terça-feira, 3 de setembro de 2024

O ESPIRITISMO ENTRE OS DRUÍDAS - continuação[1]

 

Triquetra Os Três Círculos


Allan Kardec

(Ver primeira parte)

 

Deus e o Universo

I – Há três unidades primitivas e, de cada uma delas, não poderia existir senão uma: um Deus, uma verdade e um ponto de liberdade, isto é, o ponto onde se encontra o equilíbrio de toda oposição.

II – Três coisas procedem das três unidades primitivas: toda vida, todo bem e todo poder.

III – Deus é necessariamente três coisas, a saber: a maior parte da vida, a maior parte da ciência e a maior parte do poder; e não poderia haver uma maior parte de cada coisa.

IV – Três coisas que Deus não pode deixar de ser: o que deve constituir o bem perfeito, o que deve querer o bem perfeito e o que deve realizar o bem perfeito;

V – Três garantias do que Deus faz e fará: seu poder infinito, sua sabedoria infinita, seu amor infinito; porquanto nada há que não possa ser efetuado, que não possa tornar-se verdadeiro e que não possa ser desejado por um atributo.

VI – Três fins principais da obra de Deus, como Criador de todas as coisas: diminuir o mal, reforçar o bem e pôr em evidência toda diferença; de modo que se possa saber o que deve ser ou, ao contrário, o que não deve ser.

VII – Três coisas que Deus não pode deixar de conceder: o que há de mais vantajoso, o que há de mais necessário e o que há de mais belo para cada coisa.

VIII – Três poderes da existência: não poder ser de outro modo, não ser necessariamente outro e não poder ser melhor pela concepção; e é nisso que está a perfeição de todas as coisas.

IX – Três coisas prevalecerão necessariamente: o supremo poder, a suprema inteligência e o supremo amor de Deus.

X – As três grandezas de Deus: vida perfeita, ciência perfeita, poder perfeito.

XI – Três causas originais dos seres vivos: o amor divino, de acordo com a suprema inteligência; a sabedoria suprema, pelo conhecimento perfeito de todos os meios; e o poder divino, de acordo com a vontade, o amor e a sabedoria de Deus.

 

Os Três Círculos

XII – Há três círculos de existência: o círculo da região vazia (ceugant) onde, exceto Deus, não há nada vivo, nem morto e nenhum ser que Deus não possa atravessar; o círculo da migração (abred) onde todo ser animado procede da morte e o homem o atravessou; e o círculo da felicidade (gwynfyd) onde todo ser animado procede da vida e o homem o atravessará no céu.

XIII – Três estados sucessivos dos seres animados: o estado de descida no abismo (annoufn), o estado de liberdade na Humanidade e o estado de felicidade no céu.

XIV – Três fases necessárias de toda existência em relação à vida: o começo em annoufn, a transmigração em abred e a plenitude em gwinfyd ; e sem essas três coisas nada pode existir, exceto Deus.

 

“Em resumo, sobre esse ponto capital da teologia cristã, assim como Deus, em seu poder Criador, tira as almas do nada, as tríades não se pronunciam de maneira precisa. Depois de terem revelado Deus em sua esfera eterna e inacessível, elas mostram simplesmente as almas originando-se nas camadas mais profundas do Universo, no abismo (annoufn); daí passam para o círculo das migrações (abred), onde seu destino é determinado através de uma série de existências, conforme o bom ou mau uso que hajam feito de sua liberdade; e, por fim, elevam-se ao círculo supremo (gwynfyd), onde as migrações cessam, onde não mais se morre e onde a vida transcorre em completa felicidade, em tudo conservando sua atividade perpétua e a plena consciência de sua individualidade. Seria preciso, com efeito, que o druidismo caísse no erro das teologias orientais, que levam o homem a ser finalmente absorvido no seio imutável da Divindade, porquanto, ao contrário, distingue um círculo especial, o círculo do vazio ou do infinito (ceugant), que forma o privilégio incomunicável do Ser supremo e no qual nenhum ser, seja qual for o seu grau de santidade, jamais poderá penetrar. É o ponto mais elevado da religião, visto marcar o limite fixado ao progresso das criaturas.

“O traço mais característico dessa teologia, se bem seja um traço puramente negativo, consiste na ausência de um círculo particular, tal qual o Tártaro da Antiguidade pagã, destinado à punição sem fim das almas criminosas. Entre os druidas, o inferno propriamente dito não existe. A seus olhos, a distribuição dos castigos efetua-se, no círculo das migrações, pelo comprometimento das almas em condições de existência mais ou menos infelizes, onde, sempre senhoras de sua liberdade, expiam suas faltas pelo sofrimento e se predispõem, pela reforma de seus vícios, a um futuro melhor. Em certos casos pode mesmo acontecer que as almas retrogradem até aquela região do annoufn, onde se originam e à qual quase não se pode dar outro significado senão o da animalidade. Por esse lado perigoso (a retrogradação), que nada justifica, visto que a diversidade das condições de existência no círculo da Humanidade é perfeitamente suficiente à penalidade de todos os graus, o druidismo teria, então, chegado a resvalar até a metempsicose. Mas esse extremo deplorável, ao qual não conduz nenhuma necessidade da doutrina do desenvolvimento das almas pela vida das migrações, como se verá pela série de tríades relativas ao regime do círculo de abred, parece ter ocupado, no sistema da religião, apenas um lugar secundário.

“Salvo algumas obscuridades, que talvez resultem de uma língua cujas sutilezas metafísicas não nos são ainda bem conhecidas, as declarações das tríades relativas às condições inerentes ao círculo de abred espargem as mais vivas luzes sobre o conjunto da religião druídica. Respira-se aí um sopro de superior originalidade. O mistério que oferece à nossa inteligência o espetáculo de nossa existência atual adquire nela uma feição singular, que não se encontra em parte alguma; dir-se-ia que um grande véu, rompendo-se antes e depois da vida, permite à alma navegar, de repente, com uma força inesperada, através de uma extensão indefinida de que ela própria jamais suspeitou, em virtude de seu encarceramento entre as espessas portas do nascimento e da morte. Seja qual for o julgamento a que cheguemos, quanto à verdade dessa doutrina, não podemos deixar de convir que é poderosa. Refletindo sobre o efeito que esses princípios inevitavelmente deviam produzir sobre as almas ingênuas, sua origem e seu destino, é fácil dar-se conta da imensa influência que os druidas haviam naturalmente adquirido sobre o espírito de nossos antepassados. Em meio às trevas da Antiguidade, esses ministros sagrados não podiam deixar de aparecer, aos olhos das populações, como os reveladores do Céu e da Terra.

“Eis o texto notável de que se trata:

O Círculo de Abred

XV – Três coisas necessárias no círculo de Abred: o menor grau possível de toda a vida e, daí, o seu começo; a matéria de todas as coisas e, daí, o crescimento progressivo, que só se realiza no estado de necessidade; e a formação de todas as coisas da morte e, daí, a debilidade das existências.

XVI – Três coisas das quais todo ser vivo participa necessariamente pela justiça de Deus: o socorro de Deus em abred, porque sem isso ninguém poderia conhecer coisa alguma; o privilégio de participar do amor de Deus; e o acordo com Deus quanto à realização pelo poder de Deus, enquanto for justo e misericordioso.

XVII – Três causas da necessidade do círculo de abred : o desenvolvimento da substância material de todo ser animado; o desenvolvimento do conhecimento de todas as coisas; e o desenvolvimento da força moral para superar todo contrário e Cythraul (o Espírito mau) e para libertar-se de Droug (o mal). Sem essa transição de cada estado de vida, não poderia haver nele a realização de nenhum ser.

XVIII – Três calamidades primitivas de abred: a necessidade, a ausência de memória e a morte.

XIX – Três condições necessárias para chegar-se à plenitude da ciência: transmigrar em abred, transmigrar em gwynfyd e recordar-se de todas as coisas passadas, até em annoufn.

XX – Três coisas indispensáveis no círculo de abred: a transgressão da lei, visto não poder ser de outro modo; a liberação pela morte ante Droug e Cythraul; o crescimento da vida e do bem pelo afastamento de Droug na liberação da morte; e isso pelo amor de Deus, que abrange todas as coisas.

XXI – Três meios eficazes de Deus em abred para dominar Droug e Cythraul e superar sua oposição em relação ao círculo de gwynfyd : a necessidade, a perda da memória e a morte.

XXII – Três coisas são primitivamente contemporâneas: o homem, a liberdade e a luz.

XXIII – Três coisas necessárias ao triunfo do homem sobre o mal: a firmeza contra a dor, a mudança, a liberdade de escolha; e com o poder que o homem tem de escolher, não se pode saber antecipadamente para onde irá.

XXIV – Três alternativas oferecidas ao homem: abred e gwynfyd, necessidade e liberdade, mal e bem, o todo em equilíbrio, e pode o homem à vontade ligar-se a um ou outro.

XXV – Por três coisas cai o homem sob a necessidade de abred: pela ausência de esforço para o conhecimento, pela não ligação ao bem e pela vinculação ao mal. Em consequência dessas coisas, desce em abred até o seu análogo e recomeça o curso de sua transmigração.

XXVI – Por três coisas retorna o homem necessariamente em abred, se bem que, em outros sentidos esteja ligado ao que é bom: pelo orgulho, cai até em annoufn pela falsidade, até o ponto do demérito equivalente; e pela crueldade, até o grau correspondente de animalidade. Daí transmigra novamente para a humanidade, como antes.

XXVII – As três coisas principais a obter no estado de humanidade: a ciência, o amor, a força moral, no mais alto grau possível de desenvolvimento, antes que sobrevenha a morte. Isso não pode ser obtido anteriormente ao estado de humanidade, e não o pode ser senão pelo privilégio da liberdade e da escolha. Essas três coisas são chamadas as três vitórias.

XXVIII – Há três vitórias sobre Croug e Cythraul: a ciência, o amor e a força moral; porque o saber, o querer e o poder realizam o que quer que seja em sua conexão com as coisas. Essas três vitórias começam na condição de humanidade e se demoram eternamente.

XXIX – Três privilégios da condição do homem: o equilíbrio do bem e do mal e, daí, a faculdade de comparar; a liberdade na escolha e, daí, o julgamento e a preferência; e o desenvolvimento da força moral em consequência do julgamento e, daí, a preferência. Essas três coisas são necessárias à realização do que quer que seja.

 

“Assim, em resumo, o princípio dos seres no seio do Universo dá-se no mais baixo ponto da escala da vida; e, se não é levar muito longe as consequências da declaração contida na vigésima sexta tríade, pode-se conjeturar que na doutrina druídica o ponto inicial estava supostamente no abismo confuso e misterioso da animalidade. Daí, consequentemente, desde a própria origem da história da alma, a necessidade lógica do progresso, uma vez que os seres não são por Deus destinados a permanecer numa condição tão baixa e tão obscura. Todavia, nos estágios inferiores do Universo, esse progresso não se desenvolve segundo uma linha contínua; essa longa vida, nascida tão baixo para elevar-se tanto, rompe-se em fragmentos solitários na base de sua sucessão, mas, graças à falta de memória, sua misteriosa solidariedade escapa, pelo menos por algum tempo, à consciência do indivíduo. São essas interrupções periódicas no curso secular da vida que constituem o que chamamos morte; de sorte que a morte e o nascimento, em uma visão superficial, formam acontecimentos tão diversos que não são, na realidade, mais que duas faces do mesmo fenômeno, uma voltada para o período que se acaba, a outra para o que se inicia.

“Considerada em si mesma, a morte não é uma calamidade verdadeira, mas um benefício de Deus que, rompendo os hábitos estreitíssimos que havíamos contraído com nossa vida presente, transporta-nos a novas condições e dá lugar, desse modo, a que nos elevemos mais livremente a novos progressos.

“Assim como a morte, a perda de memória que a acompanha deve ser tomada também como um benefício. É uma consequência do primeiro ponto. Porque se a alma, no curso dessa longa vida, conservasse claramente suas lembranças de um período a outro, a interrupção não seria mais que acidental e não haveria nem morte propriamente dita, nem nascimento, visto que esses dois acontecimentos perderiam, desde então, o caráter absoluto que os distingue e lhes dá força. E, até mesmo do ponto de vista dessa teologia, não parece difícil perceber até que ponto a perda da memória pode ser considerada um benefício, no que concerne aos períodos passados, em relação ao homem em sua condição presente; porque se esses períodos passados constituem uma prova, como a posição atual do homem num mundo de sofrimentos o indica, foram infelizmente maculados de erros e de crimes, causa primeira das misérias e das expiações de hoje, representando para a alma evidente vantagem, por achar-se ela livre da visão de tão grande quantidade de faltas, bem como dos remorsos deveras acabrunhantes que daí se originarão. Não a obrigando a um arrependimento formal senão em relação às culpas da vida atual, assim se compadecendo de sua fraqueza, Deus realmente lhe concede uma grande graça.

“Enfim, segundo essa mesma maneira de considerar o mistério da vida, as necessidades de toda natureza a que estamos submetidos neste mundo e que, desde o nosso nascimento determinam, por uma sentença por assim dizer fatal, a forma de nossa existência no presente período, constituem um último benefício, tão sensível quanto os dois outros; porque, em definitivo, são essas necessidades que dão à nossa vida o caráter que melhor convém às nossas expiações e às nossas provas e, conseguintemente, ao nosso desenvolvimento moral; e são ainda essas mesmas necessidades, seja de nossa organização física, seja das circunstâncias exteriores, em cujo meio somos colocados que, arrastando-nos forçosamente ao termo da morte, conduzem-nos por isso mesmo à nossa suprema libertação. Em resumo, como dizem as tríades em sua enérgica concisão, aí está todo o conjunto e as três calamidades primitivas, bem como os três meios eficazes de Deus em abred.

“Entretanto, mediante qual conduta a alma realmente se eleva nesta vida e merece alcançar, após a morte, um modo superior de existência? A resposta que dá o Cristianismo a essa questão fundamental é de todos conhecida: é sob a condição de destruir em si o egoísmo e o orgulho, de desenvolver, na intimidade de sua substância, os valores da humildade e da caridade, únicos eficazes e meritórios perante Deus: Bem-aventurados os brandos, diz o Evangelho; bem-aventurados os humildes! A resposta do druidismo é bem diversa e contrasta claramente com esta última. Segundo suas lições, a alma se eleva na escala das existências com vistas a fortificar a sua personalidade, através do trabalho sobre si mesma, resultado que naturalmente obtém pelo desenvolvimento da força do caráter, aliada ao desenvolvimento do saber. É o que exprime a vigésima quinta tríade, que declara que a alma recai na necessidade de transmigrações, isto é, nas vidas confusas e mortais, não só por alimentar as más paixões, como, também, pelo hábito da tibieza no cumprimento das ações justas e pela falta de firmeza no apego ao que prescreve a consciência; numa palavra, pela fraqueza de caráter. E, além dessa falta de virtude moral, a alma é ainda retida em seu progresso em direção ao céu pela falta de aperfeiçoamento do Espírito. A iluminação intelectual, necessária para a plenitude da felicidade, não se opera na alma bem-aventurada simplesmente por uma irradiação graciosa do Alto; e não se produz na vida celeste a não ser que a própria alma tenha se esforçado, desde esta vida, para adquiri-la. A tríade também não fala apenas da falta de saber, mas da falta de esforços para saber, o que, no fundo, como para a virtude precedente, é um preceito de atividade e de movimento.

 

“Em verdade, nas tríades seguintes, a caridade é recomendada no mesmo título que a ciência e a força moral; mas, ainda aqui, como no que toca à natureza divina, a influência do Cristianismo é sensível. É a ele, e não à forte, mas dura religião de nossos antepassados, que pertence a predicação e a entronização no mundo da lei da caridade em Deus e no homem; e se essa lei brilha nas tríades, é por efeito de uma aliança com o Evangelho ou, melhor dizendo, de um feliz aperfeiçoamento da teologia dos druidas pela ação da dos apóstolos, e não por uma tradição primitiva. Arrebatemos esse raio divino e teremos, em sua rude grandeza, a moral da Gália, moral que pôde produzir, na ordem do heroísmo e da ciência, poderosas personalidades, mas que não as soube unir entre si nem à multidão dos humildes[2].”

A Doutrina Espírita não consiste apenas na crença na manifestação dos Espíritos, mas em tudo o que nos ensinam sobre a natureza e o destino da alma. Se, pois, nos reportarmos aos preceitos contidos em O Livro dos Espíritos, onde se encontra formulado todo o seu ensinamento, seremos surpreendidos com a identidade de alguns princípios fundamentais com os da doutrina druídica, dos quais um dos mais notáveis é, sem sombra de dúvida, o da reencarnação. Nos três círculos, nos três estados sucessivos dos seres animados, encontramos todas as fases apresentadas por nossa escala espírita. Com efeito, o que é o círculo de abred ou o da migração, senão as duas ordens de Espíritos que se depuram através de suas existências sucessivas? No círculo de Gwynfyd o homem não transmigra mais, desfrutando da suprema felicidade. Não é a primeira ordem da escala, a dos Espíritos puros que, tendo realizado todas as provas, não mais necessitam de encarnação e gozam da vida eterna? Notemos ainda que, conforme a doutrina druídica, o homem conserva o seu livre-arbítrio; eleva-se gradualmente por sua vontade, por sua perfeição progressiva e pelas provas que suportou, do annoufn ou abismo, até a perfeita felicidade em gwynfyd, com a diferença, todavia, de que o druidismo admite o possível retorno às camadas inferiores, enquanto o Espírito, conforme o Espiritismo, pode permanecer estacionário, mas não pode degenerar. Para completar a analogia, não teríamos que acrescentar à nossa escala, abaixo da terceira ordem, senão o círculo de annoufn para caracterizar o abismo ou a origem desconhecida das almas e, acima da primeira ordem, o círculo de ceugant, morada de Deus, inacessível às criaturas.



[1] Revista Espírita – abril/1858 – Allan Kardec

[2] Extraído do Magasin pittoresque, 1857.

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