terça-feira, 30 de julho de 2024

O DOUTOR XAVIER[1]

 


Allan Kardec

 

Sobre as diversas questões psicofisiológicas Um médico de grande talento, que designaremos pelo nome de Xavier, morto há alguns meses, e que se ocupou muito de magnetismo, havia deixado um manuscrito que supunha viesse revolucionar a Ciência. Antes de morrer, havia lido O Livro dos Espíritos e desejado um contato com o seu autor. A doença de que sucumbiu não lhe deixou tempo para isso. Sua evocação ocorreu a pedido da família, e as respostas que encerra, eminentemente instrutivas, levaram-nos a inseri-las nesta coletânea, suprimindo, entretanto, tudo quanto fosse de interesse particular.

 

1. Lembrais do manuscrito que deixastes?

– Ligo-lhe pouca importância.

2. Qual a vossa opinião atual sobre esse manuscrito?

– Obra vã, de um ser que se ignorava a si mesmo.

3. Pensáveis, entretanto, que essa obra poderia fazer uma revolução na Ciência?

– Agora vejo muito claramente.

4. Como Espírito, poderíeis corrigir e acabar esse manuscrito?

– Parti de um ponto que conhecia mal; talvez fosse preciso refazer tudo.

5. Sois feliz ou infeliz?

– Espero e sofro.

6. Que esperais?

– Novas provas.

7. Qual é a causa de vossos sofrimentos?

– O mal que fiz.

8. Entretanto, não fizestes o mal intencionalmente.

– Conheceis bem o coração do homem?

9. Sois errante ou encarnado?

– Errante.

10. Quando entre nós, qual a vossa opinião sobre a Divindade?

– Não acreditava nela.

11. E agora?

– Não creio bastante.

12. Tínheis desejo de entrar em contato comigo; lembrai-vos?

– Sim.

13. Vedes a mim e me reconheceis como sendo a pessoa com quem queríeis entrar em relação?

– Sim.

14. Que impressão vos deixou O Livro dos Espíritos?

– Transtornou-me.

15. Que pensais dele agora?

– É uma grande obra.

16. Que pensais do futuro da Doutrina Espírita?

– É grande, mas certos discípulos a prejudicam.

17. Quais são os que a prejudicam?

– Os que atacam o que existe: as religiões, as primeiras e mais simples crenças dos homens.

18. Como médico, e em razão dos estudos que fizestes, sem dúvida podeis responder às seguintes perguntas:

Pode o corpo conservar por alguns instantes a vida orgânica após a separação da alma?

– Sim.

19. Por quanto tempo?

 – Não há tempo.

20. Precisai vossa resposta, eu vos peço.

- Isso não dura senão alguns instantes.

21. Como se opera a separação entre a alma e o corpo?

– Como um fluido que escapa de um vaso qualquer.

22. Há uma linha de demarcação realmente nítida entre a vida e a morte?

– Esses dois estados se tocam e se confundem; assim, o Espírito se desprende pouco a pouco de seus laços; ele os desenlaça, não os arrebenta.

23. Esse desprendimento da alma opera-se mais prontamente em uns do que em outros?

– Sim: nos que em vida já se elevaram acima da matéria, porque, então, sua alma pertence mais ao mundo dos Espíritos do que ao mundo terrestre.

24. Em que momento se opera a união entre a alma e o corpo na criança?

– Quando a criança respira; como se recebesse a alma com o ar exterior.

 

Observação – Essa opinião é consequência do dogma católico. Com efeito, ensina a Igreja que a alma não pode ser salva senão pelo batismo; ora, como a morte natural intrauterina é muito frequente, em que se tornaria essa alma, privada, segundo ela, desse único meio de salvação, se existisse no corpo antes do nascimento? Para ser coerente, seria preciso que o batismo fosse realizado, senão de fato, pelo menos de intenção, desde o momento da concepção.

 

25. Como, então, explicais a vida intrauterina?

– É a da planta que vegeta. A criança vive vida animal.

26. Há crime em privar da vida uma criança, antes do seu nascimento, uma vez que, nessa fase, não tendo alma, ainda não seria um ser humano?

– A mãe, ou qualquer outra pessoa que tirar a vida de uma criança antes de nascer, cometerá sempre um crime, porquanto impede a alma de suportar as provas de que o corpo deverá servir de instrumento.

27. A expiação que deveria sofrer a alma impedida de se encarnar, não obstante, poderá ocorrer?

– Sim, mas Deus sabia que a alma não se uniria àquele corpo; assim, nenhuma alma deveria unir-se àquele envoltório corporal: era uma prova para a mãe.

 28. Dado o caso que o nascimento da criança pusesse em perigo a vida da mãe dela, haverá crime em sacrificar-se a primeira para salvar a segunda?

– Não; preferível é se sacrifique o ser que ainda não existe a sacrificar-se o que já existe.

29. A união entre a alma e o corpo opera-se instantânea ou gradualmente? Isto é, será necessário um tempo apreciável para que essa união seja completa?

– O Espírito não entra bruscamente no corpo. Para medir esse tempo, imaginai que o primeiro sopro que a criança recebe é a alma que entra no corpo: o tempo que o peito se eleva e se abaixa.

30. Há predestinação na união da alma com tal ou qual corpo, ou só na última hora é feita a escolha do corpo que ela tomará?

– Deus a marcou; essa questão exige maiores desenvolvimentos. Tendo o Espírito escolhido a prova a que queira submeter-se, pede para encarnar. Ora, Deus, que tudo sabe e vê, já antecipadamente sabia e vira que tal Espírito se uniria a tal corpo. Quando o Espírito nasce nas baixas camadas sociais, sabe que sua vida será de labor e sofrimento. A criança que vai nascer tem uma existência que resulta, até certo ponto, da posição de seus pais.

31. Por que pais bons e virtuosos dão nascimento a filhos de natureza perversa? Em outras palavras, por que as boas qualidades dos pais não atraem sempre, por simpatia, um Espírito bom para lhes animar o filho?

– Um Espírito mau pede bons pais na esperança de que seus conselhos o dirijam por um caminho melhor.

32. Podem os pais, por seus pensamentos e suas preces, atrair ao corpo do filho um Espírito bom , ao invés de um Espírito inferior?

– Não; mas podem melhorar o Espírito da criança a que deram nascimento: é seu dever; os maus filhos são uma prova para os pais.

33. Concebe-se o amor maternal para a conservação da vida da criança, mas, uma vez que esse amor está na Natureza, por que há mães que odeiam seus filhos e, muitas vezes, desde o nascimento?

– Espíritos maus, que tratam de entravar o Espírito da criança, a fim de que sucumba sob a prova que desejou.

34. Agradecemos as explicações que tivestes a bondade de nos dar.

– Tudo farei para vos instruir.

 

Observação – A teoria dada por esse Espírito sobre o instante da união entre a alma e o corpo não é absolutamente exata.

A união começa desde a concepção, isto é, a partir do momento em que o Espírito, sem estar encarnado, liga-se ao corpo por um laço fluídico, que cada vez mais se vai apertando até o instante em que a criança vê a luz. A encarnação só se completa quando a criança respira. (Vide O Livro dos Espíritos, nº  344 e seguintes.)[2]



[1] Revista Espírita – março/1858 – Allan Kardec

[2] N. do. T.: Este item entre parênteses não constava na edição original de 1858. Provavelmente foi inserido mais tarde na reimpressão desta revista

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