terça-feira, 16 de janeiro de 2024

PLATÃO: DOUTRINA DA ESCOLHA DAS PROVAS[1]

 

FUSO DA NECESSIDADE


Allan Kardec

 

Através dos curiosos documentos célticos que publicamos em nosso número de abril, vimos que a doutrina da reencarnação era professada pelos druidas, segundo o princípio da marcha ascendente da alma humana, percorrendo os diversos graus de nossa escala espírita. Todos sabem que a ideia da reencarnação remonta à mais alta Antiguidade e que o próprio Pitágoras a havia haurido entre os indianos e os egípcios. Não é, pois, de admirar que Platão, Sócrates e outros mais partilhassem uma opinião admitida pelos ilustres filósofos daquele tempo; mas o que talvez seja ainda mais notável é encontrar, desde aquela época, o princípio da doutrina da escolha das provas, hoje ensinada pelos Espíritos, doutrina que pressupõe a reencarnação, sem a qual não haveria nenhuma razão de ser. Não discutiremos hoje essa teoria, que estava tão longe de nosso pensamento quando os Espíritos no-la revelaram, que nos surpreendeu estranhamente, porque – confessamos humildemente – o que Platão escrevera sobre esse assunto especial nos era então completamente desconhecido, nova evidência, entre tantas outras, de que as comunicações que nos foram dadas não refletem absolutamente a nossa opinião pessoal. Quanto à de Platão, apenas constatamos a ideia principal, cabendo facilmente a cada um a forma sob a qual é apresentada e julgar os pontos de contato que, em certos detalhes, possa ter com a nossa teoria atual. Em sua alegoria do Fuso da Necessidade, ele imagina um diálogo entre Sócrates e Glauco, atribuindo ao primeiro o discurso seguinte, sobre as revelações do armênio Er, personagem fictício, segundo toda probabilidade, embora alguns o tomem por Zoroastro.

Compreende-se facilmente que esse relato nada mais é do que um quadro imaginado para desenvolver a ideia principal: a imortalidade da alma, a sucessão das existências, a escolha de tais existências por efeito do livre-arbítrio, enfim, as consequências felizes ou infelizes dessa escolha, muitas vezes imprudente, proposições encontradas todas em O Livro dos Espíritos e que vêm confirmar os numerosos fatos citados nesta Revista.

O relato que vos quero trazer à memória – diz Sócrates a Glauco – é o de um homem de coração: Er, o armênio, originário da Panfília. Ele tinha sido morto numa batalha. Dez dias mais tarde, como levassem os cadáveres já desfigurados dos que com ele haviam tombado, o seu foi encontrado são e intacto. Transportaram-no para sua casa a fim de fazer os funerais e, no segundo dia, quando foi posto sobre a fogueira, reviveu e contou o que tinha visto na outra vida.

Tão logo sua alma havia saído do corpo, viu-se a caminho com uma porção de outras almas, chegando a um lugar maravilhoso, de onde se viam, na Terra, duas aberturas vizinhas uma da outra, e duas outras no céu, correspondentes àquelas. Entre essas duas regiões estavam assentados os juízes. Assim que pronunciavam uma sentença, ordenavam aos justos tomarem lugar à direita, por uma das aberturas do céu, após lhes haver fixado no peito um letreiro contendo o julgamento pronunciado em seu favor, e ordenando aos maus que tomassem o caminho da esquerda, localizado nos abismos, levando às costas um letreiro semelhante, onde estavam relacionadas todas as suas ações. Quando chegou sua vez de apresentar-se, os juízes declararam que deveria levar aos homens a notícia do que se passava nesse outro mundo, ordenando-lhe que ouvisse e observasse tudo quanto a ele se referisse.

A princípio viu desaparecerem as almas que haviam sido julgadas, umas subindo para o Céu, outras descendo à Terra, através de duas aberturas que se correspondiam: enquanto pela segunda abertura da Terra via saírem almas cobertas de poeira e imundície, ao mesmo tempo desciam almas puras e sem mácula pela outra porta do céu. Todas pareciam vir de uma longa viagem e se demoravam prazerosamente numa campina, qual se fora um local de reunião. As que se conheciam saudavam-se mutuamente e pediam notícias do que se passava nos lugares de onde vinham: o Céu e a Terra. Aqui, entre gemidos e lágrimas, era lembrado tudo quanto haviam sofrido ou visto sofrer quando estagiavam na Terra; ali, contavam as alegrias do Céu e a felicidade de contemplar as maravilhas divinas.

Seria demasiado longo seguir todo o discurso do armênio, mas eis, em suma, o que dizia. Cada uma das almas suportava dez vezes a pena das injustiças que havia cometido na Terra. A duração de cada punição era de cem anos, duração natural da vida humana, a fim de que o castigo fosse sempre decuplicado para cada crime. Assim, os que fizeram perecer os seus semelhantes em grande quantidade; atraiçoaram cidades ou exércitos; reduziram seus concidadãos à escravidão ou cometeram outras malvadezas eram atormentados ao décuplo para cada um desses crimes. Os que, ao contrário, só espalharam o bem em torno de si e foram justos e virtuosos, recebiam na mesma proporção a recompensa de suas boas ações. O que dizia das crianças, que a morte leva pouco depois do nascimento, merece menores comentários; mas assegurava que ao ímpio, ao filho desnaturado e ao homicida estavam reservados os mais cruéis sofrimentos, enquanto ao homem religioso e ao bom filho as felicidades mais abundantes.

Estava presente quando uma alma perguntara a outra onde estava o grande Ardieu. Esse Ardieu havia sido tirano numa cidade da Panfília, mil anos antes; tinha matado seu velho pai, o irmão mais velho e cometido, ao que se dizia, vários outros crimes hediondos. “Ele não vem nem virá jamais aqui”, respondeu a alma. A esse respeito todos fomos testemunhas de um espetáculo horroroso. Quando estávamos prestes a sair do abismo, após haver cumprido nossas penas, vimos Ardieu e vários outros, cuja maioria era formada de tiranos como ele, ou de seres que, em situação particular, tinham cometido grandes crimes: em vão esforçavam-se por subir; e todas as vezes que esses culpados, cujos crimes não tinham remédio ou não haviam sido suficientemente expiados, tentavam sair, o abismo os repelia, bramindo. Então, personagens detestáveis, de corpos inflamados, que lá se encontravam, acorriam a esses bramidos. Primeiramente levaram à força alguns desses criminosos; quanto a Ardieu e os outros, ataram-lhes os pés, as mãos, a cabeça e, lançando-os por terra e os maltratando violentamente à custa de pancadas, os arrastaram para fora da estrada, através de sarças sangrentas, repetindo às sombras à medida que passavam algumas delas: “Eis os tiranos e os homicidas; nós os arrastamos para lançá-los no Tártaro”. Essa alma acrescentava que, entre tantos casos terríveis, nada lhe causava mais pavor que o bramido do abismo, sendo para elas uma suprema alegria poderem sair em silêncio.

Tais eram, aproximadamente, os julgamentos das almas, seus castigos e suas recompensas.

Após sete dias de repouso nessa campina, as almas tiveram que partir no oitavo, pondo-se a caminho. Ao cabo de quatro dias de viagem, perceberam do alto, em toda a superfície do Céu e da Terra, uma luz imensa, aprumada como uma coluna e semelhante ao quartzo irisado, porém mais brilhante e mais pura. Um só dia foi suficiente para alcançá-la e então viram, mais ou menos no meio dessa muralha, a extremidade das cadeias que se ligam aos céus. É isso que os sustenta, é o envoltório da nau do mundo, é o vasto cinturão que o circunda. No topo estava suspenso o Fuso da Necessidade, em torno do qual se formavam todas as circunferências[2].

Em torno do fuso, e a distâncias iguais, sentavam-se em tronos as três Parcas, filhas da Necessidade: Lachesis, Clotho e Atropos, vestidas de branco e coroadas com uma pequena faixa. Cantavam, associando-se ao concerto das Sereias: Lachesis, o passado; Clotho, o presente, e Atropos, o futuro. Com a mão direita Clotho tocava vez por outra o exterior do fuso, cabendo a Atropos, com a mão esquerda, imprimir movimentos aos círculos interiores, enquanto alternadamente, ora com uma mão, ora com a outra, Lachesis tocava no fuso e numa espécie de balança interior.

Tão logo chegavam, as almas tinham que se apresentar a Lachesis. Em primeiro lugar, um hierofante as colocava ordenadamente em fila; depois, tomando do colo de Lachesis as sortes ou números em que cada alma devia ser chamada, bem como as diversas condições humanas oferecidas à sua escolha, subia a um estrado e falava assim: “Eis o que disse a virgem Lachesis, Filha da Necessidade: Almas passageiras, ireis iniciar uma nova carreira e renascer na condição mortal. Não se vos assinalará o gênio; vós mesmas o escolhereis. Escolherá aquela que a sorte chamar em primeiro lugar e essa escolha será irrevogável. A virtude não pertence a ninguém: alia-se àquele que a dignifica e abandona quem a despreza. Cada um é responsável pela escolha que faz, Deus é inocente.” A estas palavras ele espalhava os números e cada alma apanhava o que lhe caía à frente, exceto o armênio, a quem isso não era permitido. Em seguida o hierofante desvendou-lhes todos os gêneros de vida, em maior número do que as almas ali reunidas. A variedade era infinita; encontravam-se ao mesmo tempo todas as condições humanas, assim como a dos animais. Havia tiranias: umas duravam até a morte, enquanto outras, interrompidas bruscamente, acabavam na pobreza, no exílio e no abandono. A ilustração mostrava-se sob diversas faces: podia-se escolher a beleza, a arte de agradar, os combates, a vitória ou a nobreza de raça. Estados completamente obscuros em todos os sentidos, ou intermediários, misturas de riqueza e de pobreza, de saúde e de doença, eram oferecidos à escolha: havia também condições de mulher que apresentavam a mesma variedade.

Está evidentemente aí, meu caro Glauco, a prova que é temida pela Humanidade. Que cada um de nós possa refletir, deixando todos os estudos vãos para se entregar à Ciência, que faz a fortuna do homem. Procuremos um mestre que nos ensine a discernir entre o bom e o mau destino, e a escolher todo o bem que o céu nos proporciona. Examinemos com ele que situações humanas, separadas ou reunidas, conduzem às boas ações: se a beleza, por exemplo, unida à pobreza ou à riqueza, ou a tal disposição da alma deve produzir a virtude ou o vício; qual a vantagem de um nascimento brilhante ou comum, a vida privada ou pública, a força ou a fraqueza, a instrução ou a ignorância, enfim, tudo o que o homem recebe da Natureza e tudo quanto contém em si mesmo. Esclarecidos pela consciência, decidamos qual destino nossa alma deve preferir. Sim, o pior dos destinos seria o que a tornasse injusta, e o melhor aquele que incessantemente a conduzirá à virtude: tudo o mais nada significa para nós. Iríamos esquecer que não há escolha mais salutar após a morte do que durante a vida! Ah! Que esse dogma sagrado se identifique para sempre com nossa alma, a fim de não se deixar fascinar na Terra pelas riquezas, nem por outros males dessa natureza e que, lançando-se com avidez sobre a condição do tirano ou qualquer outro semelhante, não se exponha a cometer um grande número de males sem remédio e a sofrer outros ainda maiores.

Segundo o relato de nosso mensageiro, o hierofante havia dito: “Àquele que escolher por último, contanto que o faça com discernimento e que seja coerente em sua conduta, será prometida uma vida feliz. O que escolher em primeiro lugar guarde-se de ser muito confiado, e que o último não se desespere.” Então, aquele que a sorte distinguiu em primeiro lugar avançou apressadamente e escolheu a mais importante tirania; levado por sua imprudência e por sua avidez, e sem olhar bastante para o que estava fazendo, não percebeu a fatalidade ligada ao objeto da escolha, que faria com que um dia comesse a carne de seus próprios filhos, além de muitos outros crimes terríveis. Mas quando considerou a sorte que havia escolhido, gemeu, lamentou-se e, esquecendo as lições do hierofante, acabou acusando como responsáveis por seus males a fortuna, os gênios, tudo o mais, exceto a si mesmo[3]. Esta alma era do número daquelas que vinham do céu: tinha vivido precedentemente num Estado bem governado e havia feito o bem mais pela força do hábito do que por filosofia. Eis por que, dentre as que caíam em semelhantes desenganos, as almas provenientes do céu não eram as menos numerosas, em virtude de não haverem sido provadas pelo sofrimento. Ao contrário, aquelas que, tendo passado pela morada subterrânea, haviam sofrido e visto sofrer, não escolhiam assim tão depressa. Daí, independentemente do acaso das posições a serem chamadas a escolher, resultava uma espécie de troca de bens e males para a maior parte das almas. Assim, um homem que, a cada renovação de sua vida na Terra, se aplicasse constantemente à sã filosofia e tivesse a felicidade de não ser contemplado com as últimas sortes, segundo esse relato teria grande probabilidade não somente de ser feliz neste planeta, mas, ainda, em sua viagem deste para o outro mundo e em seu retorno, de marchar pelo caminho unido do céu, e não mais pelos atalhos penosos do abismo subterrâneo.

Acrescentou o armênio ser um espetáculo curioso ver de que maneira cada alma fazia sua escolha. Nada mais estranho e, ao mesmo tempo, mais digno de compaixão e zombaria. Na maioria das vezes a escolha era feita conforme os hábitos da vida anterior. Er tinha visto uma alma, que outrora pertencera a Orfeu, escolher a alma de um cisne, por ódio às mulheres, que lhe haviam provocado a morte, não querendo dever seu nascimento a nenhuma delas; a alma de Thomyris havia escolhido a condição de um rouxinol; e, reciprocamente, um cisne que, assim como ele, havia adotado a natureza do homem. Uma outra alma, a vigésima a ser chamada para escolher, tinha assumido a natureza de um leão: era a de Ajax, filho de Telamon. Detestava a Humanidade, ao relembrar o julgamento que lhe havia arrebatado as armas de Aquiles. Depois dessa, veio a alma de Agamenon, cujas desgraças o tornavam também inimigo dos homens: assumiu a posição de águia. A alma de Atalante, chamada a escolher na metade da cerimônia, havendo considerado as grandes homenagens prestadas aos atletas, não pôde resistir ao desejo de tornar-se atleta. Epeu, que construiu o cavalo de Tróia, tornou-se uma mulher laboriosa. A alma do bobo Teresita, uma das últimas a se apresentar, revestiu as formas de um macaco. A alma de Ulisses, a quem o acaso havia chamado por último, apresentou-se também para escolher: como a recordação de seus longos revezes lhe houvesse tirado toda a ambição, por muito tempo procurou e penosamente descobriu, num recanto, a vida tranquila de um homem privado que todas as outras almas haviam descartado. Ao percebê-lo, disse que não teria feito outra escolha, mesmo que tivesse sido a primeira alma a ser chamada. Os animais, sejam quais forem, passam igualmente uns pelos outros ou por corpos humanos: os que foram maus tornam-se bestas ferozes e os bons, animais domesticados.

Depois que todas as almas fizeram a escolha de uma condição, aproximaram-se de Lachesis segundo a ordem que haviam escolhido. A cada uma deu Parca o gênio que fora preferido, a fim de lhes servir de guardião durante a vida e auxiliá-las no cumprimento de seu destino. Primeiro, esse gênio as conduzia a Clotho que, com a mão e com um giro do fuso, confirmava o destino escolhido. Depois de haver tocado no fuso, o gênio a conduzia a Atropos, que enrolava o fio para tornar irrevogável aquilo que havia sido fiado por Clotho. Em seguida, avançavam até o trono da Necessidade, ao lado do qual a alma e seu gênio passavam juntos. Tão logo haviam todas passado, dirigiam-se para uma planície do Letes – o Esquecimento[4] – onde experimentavam um calor insuportável, visto aí não haver nem árvores nem plantas. Morrendo o dia, passaram a noite junto ao rio Ameles – ausência de pensamentos sérios – cujas águas todos eram obrigados a beber, embora nenhum vaso as pudesse conter; mas os imprudentes bebiam demais. Os que o faziam sem cessar perdiam completamente a memória. Em seguida adormeciam, mas, em torno de meia-noite, ouviu-se o ribombar de um trovão, acompanhado de tremor de terra; logo as almas se dispersaram aqui e ali, pelos diversos pontos de seu nascimento terrestre, semelhante a estrelas que, de repente, cintilassem no céu. Quanto a Er, havia sido impedido de beber da água do rio; não sabia, entretanto, nem onde nem como sua alma se havia reunido novamente ao corpo; contudo, pela manhã, abrindo os olhos de repente, percebeu que se deitara sobre a fogueira.

Tal é o mito, caro Glauco, que a tradição conserva até hoje. Ele pode preservar-nos de nossa perda: se dermos crédito a ele, passaremos felizmente o Letes e manteremos nossa alma purificada de toda mácula.



[1] Revista Espírita – Setembro/1858 – Allan Kardec

[2] São as diversas esferas dos planetas ou os diversos andares do céu, girando em torno da Terra, fixado ao eixo daquele mesmo fuso. (V.COUSIN).

[3] Os Antigos não atribuíam à palavra tirano o mesmo sentido que lhe damos hoje. Esse nome era dado a todos aqueles que se apoderavam do poder soberano, fossem quais fossem suas qualidades, boas ou más; a História cita tiranos que fizeram o bem; como, entretanto, o contrário acontecia com mais frequência e, além disso, para satisfazer a ambição ou perpetuar-se no poder, nenhum crime lhes era defeso, e esse vocábulo tornou-se, mais tarde, sinônimo de cruel e se aplica a todo homem que abusa de sua autoridade.

Ao escolher a tirania mais importante, a alma de que fala Er não tinha procurado a crueldade, mas simplesmente o mais vasto poder, como condição de sua nova existência; quando sua escolha tornou-se irrevogável, percebeu que esse mesmo poder arrastá-la-ia ao crime, lamentando havê-la feito e a todos acusando por seus males, exceto a si mesma. É a história da maioria dos homens que, mesmo não admitindo confessar, são os artífices de sua própria desgraça.

[4] Alusão ao esquecimento que se segue à passagem de uma existência a outra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário