terça-feira, 11 de junho de 2024

O FANTASMA DA SENHORITA CLAIRON[1],[2]

 

La barreirae Blanche


Allan Kardec

 

Esta história fez muito alarido em seu tempo, pela posição da heroína e pelo grande número de pessoas que a testemunharam. Não obstante sua singularidade, estaria provavelmente esquecida se a senhorita Clairon não a tivesse consignado em suas memórias, de onde extraímos o relato que vamos fazer. A analogia que apresenta com alguns fatos que se passam em nossos dias dá-lhe um lugar natural nesta coletânea.

Como se sabe, a senhorita Clairon era tão notável por sua beleza quanto por seu talento, quer como cantora, quer como atriz trágica. Havia inspirado a um jovem bretão, o Sr. de S..., uma dessas paixões que por vezes decidem uma vida, quando não se tem bastante força de caráter para triunfar. A senhorita Clairon respondeu somente com amizade; contudo, a assiduidade do Sr. De S... tornou-se de tal forma importuna que ela resolveu romper qualquer relação com ele. A mágoa que ele sentiu causou-lhe uma longa enfermidade, de que veio a morrer. Isto se passou em 1743.

Mas deixemos falar a senhorita Clairon.

Dois anos e meio havia decorrido entre o nosso conhecimento e a sua morte. Rogou-me lhe concedesse, em seus últimos instantes, a doçura de me ver ainda; minhas relações, porém, impediram-me de fazer essa visita. Morreu não tendo perto de si senão os criados e uma velha dama, única companhia que possuía desde muito tempo. Habitava, então, a muralha, perto de Chausséed’Antin, que começavam a construir; eu, à Rua de Bussy, perto da rua de Seine e da abadia Saint-Germain. Estava com minha mãe e vários amigos que vinham jantar comigo. Acabara de entoar belas canções pastorais que haviam encantado meus amigos quando, ao soarem onze horas, ouviu-se um grito muito agudo. Sua sombria modulação e sua longa duração espantaram todo o mundo; sentime desfalecer e estive quase um quarto de hora desacordada...

Todos de minha família, meus amigos, meus vizinhos, a própria polícia, ouviam o mesmo grito, sempre à mesma hora, partindo invariavelmente de sob as minhas janelas, parecendo sair vagamente do ar... Raramente eu jantava na cidade, mas, nos dias em que o fazia nada se ouvia; muitas vezes, quando me recolhia ao quarto, indagava à minha mãe e aos meus domésticos sobre alguma novidade, e logo o grito partia do meio de nós. Uma vez o presidente de B..., com quem havia jantado, quis acompanhar-me para assegurar-se de que nada me ocorreria no caminho. Quando, à minha porta, me desejava boa-noite, o grito partiu de entre nós. Assim como toda Paris, ele sabia dessa história: entretanto, foi posto em sua carruagem mais morto que vivo.

Outra vez, pedi ao meu camarada Rosely que me acompanhasse à Rua Saint-Honoré para escolher tecidos. O único assunto de nossa conversa foi meu fantasma (é assim que o chamavam). Cheio de espírito e em nada acreditando, esse rapaz, a despeito disso, ficara impressionado com a minha aventura; insistia para que eu evocasse o fantasma, prometendo-me que nele creria se me respondesse. Fosse por fraqueza ou por audácia, fiz o que ele pedia: o grito foi ouvido três vezes, terrível por seu estrépito e rapidez. Ao retornar, foi necessário o auxílio de todos da casa para tirar-nos da carruagem, onde estávamos desacordados. Depois dessa cena, fiquei alguns meses sem nada ouvir. Julgava-me livre para sempre, mas me enganava.

Todos os espetáculos haviam sido transferidos para Versalhes, para o casamento do delfim. Tinham-me arranjado um quarto na Avenida Saint-Cloud, que eu ocupava com a Sra. Grandval. Às três horas da manhã eu lhe disse: Estamos no fim do mundo; seria muito difícil que o grito nos viesse surpreender aqui.

Mal acabara de falar e o grito estalou! A Sra. Grandval acreditou que o inferno inteiro estava no quarto; usando camisola, correu a casa de alto a baixo, onde, aliás, ninguém pôde pregar os olhos durante a noite. Pelo menos foi a última vez que o ouvimos.

Sete ou oito dias após, conversando com os membros de minhas relações pessoais, à badalada das onze horas seguiu-se um tiro de fuzil, dado em uma de minhas janelas. Todos ouvimos o tiro e vimos o fogo, contudo, a janela nenhum dano sofrera.

Concluímos, todos, que queriam minha vida, que haviam errado o alvo e que seria necessário tomar precauções com vistas ao futuro. O Sr. de Marville, então tenente de polícia, mandou visitar as casas em frente à minha; a rua encheu-se de toda sorte de espiões possíveis; porém, por mais cuidados que se tomassem, durante três meses inteiros e sempre à mesma hora o tiro foi visto e ouvido, na mesma vidraça, sem que ninguém jamais tenha podido saber de onde partira. Esse fato foi constatado nos registros da polícia.

Acostumada ao meu fantasma, na verdade um pobre diabo que se prestava a pregar peças, não prestei atenção à hora. Como fizesse calor, abri a janela condenada e nos apoiamos, eu e o intendente, no balcão. Ao soar onze horas o tiro fez-se ouvir e ambos fomos lançados no meio do quarto, onde caímos feito mortos. Retornando a nós mesmos, sentindo que não tínhamos nada, examinando-nos e reconhecendo que havíamos recebido, ele na face esquerda e eu na direita, a mais terrível bofetada jamais aplicada, pusemo-nos a rir como dois loucos.

Dois dias depois, convidada pela senhorita Dumesnil para uma festa à noite em sua casa, na Barrière Blanche, tomei um fiacre às onze horas com minha camareira. Fazia o mais esplêndido luar e fomos conduzidas por bulevares que começavam a encher-se de casas. Indaga minha camareira: Não foi aqui que morreu o Sr. de S...? – Segundo as informações que me deram, sim, respondi-lhe, apontando com o dedo uma das duas casas à nossa frente. De uma delas partiu o mesmo tiro de fuzil que me perseguia: atravessou nosso fiacre; o cocheiro dobrou a marcha, crendo-se atacado por ladrões. Chegamos à festa, mal refeitos do susto e, de minha parte, tomada por um terror que, confesso, guardei por muito tempo. Mas, com armas de fogo essa proeza foi a última.

À explosão sucedeu um bater de palmas, com certo compasso e repetição. Esse ruído, ao qual a complacência do público me havia acostumado, não foi percebido por mim durante algum tempo, mas meus amigos o notaram. Temos espiado, disseram-me eles: é às onze horas, quase à vossa porta, que ele ocorre; ouvimos, mas não vemos ninguém; só pode ser a sequência do que antes experimentastes. Como o ruído nada tinha de terrível, não lhe guardei o tempo de duração. Não mais prestei atenção aos sons melodiosos que depois se fizeram ouvir; parecia voz celeste a esboçar uma ária nobre e tocante, prestes a ser cantada; essa voz começava na encruzilhada de Bussy e acabava em minha porta; e, como ocorrera com todos os outros sons precedentes, ouvia-se, mas nada se via. Finalmente, tudo cessou em pouco mais de dois anos e meio.

 

Algum tempo depois, a senhorita Clairon obteve, por intermédio da dama idosa que tinha sido a amiga devotada do Sr. de S..., o relato de seus últimos momentos.

Ele contava todos os minutos quando, às dez e meia seu lacaio veio dizer-lhe que a senhora, decididamente, não viria. Depois de um momento de silêncio, tomou-me a mão, em atitude de desespero que me apavorou. Desalmada!... nada ganhará com isso; persegui-la-ei depois de morto, tanto quanto a persegui em vida!... Quis tentar acalmá-lo, mas estava morto.

Na edição que temos à vista esse relato é precedido da seguinte nota, sem assinatura:

Eis uma anedota bem singular que, sem dúvida, induziu e induzirá as mais diversas opiniões. Ama-se o maravilhoso, mesmo sem nele crer: a senhorita Clairon parece convencida da realidade dos fatos que narra. Contentar-nos-emos em observar que ao tempo em que foi ou se supôs atormentada por seu fantasma, contava ela de vinte e dois e meio a vinte e cinco anos de idade; que é a idade da imaginação, e que nela essa faculdade era continuamente exercitada e exaltada pelo gênero de vida que levava, no teatro e fora dele. É preciso ainda lembrar que ela disse, no início de suas memórias, que, em sua infância, não se entretinha senão com aventuras de fantasmas e de feiticeiros, que lhe eram contadas como histórias verídicas.

Conhecendo o assunto somente através do relato da senhorita Clairon, só podemos julgá-lo por indução. Eis o nosso raciocínio: Esse fato, descrito em seus mínimos detalhes pela própria senhorita Clairon, tem mais autenticidade do que se tivesse sido narrado por terceiros. Acrescentemos que ao escrever a carta onde o fato está relatado, contava cerca de sessenta anos, já passada a idade da credulidade de que fala o autor da nota. Esse autor não põe em dúvida a boa-fé da senhorita Clairon a propósito de sua aventura, mas admite que ela tenha sido vítima de uma ilusão. Que o fosse uma vez, nada haveria de extraordinário; porém, que o tivesse sido durante dois anos e meio, já se nos afiguraria bem mais difícil, como mais difícil ainda é supor que essa ilusão houvesse sido compartilhada por tantas pessoas, testemunhas oculares e auriculares dos fatos, e pela própria polícia. Para nós, que conhecemos o que se passa nas manifestações espíritas, a aventura nada contém de surpreendente e a temos como provável. Nesta hipótese, não vacilamos em pensar que o autor de todos esses malefícios não seja outro senão a alma ou o Espírito do Sr. de S..., se, sobretudo, atentarmos para a coincidência de suas últimas palavras com a duração dos fenômenos. Havia ele dito: Persegui-la-ei depois de morto tanto quanto a persegui em vida. Ora, suas relações com a senhorita Clairon haviam durado dois anos e meio, ou seja, tanto tempo quanto o das manifestações que se seguiram à sua morte.

Algumas palavras ainda sobre a natureza desse Espírito.

Não era mau, e é com razão que a senhorita Clairon o qualifica como um pobre diabo; mas também não se pode dizer que fosse a própria bondade. A paixão violenta, sob a qual sucumbiu como homem, prova que nele as ideias terrestres eram dominantes. Os traços profundos dessa paixão, que sobreviveu à destruição do corpo, provam que, como Espírito, ainda se achava sob a influência da matéria. Por mais inofensiva fosse sua vingança, denota sentimentos pouco elevados.

Se, pois, quisermos reportar-nos ao nosso quadro da classificação dos Espíritos, não será difícil assinalar-lhe a classe; a ausência de maldade real naturalmente o afasta da última classe, a dos Espíritos impuros; mas, evidentemente, mantinha-se ligado a outras classes da mesma ordem; nada nele poderia justificar uma posição superior.

Uma coisa digna de nota é a sucessão dos diferentes modos pelos quais manifestava sua presença. Foi no mesmo dia e no momento exato de sua morte que ele se fez ouvir pela primeira vez, e isso em meio a um alegre jantar. Quando vivo, via a senhorita Clairon, pelo pensamento, envolvida por essa auréola que a imaginação empresta ao objeto de uma paixão ardente; mas, uma vez desembaraçada a alma de seu véu material, a ilusão cedeu à realidade. Lá está ele, a seu lado, e a vê cercada de amigos, tudo lhe excitando o ciúme; por sua jovialidade e encanto, ela parece insultar o seu desespero, que se traduz por um grito de raiva repetido todo dia à mesma hora, como se a censurasse por se haver recusado de o consolar em seus últimos momentos. Aos gritos se sucedem os tiros, inofensivos, é verdade, mas que no mínimo denotam uma raiva impotente e a intenção de perturbar seu repouso. Mais tarde, seu desespero toma um caráter mais sereno; retorna, sem dúvida, a ideias mais sadias, parecendo haver readquirido o domínio de si; restava-lhe a lembrança dos aplausos de que ela era objeto, e ele os repete.

Finalmente, diz-lhe adeus por meio de sons que lembravam o eco dessa voz melodiosa que em vida tanto o fascinara.



[1] Revista Espírita – fevereiro/1858 – Allan Kardec

[2] Nascida em 1723, a senhorita Clairon morreu em 1803. Estreou em uma companhia italiana aos 13 anos e na Comédia Francesa em 1743. Retirou-se do teatro em 1765, aos 42 anos de idade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário