terça-feira, 1 de outubro de 2024

EVOCAÇÃO DOS ESPÍRITOS NA ABSSÍNIA[1]

 


Allan Kardec

 

James Bruce, em sua Voyage aux sources du Nil, em 1768, narra o que se segue a respeito de Gingiro, pequeno reino situado na parte meridional da Abissínia, a leste do reino de Adel.

Trata-se de dois embaixadores que Socínios, rei da Abissínia, enviou ao papa, por volta de 1625, e que tiveram que atravessar o Gingiro.

Então, disse Bruce, foi necessário advertir o rei de Gingiro da chegada da caravana e pedir-lhe audiência; mas, naquele momento, achava-se ele ocupado com uma importante operação de magia, sem a qual esse soberano jamais ousaria empreender qualquer coisa.

O reino de Gingiro pode ser considerado como o primeiro desse lado da África em que se estabeleceu a estranha prática de predizer o futuro pela evocação dos Espíritos e por uma comunicação direta com o diabo.

O rei de Gingiro achou que devia deixar passar oito dias antes de receber, em audiência, o embaixador e seu companheiro, o jesuíta Fernandez. Em consequência, no nono dia eles obtiveram a permissão de se dirigirem à corte, onde chegaram na mesma tarde.

Nada se faz no país de Gingiro sem o concurso da magia. Por aí se vê o quanto a razão humana se acha degradada a algumas léguas de distância. Que não nos venham mais dizer que essa fraqueza deva ser atribuída à ignorância ou ao calor ali reinantes. Por que um clima quente induziria os homens a se tornarem feiticeiros, de preferência a um clima frio? Por que a ignorância estende o poder do homem, a ponto de fazê-lo transpor os limites da inteligência comum e dar-lhe a faculdade de corresponder-se com uma nova ordem de seres habitantes de um outro mundo? Os etíopes, que cercam quase toda a Abissínia, são mais negros que os gingirianos; seu país é mais quente e, como estes, são indígenas nos lugares que habitam, desde o princípio dos séculos; entretanto, não adoram o diabo, nem com ele pretendem estabelecer qualquer comunicação; não sacrificam homens em seus altares; finalmente, entre eles não se encontra traço algum dessa revoltante atrocidade.

Nas regiões da África que se comunicam diretamente com o mar, o comércio de escravos é uma prática que ocorre desde os séculos mais recuados; mas o rei de Gingiro, cujos domínios se acham encerrados quase no centro do continente, sacrifica ao diabo os escravos que não pode vender ao homem. É ali que começa esse horrível costume de derramar o sangue humano em todas as solenidades. Ignoro, diz o Sr. Bruce, até onde ele se estende ao sul da África, mas considero o Gingiro como o limite geográfico do reino do diabo, do lado setentrional da península.

Tivesse visto o Sr. Bruce o que hoje testemunhamos e nada acharia de assombroso na prática das evocações usadas em Gingiro. Nelas vê apenas uma crença supersticiosa, enquanto nós encontramos sua causa nos fatos de manifestações falsamente interpretadas que lá, como alhures, se produziram. O papel que a credulidade faz o diabo representar nada tem de surpreendente.

Primeiro há de notar-se que todos os povos bárbaros atribuem a um poder maléfico o que não podem explicar. Em segundo lugar, um povo bastante atrasado para sacrificar seres humanos não pode atrair ao seu meio Espíritos superiores. A natureza dos que o visitam não pode, pois, senão confirmá-lo em sua crença. Além disso, é preciso considerar que os povos dessa parte da África hão conservado um grande número de tradições judaicas, mescladas mais tarde a algumas ideias rudimentares do Cristianismo, fonte na qual, em consequência de sua ignorância, sorveram a doutrina do diabo e dos demônios.



[1] Revista Espírita – abril/1858 – Allan Kardec

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