terça-feira, 2 de julho de 2024

O assino Lemaire[1], [2]

 

Allan Kardec

 

Condenado à pena última pelo júri de Aisne, e executado a 31 de dezembro de 1857.

Evocado em 29 de janeiro de 1858.

 

1. Rogo a Deus Todo-Poderoso permitir ao assassino Lemaire, executado a 31 de dezembro de 1857, que venha até nós.

– Eis-me aqui.

2. Como pôde tão prontamente atender ao nosso apelo?

– Raquel o disse[3].

3. Vendo-nos, que sensação experimentais?

– A de vergonha.

4. Como pode uma jovem, mansa como um cordeiro, servir de intermediário a um ser sanguinário como vós?

– Deus o permite.

5. Conservastes os sentidos até o último momento?

– Sim.

6. Após a execução tivestes imediata noção dessa nova existência?

– Eu estava imerso em grande perturbação, da qual, aliás, ainda não me libertei. Senti uma dor imensa, afigurando-se-me ser o coração quem a sofria. Vi rolar não sei quê aos pés do cadafalso; vi o sangue que corria e mais pungente se me tornou minha dor.

7. Era uma dor puramente física, análoga à que resultaria de um grande ferimento, pela amputação de um membro, por exemplo?

– Não; figurai-vos ante um remorso, uma grande dor moral.

8. Quando começastes a sentir essa dor?

– Desde que fiquei livre.

9. Mas a dor física do suplício, quem a experimentava: o corpo ou o Espírito?

– A dor moral estava em meu Espírito, sentindo o corpo a dor física; mas o Espírito desligado também dela se ressentia.

10. Vistes o corpo mutilado?

– Vi qualquer coisa de informe, à qual me parecia integrado; entretanto, reconhecia-me intacto, isto é, que eu era eu mesmo...

11. – Que impressões vos advieram desse fato?

– Eu sentia bastante a minha dor, estava completamente ligado a ela.

12. Será verdade que o corpo vive ainda alguns instantes depois da decapitação, tendo o supliciado a consciência das suas ideias?

– O Espírito retira-se pouco a pouco; quanto mais o retêm os laços materiais, menos pronta é a separação.

13. – Quanto tempo isso dura?

– Mais ou menos. (Ver a resposta precedente).

14. – Dizem que se há notado a expressão de cólera e movimentos na fisionomia de certos supliciados, como se quisessem falar; será isso efeito de contrações nervosas, ou ato da vontade?

– Da vontade, visto que o Espírito não se havia ainda desligado.

15. Qual o primeiro sentimento que experimentastes ao entrar na nova existência?

– Um sofrimento intolerável, uma espécie de remorso pungente, cuja causa ignorava.

16. – Acaso vos achastes reunido aos vossos cúmplices concomitantemente supliciados?

– Infelizmente, sim, por desgraça nossa, pois essa visão recíproca é um suplício contínuo, exprobrando-se uns aos outros os seus crimes.

17. Tendes encontrado as vossas vítimas?

– Vejo-as... são felizes; seus olhares perseguem-me... sinto que me varam o ser e debalde tento fugir-lhes.

18. Que impressão vos causam esses olhares?

– Vergonha e remorso. Ocasionei-os voluntariamente e ainda os abomino.

19. E qual a impressão que lhes causais?

– De piedade.

20. Terão por sua vez o ódio e o desejo de vingança?

– Não; seus votos atraem para mim a expiação. Não podeis avaliar o suplício horrível de tudo devermos àqueles a quem odiamos.

21. Lamentais a perda da vida corporal?

– Apenas lamento os meus crimes. Se o fato ainda dependesse de mim, não mais sucumbiria.

22. Como fostes conduzido à vida criminosa que levastes?

– Compreendei! Eu me julgava forte; escolhi uma rude prova; cedi às tentações do mal.

23. O pendor para o mal estava na vossa natureza, ou fostes também influenciado pelo meio em que vivestes?

– Sendo um Espírito inferior, a tendência para o mal estava na minha própria natureza. Quis elevar-me rapidamente, mas pedi mais do que comportavam minhas forças.

24. Se tivésseis recebido sãos princípios de educação, ter-vos-íeis desviado da senda criminosa?

– Sim, mas eu havia escolhido a condição do nascimento.

25. Acaso não vos poderíeis ter feito homem de bem?

– Um homem fraco é incapaz tanto para o bem quanto para o mal. Poderia, talvez, corrigir na vida o mal inerente à minha natureza, mas nunca me elevar à prática do bem.

26. Quando encarnado, acreditáveis em Deus?

– Não.

27. Dizem que na última hora vos arrependestes; é verdade?

– Porque acreditei num Deus vingativo, era natural que o temesse...

28. E agora o vosso arrependimento é mais sincero?

– Pudera! Vejo o que fiz...

29. Que pensais de Deus, agora?

– Sinto-o, mas não o compreendo.

30. Achais justo o castigo que vos infligiram na Terra?

– Sim.

31. Esperais obter o perdão dos vossos crimes?

– Não sei.

32. Como pretendeis repará-los?

– Por novas provações, conquanto me pareça que existe uma eternidade entre elas e mim.

33. Essas provas se cumprirão na Terra ou num outro mundo?

– Não sei.

34. Como podereis expiar vossas faltas passadas numa nova existência, se não lhes guardais a lembrança?

– Delas terei a presciência[4].

35. Onde vos achais agora?

– Estou no meu sofrimento.

36. Perguntamos qual o lugar em que vos encontrais...

– Perto de Ermance.

37. Estais reencarnado ou errante?

– Errante; se estivesse reencarnado, teria esperança. Já disse: parece-me que a eternidade está entre mim e a expiação.

38. Uma vez que assim é, sob que forma vos veríamos, se tal nos fosse possível?

– Ver-me-íeis sob a minha forma corpórea: a cabeça separada do tronco.

39. Poderíeis aparecer-nos?

– Não. Deixai-me.

40. Poderíeis dizer-nos como vos evadistes da prisão de Montdidier?

– Nada mais sei... é tão grande o meu sofrimento, que apenas guardo a lembrança do crime... Deixai-me.

41. Poderíamos concorrer para vos aliviar esse sofrimento?

– Fazei votos para que sobrevenha a expiação.



[1] Revista Espírita – março/1858 – Allan Kardec

[2] N. do T.: Vide O Céu e o Inferno, de Allan Kardec – Segunda Parte, capítulo VI – Criminosos arrependidos.

[3] Tendo sido evocada alguns dias antes por intermédio do mesmo médium, a senhorita Raquel apresentou-se instantaneamente. A respeito, foram-lhe feitas as seguintes perguntas:

1 – Como é que viestes tão prontamente, no mesmo instante em que vos evocamos? Dir-se-ia que estáveis preparada.

 – Quando Ermance (a médium) nos chama, vimos depressa.

2 – Tendes, pois, muita simpatia pela senhorita Ermance?

 – Há um laço entre ela e nós. Ela vinha a nós; nós vamos a ela.

3 – Entretanto, não há nenhuma semelhança entre seu caráter e o vosso; como é, então, que há simpatia?

 – Ela jamais deixou inteiramente o mundo dos Espíritos.

[4] N. do T.: Prescience (presciência) no original francês. No contexto acima, o termo mais adequado seria intuição.

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