sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

IDENTIFICAÇÃO COM O MUNDO ESPIRITUAL[1]

 



Andres Gustavo Arruda

           

Lançai para adiante o olhar; quanto mais vos elevardes pelo pensamento, acima da vida material, tanto menos vos magoarão as coisas da Terra. 

(Allan Kardec, O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XII).

 

Com o advento da Doutrina Espírita foi-nos revelada, de forma inconcussa, a existência do mundo espiritual.  Assim, a visão estreita que outrora tínhamos acerca da vida e do objetivo de nossa estada na Terra deu lugar ao horizonte ilimitado e infinito da dimensão extrafísica, e, dessarte, compreendemos que nossa existência no plano físico consiste em estágio, no qual devemos empreender o maior esforço possível para nos aperfeiçoarmos intelecto-moralmente e avançarmos alguns passos na senda da evolução.

Sobre as consequências decorrentes dessa visão espiritualista da vida e da crença na existência do mundo espiritual, assim se exprimiu Kardec[2]:

Revelando-nos a existência do mundo invisível que nos cerca e em meio do qual vivemos sem o suspeitarmos, ele nos dá a conhecer, pelo exemplo dos que viveram, as condições da nossa felicidade ou da nossa desgraça futuras; explica a causa de nossos sofrimentos na Terra e a maneira de os suavizarmos.[...] O homem, convencido da grandeza e da importância de sua existência futura, que é eterna, a compara com a incerteza da vida terrena, que é tão curta,  e se eleva pelo pensamento acima das mesquinhas considerações humanas. Conhecendo a causa e o objetivo de suas misérias, suporta-as com paciência e resignação, porque sabe que são o meio de chegar a um estado melhor. (grifamos).

À face do que acima destacamos, infere-se que nunca estamos fora do mundo espiritual, posto que estejamos encarnados. Os Espíritos desencarnados, estes sim, encontram-se fora do mundo físico, embora se relacionem mentalmente conosco de forma incessante. Ao demais, devemos lembrar que a dimensão extrafísica é a das causas, donde tudo se origina, e a dimensão material ou física é a dos efeitos. Desta forma, procuremos nos identificar, desde já, com o nosso mundo de origem, a fim de não passarmos, no Além, por um processo de reeducação espiritual, em face dos nossos conceitos equivocados acerca do mundo dos Espíritos. Para tal, não se faz mister que sejamos dotados da faculdade de vidência ou de vista dupla. Não é disso que estamos falando. Consiste essa identificação com o mundo espiritual a convicção firme e inabalável da nossa condição de seres espirituais e de pautarmos nossa vivência diária de acordo com esse entendimento, pois a crença nessa realidade não pode e não deve ser um simples fato; é preciso que nosso coração seja tocado e que esse conhecimento  mude nossa forma de pensar, agir e sentir. Disso resulta o impositivo da prática dos ensinamentos de Jesus, uma vez que o Evangelho é o caminho que nos levará à felicidade futura.

Ressaltemos que é natural a dificuldade de identificação com o mundo espiritual por parte de nós, Espíritos encarnados, bem como a adaptação dos recém-libertos do corpo físico à nova realidade, conforme se conclui do que acentua o Espírito Cairbar Schutel, na obra “Voltei”, do Irmão Jacob[3]:

Comentou Schutel as surpresas dos primeiros dias do homem desencarnado, na vida extracorpórea, alegando que os decênios transcorridos no corpo carnal imprimem hábitos que, efetivamente, passam a constituir uma ‘’segunda natureza’’ para a individualidade.

Importante lembrarmos que o fato sermos – os espíritas – dotados de conhecimentos espirituais não nos torna indenes às dificuldades acima mencionadas, haja vista que, para a superação das mesmas é imprescindível a transformação moral para melhor, pois, do contrário, ainda que estejamos no Espiritismo, o Espiritismo não estará em nós. Vejamos, agora, alguns caracteres que constituem o Espírito elevado – aquele que se identifica, já na vida corpórea, com o mundo espiritual[4]:

918. Por que sinais se pode reconhecer no homem o progresso real que deve elevar o seu Espírito na hierarquia espírita?

− O Espírito prova a sua elevação quando todos os atos da sua vida corpórea constituem a prática da lei de Deus e quando compreende por antecipação a vida espiritual. (grifamos).

Compreender por antecipação a vida espiritual é identificar-se plenamente com ela. É viver tendo consciência de que, a qualquer momento, poderemos retornar para nosso mundo de origem, onde nos depararemos com as nossas próprias criações.

 

O testemunho de Kardec

Conforme asseverado alhures, a identificação com o mundo espiritual constitui apanágio dos homens de bem. E é exatamente essa identificação que auxilia os grandes missionários no cumprimento de suas tarefas, propiciando-lhes a fé para enfrentar com estoicismo todas as intempéries e vicissitudes inerentes ao estágio no corpo de carne. Sobre sua experiência pessoal – um tanto amarga – menciona o Codificador[5]:

Fui alvo do ódio de inimigos intransigentes, da calúnia, da inveja e do ciúme; infames libelos foram publicados contra mim; as minhas melhores instruções foram adulteradas; fui traído por aqueles em quem mais confiava e pago com ingratidão por aqueles a quem servi.

A Sociedade de Paris foi um foco constante de intrigas urdidas por aqueles próprios que se diziam estar a meu lado e que, abraçando-me pela frente, me apunhalavam pelas costas. Disseram que os meus sectários eram pagos com o dinheiro que eu arranjava com o Espiritismo. Não tive mais repouso e muitas vezes verguei ao peso do trabalho; comprometi a saúde e arrisquei a vida.

[...] Se eu dissesse que o bem compensa o mal, não diria a verdade; porque o bem – falo das satisfações morais – sobrepujou o mal, sem comparação possível. Quando me vinha uma decepção, uma contrariedade, eu me elevava, em pensamentos, acima da humanidade, colocava-me, por antecipação, na região dos Espíritos, e desse ponto culminante, onde descobria muitas razões, as misérias da vida passavam por mim sem me atingir. Habituei-me tanto a isso, que os maus nunca me perturbaram. (grifamos).

Com efeito, os Espíritos Superiores que encarnam na Terra para impulsionar o progresso não devem esperar a compreensão humana! Se esta última advém, é sempre da parte de alguns poucos mais lúcidos e moralizados. Como bem se observou acima, Kardec não fugiu à regra; foi caluniado, incompreendido, traído por seus contemporâneos, pois, como Espírito de escol, era avançado para a época em que vivia. Entretanto, pelo fato de estar plenamente identificado com a Vida Real, enfrentou corajosa e resignadamente todos os dissabores e decepções que lhe sobrevieram.

 

Ambiguidade de conduta

De acordo com o que dissemos em outra parte, o mundo espiritual é o mundo das causas. Dentro dessa perspectiva, necessário se faz que a personalidade (Espírito encarnado) conheça profundamente a sua individualidade (Espírito), a fim de que não suceda a chamada ambiguidade de conduta, que consiste em o indivíduo aparentar uma conduta saudável ante a sociedade terrena e, ao revés, em demonstrar desequilíbrios vários no plano espiritual. Ocorre que a vida na Terra impõe certos limites ao Espírito reencarnado, como, por exemplo, a necessidade de trabalhar e cumprir deveres, o que impede, de certo modo, a manifestação completa do seu querer[6]. Disso resulta o impositivo da análise pessoal do comportamento, a fim de elucubrar seus reais desejos, porquanto nem sempre o que constitui interesse para a personalidade é relevante para a individualidade – que na vida espiritual, onde as coisas são definidas, mostra-se tal qual é, sem mimetizar absolutamente nada.

Nessa linha, transcrevemos as sábias colocações do Benfeitor Emmanuel[7]:

Se desejas saber quem és, observa o que pensas, quando estás sem ninguém; e se queres conhecer o lugar que te espera, depois da morte, examina o que fazes contigo mesmo nas horas livres. (grifamos).

Entrando em contato com a nossa realidade interior, através da meditação e da prece, aprenderemos a ouvir a voz da própria consciência, onde se encontra exarada a lei de Deus; outrossim, receberemos orientações seguras dos Amigos Espirituais, fortalecendo-nos na luta sem igual contra nós mesmos.

 

Preocupação com a morte

Para se forrar às preocupações com a morte é imprescindível encará-la em seu verdadeiro sentido, ou seja, fazer dela uma ideia a mais exata possível para que vida espiritual se sobreponha à vida material. Posto assim, destacamos as palavras de Allan Kardec acerca do assunto em tela[8]:

Apegando-se ao exterior, o homem só vê a vida do corpo, quando a vida real é a da alma. O corpo estando privado de vida, tudo lhe parece perdido e ele se desespera. Se, em lugar de concentrar o seu pensamento nas vestes exteriores, ele o dirigisse para a verdadeira fonte da vida, para a alma, ser real que sobrevive a tudo, lamentaria menos o corpo, fonte de tantas misérias e dores. Mas para isso necessita de uma força que o Espírito só adquire amadurecendo.

A preocupação com a morte está ligada à insuficiência de noções sobre a vida futura. Por isso, quanto mais ela se liga à necessidade de viver, mais aumenta o temor da destruição do corpo com o fim de tudo. Ela é assim provocada pelo secreto desejo de sobrevivência da alma, ainda velada pela incerteza.

A preocupação se enfraquece a medida (sic) que se desenvolve a certeza e desaparece por completo quando esta se firma.

Portanto, quanto mais identificados com o mundo espiritual, tanto mais fácil nos será a compreensão da morte em sua real acepção e caráter libertador, facultando-nos a resignação – que consiste na aquiescência do coração – em face dos desafios e provações da experiência humana, tirando proveito do sofrimento como processo de reequilíbrio com a lei da causalidade espiritual, amando, perdoando e servindo à luz meridiana do Evangelho de Jesus e da Codificação Kardeciana.

Aprofundemo-nos, pois, no conhecimento de nós mesmos, de maneira que, como espíritos encarnados, possamos ter ciência do que a nossa individualidade realmente é, identificando-nos desde agora com a vida espiritual, a vida normal de todos nós.

 

Referências:

§  KARDEC, Allan. Obras póstumas; revisão, introdução e notas de J. Herculano Pires; tradução de João Teixeira de Paula. 14. ed. São Paulo: LAKE, 2007.        

§  KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, ou, A Justiça Divina Segundo o Espiritismo; edição inteiramente revista segundo o original francês por João Teixeira de Paula e J. Herculano Pires, introdução de J. Herculano Pires. 13. ed. São Paulo: LAKE, 2011.

§  KARDEC, Allan. O livro dos Espíritos: filosofia espiritualista; tradução de J. Herculano Pires, revista e anotada pelo tradutor para esclarecimento e atualização dos problemas do texto. 67. ed. São Paulo: LAKE, 2010.

§  KARDEC, Allan. “O Espiritismo na sua expressão mais simples e outros opúsculos de Kardec”; tradução de Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. 1.ª reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2010.

§  XAVIER, Francisco Cândido. “Justiça divina: estudos e dissertações em torno da substância religiosa de O céu e o inferno”, de Allan Kardec; [ditado pelo Espírito Emmanuel]. 13. ed. 2.ª reimp. Rio de Janeiro:  FEB, 2010.

§  XAVIER, Francisco Cândido. “Voltei”; [ditado pelo Espírito Irmão Jacob]. 28. ed. 4.ª reimp. Rio de Janeiro: FEB, 2010.

 



[1] O CONSOLADOR - Ano 17 - N° 858 - 21 de Janeiro de 2024 - https://www.oconsolador.com.br/ano17/858/especial.html

[2] O espiritismo na sua expressão mais simples e outros opúsculos de Kardec, cap. Histórico do Espiritismo, p. 34.

[3] Voltei, cap. 13, p. 111.

[4] Questão 918 de O Livro dos Espíritos.

[5] Obras póstumas. A minha iniciação no Espiritismo, p.231.

[6] A referida conclusão surgiu a partir de análise da Questão 965 de O Livro dos Espíritos. Eis a aludida questão da obra susodita: “965.Têm alguma coisa de material as penas e gozos da alma depois da morte? “Não podem ser materiais, di-lo o bom-senso, pois que a alma não é matéria. Nada têm de carnal essas penas e esses gozos; entretanto, são mil vezes mais vivos do que os que experimentais na Terra, porque o Espírito, uma vez liberto, é mais impressionável. Então, já a matéria não lhe embota as sensações.” (237 a 257). KARDEC. Allan. O livro dos Espíritos: filosofia espiritualista. Trad. Guillon Ribeiro. 93. ed. 1. imp. (Edição Histórica). Brasília: FEB, 2013.

[7] Justiça divina. Lugar depois da morte, p. 117

[8] O céu e o inferno. A preocupação com a morte, p. 26.

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