresponde à vontade e ao entendimento, que constitui o mental humano. Os alimentos correspondem às verdades ou às falsidades, segundo a substância, a cor e a forma que apresentam. Os animais correspondem às afeições; os úteis e mansos, às boas afeições; os nocivos e maus, às más afeições; os pássaros mansos e belos, às verdades intelectuais; os maus e feios, à falsidade; os peixes, às ciências que se originam das coisas sensuais; e os insetos nocivos às falsidades que provêm dos sentidos. As árvores e os arbustos correspondem a diversos gêneros de conhecimento; as ervas e a grama, a diversas verdades científicas. O ouro corresponde ao bem celeste; a prata, à verdade espiritual; o bronze, ao bem natural, etc., etc. Assim, desde os últimos graus da criação até o sol celeste e espiritual, tudo se mantém, tudo se encadeia pelo influxo que produz a correspondência.

O segundo ponto de sua doutrina é este: Não há senão um Deus e senão uma pessoa, que é Jesus Cristo.

Criado livre, segundo Swedenborg o homem abusou de sua liberdade e de sua razão. Caiu; mas sua queda tinha sido prevista por Deus e devia seguir-se de sua reabilitação, porquanto Deus, que é o amor mesmo, não podia deixá-lo no estado em que sua queda o havia mergulhado. Ora, como operar tal reabilitação?

Recolocá-lo no estado primitivo seria tirar-lhe o livre-arbítrio e, assim, aniquilá-lo. Foi subordinando-o às leis de sua ordem eterna que Ele procedeu à reabilitação do gênero humano. Vem, a seguir, uma teoria muito difusa dos três sóis transpostos por Jeová, para se aproximar de nós e provar que ele é o próprio homem.

Swedenborg divide o mundo dos Espíritos em três lugares diferentes: céus, lugares intermediários e infernos. Diz ele: “Depois da morte entramos no mundo dos Espíritos; os santos dirigem-se voluntariamente para um dos três céus e os pecadores para um dos três infernos, de onde jamais sairão.” Essa doutrina desesperadora anula a misericórdia de Deus, pois lhe recusa o poder de perdoar os pecadores surpreendidos por uma morte violenta ou acidental.

Mesmo rendendo justiça ao mérito pessoal de Swedenborg, como cientista e como homem de bem, não nos podemos constituir defensores de doutrinas que o mais elementar bom-senso condena. O que ressalta mais claramente, conforme o que agora conhecemos dos fenômenos espíritas, é a existência de um mundo invisível e a possibilidade de nos comunicarmos com ele. Swedenborg gozou de uma faculdade que em seu tempo pareceu sobrenatural, razão por que admiradores fanáticos o encararam como um ser excepcional. Em tempos mais recuados, teriam levantado altares em sua homenagem; dos que não acreditavam nele, uns o consideraram como um cérebro exaltado, e outros, como um charlatão. Para nós, era um médium vidente e um escritor intuitivo, como os há aos milhares, faculdade que pertence ao número dos fenômenos naturais.

Ele cometeu um equívoco dificilmente perdoável, não obstante sua experiência das coisas do mundo oculto: o de aceitar cegamente tudo quanto lhe era ditado, sem o submeter ao controle severo da razão. Se tivesse pesado maduramente os prós e os contras, teria reconhecido princípios irreconciliáveis com a lógica, por menos rigorosa que fosse. Hoje, provavelmente não cairia na mesma falta, porquanto disporia de meios para julgar e apreciar o valor das comunicações de além-túmulo. Saberia que constituem um campo onde nem todas as ervas podem ser colhidas, e que entre umas e outras o bom-senso, que não nos foi dado por acaso, deve saber escolher. A qualidade que a si mesmo se atribuiu o Espírito que a ele se manifestou bastaria para o pôr em guarda, sobretudo se considerarmos a trivialidade de sua apresentação.

Aquilo que ele próprio não fez, compete a nós fazê-lo agora, não tirando de seus escritos senão o que contêm de racional. Seus próprios erros devem ser um ensinamento para os médiuns demasiado crédulos, que certos Espíritos procuram fascinar, lisonjeando-lhes a vaidade ou os preconceitos por uma linguagem pomposa ou de aparências enganadoras.

A seguinte anedota prova a má-fé dos adversários de Swedenborg, que buscavam todas as ocasiões para denegri-lo.

Conhecendo as faculdades de que era dotado, a rainha Luísa Ulrica o havia encarregado, um dia, de saber do Espírito de seu irmão, o príncipe da Prússia, porque, algum tempo antes de sua morte, ele não respondera a uma carta que ela lhe havia enviado para pedir conselhos. Ao cabo de vinte e quatro horas Swedenborg teria relatado à rainha, em audiência secreta, a resposta do príncipe, concebida de tal sorte que esta, plenamente convencida de que ninguém, exceto ela e seu falecido irmão, conheciam o conteúdo daquela carta, foi tomada da mais profunda estupefação, reconhecendo o poder miraculoso do grande homem. Eis a explicação que dá a esse fato um de seus antagonistas, o cavaleiro Beylon, leitor da rainha:

Consideravam a rainha como um dos principais autores da tentativa de revolução que ocorreu na Suécia, em 1756, e que custou a vida ao conde Barbé e ao marechal Horn. Pouco faltou para que o partido dos chapéus, que então triunfava, não a tonasse responsável pelo sangue derramado. Nesta crítica situação, ela escreveu ao irmão, o príncipe da Prússia, para lhe pedir conselho e assistência. A rainha não recebeu resposta. Como o príncipe tivesse morrido logo depois, jamais soube ela a causa do seu silêncio, razão por que encarregou Swedenborg de interrogar o Espírito do príncipe a tal respeito. Justamente à chegada da mensagem da rainha, estavam presentes os senadores conde T... e conde H... Este último, que havia interceptado a carta, sabia tão bem quanto seu cúmplice, o conde T..., por que aquela carta havia ficado sem resposta, e ambos resolveram aproveitar a circunstância para fazer com que seus conselhos, a respeito de muitas coisas, pudessem chegar à rainha. Foram, então, à noite procurar o visionário e lhe ditaram a resposta. À falta de inspiração, Swedenborg aceitou-a prontamente. No dia seguinte correu à casa da rainha e, no silêncio de seu gabinete, disse-lhe que o Espírito do príncipe lhe aparecera e o havia encarregado de anunciar-lhe o seu descontentamento e assegurar-lhe que, se não respondera à carta, é que desaprovara sua conduta e que sua política imprudente e sua ambição eram a causa do sangue derramado; que ela era culpada diante de Deus e que teria de expiar essa culpa. Ele a fazia prometer não mais se envolver nos negócios do Estado etc. etc. Convencida por esta revelação, a rainha acreditou em Swedenborg e abraçou a sua defesa com ardor.

Essa anedota deu origem a uma polêmica contínua entre os discípulos de Swedenborg e seus detratores. Um eclesiástico sueco, chamado Malthesius, que veio a enlouquecer, tinha publicado que Swedenborg, do qual era inimigo declarado, se havia retratado antes de morrer. O boato espalhou-se na Holanda, pelo outono de 1785, o que levou Robert Hindmarck a instaurar um inquérito a respeito e demonstrar toda a falsidade da calúnia inventada por Malthesius.

A história da vida de Swedenborg prova que a visão espiritual, de que era dotado, em nada prejudicou o exercício de suas faculdades naturais. Seu panegírico[2], pronunciado após sua morte pelo acadêmico Landel perante a Academia de Ciências de Estocolmo, mostra quanto era vasta a sua erudição e, pelos discursos pronunciados na Dieta, em 1761, vemos a parte que ele tomava na direção dos negócios públicos de seu país.

A doutrina de Swedenborg fez numerosos prosélitos em Londres, na Holanda e mesmo em Paris, onde deu origem às Sociedades de que tratamos em nosso número do mês de outubro, a dos Martinistas, dos Teósofos etc. Se nem todos a aceitaram em todas as suas consequências, teve, pelo menos, o mérito de propagar a crença na possibilidade da comunicação com os seres de além-túmulo, crença bastante antiga, como se sabe, mas até agora oculta às pessoas simples pelas práticas misteriosas de que se achava envolvida. O mérito incontestável de Swedenborg, seu profundo saber, sua alta reputação de sabedoria tiveram um grande peso na propagação dessas ideias, que hoje se popularizam cada vez mais, pois crescem em plena luz e, longe de buscar a sombra do mistério, fazem apelo à razão. Malgrado os erros de seu sistema, Swedenborg não deixa de ser uma dessas grandes figuras cuja lembrança ficará ligada à história do Espiritismo, do qual foi um dos primeiros e mais zelosos fomentadores.

 

COMUNICAÇÃO DE SWEDENBORG PROMETIDA NA SESSÃO DE 16 DE SETEMBRO

(Sociedade, 23 de setembro de 1859)

 

Meus bons amigos e crentes fiéis. Desejei vir entre vós para vos encorajar no caminho que seguis com tanta firmeza, relativamente à questão espírita. Vosso zelo é apreciado no mundo dos Espíritos. Prossegui, mas não vos descuideis, porque os obstáculos ainda vos entravarão por algum tempo; a vós não faltarão detratores, como também ocorreu comigo. Há um século preguei o Espiritismo e tive inimigos de todos os gêneros; mas tive também fervorosos adeptos, e isso sustentou a minha coragem. A minha moral espírita e a minha doutrina não estão isentas de grandes erros, que hoje reconheço. Assim, as penas não são eternas; vejo que Deus é muito justo e muito bom para punir eternamente a criatura que não tem força suficiente para resistir às paixões. O que eu também dizia do mundo dos anjos, que é o que pregam nos templos, não passava de ilusão dos meus sentidos; acreditei vê-lo, agia de boa-fé, mas enganei-me. Vós, sim, estais no melhor caminho, porque estais mais esclarecidos do que estávamos em meu tempo. Continuai, mas sede prudente, a fim de que os vossos inimigos não tenham armas muito fortes contra vós. Vede o terreno que ganhais todos os dias. Coragem, pois, porque o futuro vos está garantido. O que vos dá forças é o fato de falardes em nome da razão. Tendes perguntas a dirigir-me? Eu vo-las responderei.

Swedenborg

 

1. Foi em 1745, em Londres, que tivestes a primeira revelação. Vós a desejáveis? Naquele tempo já vos ocupáveis de questões teológicas?

– Já me ocupava com isso, mas não desejara absolutamente essa revelação: ela me veio espontaneamente.

2. Qual foi o Espírito que vos apareceu, dizendo ser o próprio Deus? Era realmente Deus?

– Não. Acreditei no que me falava porque nele via um ser sobre-humano e fiquei lisonjeado.

3. Por que ele tomou o nome de Deus?

– Para ser mais bem obedecido.

4. Pode Deus manifestar-se diretamente aos homens?

– Certamente o poderia, mas não o faz mais.

5. Então já houve um tempo em que ele se teria manifestado?

– Sim, nas primeiras idades da Terra.

6. Aquele Espírito vos fez escrever coisas que hoje reconheceis como errôneas. Ele o fez com boa ou com má intenção?

– Não o fez com má intenção; ele próprio se enganou, porque não era suficientemente esclarecido. Agora percebo que as ilusões do meu próprio Espírito e de minha inteligência o influenciavam, mau grado seu. Entretanto, no meio de alguns erros de sistema, fácil é reconhecer grandes verdades.

7. O princípio de vossa doutrina repousa sobre as correspondências. Continuais acreditando nessas relações que encontráveis entre cada coisa do mundo material, e cada coisa do mundo moral?

– Não; é uma ficção.

8. Que entendeis por estas palavras: Deus é o próprio homem?

– Deus não é o homem, mas o homem é uma imagem de Deus.

9. Poderíeis desenvolver o vosso pensamento?

– Digo que o homem é a imagem de Deus porque a inteligência, o gênio que ele recebe algumas vezes do céu é uma emanação da Onipotência Divina. Ele representa Deus na Terra pelo poder que exerce na Natureza inteira e pelas grandes virtudes que está em seu poder adquirir.

10. Devemos considerar o homem como uma parte de Deus?

– Não, o homem não é uma parte da Divindade: é apenas sua imagem.

11. Poderíeis dizer-nos de que maneira recebíeis as comunicações dos Espíritos? Escrevíeis aquilo que vos era revelado à maneira de nossos médiuns, ou por inspiração?

– Quando me achava em silêncio e em recolhimento, meu Espírito ficava como que maravilhado, extasiado, e eu via claramente uma imagem diante de mim, que me falava e ditava o que deveria escrever; algumas vezes minha imaginação se misturava nisso.

12. Que devemos pensar do fato narrado pelo cavaleiro Beylon, a propósito da revelação que fizestes à rainha Luísa Ulrica?

– Essa revelação é verdadeira. Beylon a desnaturou.

13. Qual a vossa opinião sobre a Doutrina Espírita, tal qual é hoje?

– Eu vos disse que estais num caminho mais seguro que o meu, tendo em vista que as vossas luzes são em geral mais amplas. Eu tinha de lutar contra uma ignorância maior e, sobretudo, contra a superstição.



[1] Revista Espírita – 1859 – Allan Kardec

[2] Discurso em louvor de alguém; Sermão laudatório; Elogio exagerado.

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