Charity - William-Adolphe Bouguereauereau
Allan Kardec
(Sociedade de
Estudos Espíritas, sessão de 8 de junho de 1858)
Sede bons e caridosos: essa a chave dos céus, chave que
tendes em vossas mãos. Toda a eterna felicidade se contém neste preceito:
“Amai-vos uns aos outros”. Não pode a alma elevar-se às altas regiões
espirituais, senão pelo devotamento ao próximo; somente nos arroubos da
caridade encontra ela ventura e consolação.
Sede bons, amparai os vossos irmãos, deixai de lado a
horrenda chaga do egoísmo. Cumprido esse dever, abrir-se-vos-á o caminho da
felicidade eterna. Ao demais, qual dentre vós ainda não sentiu o coração pulsar
de júbilo, de íntima alegria, à narrativa de um ato de bela dedicação, de uma
obra verdadeiramente caridosa? Se unicamente buscásseis a volúpia que uma ação
boa proporciona, conservar-vos-íeis sempre na senda do progresso espiritual.
Não vos faltam os exemplos; rara é apenas a boa-vontade. Notai que a vossa
História guarda piedosa lembrança de uma multidão de homens de bem. Eu vos
citaria aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objetivo senão melhorar o
vosso globo.
Não vos disse o Cristo tudo o que concerne às virtudes
da caridade e do amor? Por que desprezar os seus ensinamentos divinos? Por que
fechar o ouvido às suas divinas palavras, o coração a todos os seus bondosos
preceitos? Quisera eu que dispensassem mais interesse, mais fé às leituras
evangélicas. Desprezam, porém, esse livro, consideram-no repositório de
palavras ocas, uma carta fechada; deixam no esquecimento esse código admirável.
Vossos males provêm todos do abandono voluntário a que votais esse resumo das
leis divinas. Lede-lhe as páginas cintilantes do devotamento de Jesus, e
meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar vos prometer um trabalho
sobre a caridade, quando penso que se encontram nesse livro todos os
ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes.
Homens fortes, armai-vos; homens fracos, fazei da vossa
brandura, da vossa fé, as vossas armas. Sede mais persuasivos, mais constantes
na propagação da vossa nova doutrina. Apenas encorajamento é o que vos vimos
dar; apenas para vos estimularmos o zelo e as virtudes é que Deus permite nos
manifestemos a vós outros. Mas, se cada um o quisesse, bastaria a sua própria
vontade e a ajuda de Deus; as manifestações espíritas unicamente se produzem
para os de olhos fechados e corações indóceis. Há, entre vós, homens que têm a
cumprir missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei se
resplandeçam seus méritos e sereis, vós próprios, exaltados pelo desinteresse e
pela fé viva de que vos penetrarão.
As advertências detalhadas que vos deveriam ser dadas,
sobre a necessidade de ampliar o círculo da caridade e nele incluir todos os
infelizes, cujas misérias são ignoradas; todas as dores que, em nome dessa
doutrina – caridade – se devem buscar em seus redutos para os consolar, seriam
muito extensas. Vejo com satisfação que homens eminentes e poderosos auxiliam
esse progresso, que deve unir todas as classes humanas: os felizes e os
infelizes. Os infelizes – coisa estranha! – dão-se todos as mãos e se ajudam
mutuamente em sua miséria. Por que são os felizes mais morosos em ouvir a voz
do infeliz? Por que necessitamos da mão dos poderosos da Terra para impulsionar
as missões de caridade? Por que não respondemos com mais ardor a esses apelos?
Por que deixamos a miséria, assim como o prazer, macular o quadro da
Humanidade?
A caridade é a virtude fundamental sobre que há de
repousar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras.
Sem a caridade não há esperar melhor sorte, não há interesse moral que nos
guie; sem a caridade não há fé, pois a fé não é mais do que pura luminosidade
que torna brilhante uma alma caridosa; é a sua consequência decisiva.
Quando deixardes que vosso coração se abra à súplica do
primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes algo, sem questionar
se sua miséria não é fingida ou se seu mal provém de um vício de que deu causa;
quando abandonardes toda a justiça nas mãos divinas; quando deixardes o castigo
das falsas misérias ao Criador; quando, por fim, praticardes a caridade
unicamente pela felicidade que ela proporciona e sem inquirir de sua utilidade,
então sereis os filhos amados de Deus e ele vos atrairá a si.
A caridade é, em todos os mundos, a eterna âncora da
salvação; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude,
dada por ele à criatura. Como desprezar essa bondade suprema? Qual o coração,
disso ciente, bastante perverso para recalcar em si e expulsar esse sentimento
todo divino? Qual o filho bastante mau para se rebelar contra essa doce
carícia: a caridade?
Não ouso falar do que fiz, porque também os Espíritos
têm o pudor de suas obras; considero, porém, a que iniciei como uma das que
mais hão de contribuir para o alívio dos vossos semelhantes.
Vejo com frequência os Espíritos a pedirem lhes seja
dado, por missão, continuar a minha tarefa. Vejo-os, minhas bondosas e queridas
irmãs, no piedoso e divino ministério; vejo-os praticando a virtude que vos
recomendo, com todo o júbilo que deriva de uma existência de dedicação e
sacrifícios. Imensa dita é a minha, por ver quanto lhes honra o caráter, quão
estimada e protegida é a missão que desempenham. Homens de bem, de boa e firme
vontade, uni-vos para continuar amplamente a obra de propagação da caridade; no
exercício mesmo dessa virtude, encontrareis a vossa recompensa; não há alegria
espiritual que ela não proporcione já na vida presente. Sede unidos, amai-vos
uns aos outros, segundo os preceitos do Cristo. Assim seja.
Agradecemos a São Vicente de
Paulo a bela e boa comunicação que se dignou de nos dar. – Gostaria que fosse
proveitosa a todos.
Permitiríeis que formulássemos algumas perguntas
complementares a respeito do que acabastes de dizer?
– Eu o desejo muito; meu objetivo é vos esclarecer; perguntai
o que quiserdes.
1. Pode-se entender a caridade de duas maneiras: a esmola propriamente
dita e o amor aos semelhantes. Quando dissestes que era necessário que o
coração se abrisse à súplica do infeliz que nos estendesse a mão, sem
questionarmos se não seria fingida a sua miséria, não quisestes falar da
caridade do ponto de vista da esmola?
– Sim; somente nesse parágrafo.
2. Dissestes que era preciso deixar à justiça de Deus a apreciação
da falsa miséria. Parece-nos, entretanto, que dar sem discernimento às pessoas
que não têm necessidade, ou que poderiam ganhar a vida num trabalho honesto,
será estimular o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem aberta com
muita facilidade a bolsa dos outros, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo
dos verdadeiros infelizes.
– Podeis discernir os que podem trabalhar e, então, a
caridade vos obriga a fazer tudo para lhes proporcionar trabalho; entretanto,
também existem falsos pobres, capazes de simular com habilidade misérias que
não possuem; é para os tais que se deve deixar a Deus toda a justiça.
3. Aquele que não pode dar senão um centavo, e que deve
escolher entre dois infelizes que lhe pedem, não tem razão de inquirir quem, de
fato, tem mais necessidade, ou deve dar sem exame ao primeiro que aparecer?
– Deve dar ao que pareça sofrer mais.
4. Não se deve considerar também como fazendo parte da
caridade o modo por que é feita?
– É sobretudo na maneira de fazer a caridade que está o
seu maior mérito; a bondade é sempre o indício de uma bela alma.
5. Que tipo de mérito concedeis àqueles a quem chamamos de
benfeitores de ocasião?
– Só fazem o bem pela metade. Seus benefícios não lhes
aproveitam.
6. Disse Jesus: “Que vossa mão direita não saiba o que faz
vossa mão esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação?
– Apenas o mérito do orgulho, pelo que serão punidos.
7. Em sua acepção mais abrangente, a caridade cristã não
compreende igualmente a doçura, a benevolência e a indulgência para com as
fraquezas dos outros?
– Imitai Jesus; ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais
que nunca[3].
8. A caridade é bem compreendida quando praticada exclusivamente
entre pessoas que professam a mesma opinião ou pertencem a um mesmo partido?
– Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que
se deve abolir, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre essa questão que
concentramos os nossos esforços.
9. Suponhamos que alguém vê dois homens em perigo, mas não
pode salvar senão um. Qual dos dois deverá salvar, considerando-se que um deles
é seu amigo e o outro é seu inimigo?
– Deve salvar o amigo, pois este amigo poderia acusá-lo
de não gostar dele; quanto ao outro, Deus se encarregará.
[1] Revista Espírita – agosto/1858 – Allan Kardec
[2] N. do T.: Essa instrução de São Vicente de
Paulo, com algumas modificações que a reduziram, foi inserida por Allan Kardec
em O Evangelho segundo o Espiritismo. Corresponde, na edição definitiva
de 1866, ao capítulo XIII, item 12.
[3] N. do T.: Vide questão 886, de O Livro dos
Espíritos.
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