terça-feira, 9 de janeiro de 2024

CONTRADIÇÕES NA LINGUAGEM DOS ESPÍRITOS[1]

 


Allan Kardec

 

As contradições encontradas muito frequentemente na linguagem dos Espíritos, mesmo sobre questões essenciais, foram, até hoje, para certas pessoas, uma causa de incerteza quanto ao valor real de suas comunicações, circunstância da qual não deixaram os adversários de tirar partido. Com efeito, à primeira vista essas contradições parecem ser uma das principais pedras de tropeço da ciência espírita. Vejamos se elas têm a importância que lhes atribuem.

Perguntaremos, em primeiro lugar, qual a ciência que não apresentou, em seus primórdios, semelhantes anomalias? Em suas investigações, que sábio não foi muitas vezes confundido por fatos que pareciam lançar por terra as regras estabelecidas? Se a Botânica, a Zoologia, a Fisiologia, a Medicina e nossa própria língua não nos oferecem milhares de exemplos e se suas bases não desafiam toda contradição? É comparando os fatos, observando as analogias e as dessemelhanças que se chega, pouco a pouco, a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: numa palavra, a constituir a Ciência. Ora, o Espiritismo apenas começa a despontar; não é, pois, de admirar que se submeta à lei comum, até que seu estudo esteja completo. Só então se reconhecerá que aqui, como em todas as coisas, a exceção quase sempre vem confirmar a regra.

Não obstante, em todos as épocas os Espíritos nos têm dito para não nos inquietarmos com essas pequenas divergências e que, dentro de pouco tempo, todos seriam levados à unidade de crença. Essa predição por certo se realiza a cada dia, à medida que se penetra mais adiante nas causas desses fenômenos misteriosos e os fatos são mais bem observados. Já as dissidências que se manifestaram na origem tendem evidentemente a enfraquecer-se; pode-se mesmo dizer que resultam, agora, apenas de opiniões pessoais isoladas.

Se bem esteja o Espiritismo em a Natureza, e tenha sido conhecido e praticado desde a mais remota Antiguidade, é fato notório que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto hoje. É que outrora faziam dele um estudo misterioso, ao qual o vulgo não era iniciado; conservou-se por uma tradição, que as vicissitudes da Humanidade e a ausência dos meios de transmissão enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos espontâneos, que vez por outra jamais deixaram de produzir-se, passaram despercebidos ou foram interpretados segundo os preconceitos ou a ignorância da época ou, ainda, explorados em proveito dessa ou daquela crença. Estava reservado ao nosso século, onde o progresso recebe um impulso incessante, tornar clara uma ciência que, por assim dizer, somente existia em estado latente. Não foi senão há poucos anos que os fenômenos foram observados seriamente. Na realidade o Espiritismo é uma ciência nova que se implanta pouco a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial. De início essa ciência pareceu bem simples; para as pessoas superficiais, consistia na arte de fazer girar as mesas; contudo, por suas ramificações e consequências, uma observação mais atenta revelou que era, ao contrário, muito mais complexa do que se havia suspeitado. As mesas girantes são como a maçã de Newton que, na sua queda, encerra o sistema do mundo.

Aconteceu com o Espiritismo o que de início acontece com todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo; cada um viu por seu lado e se apressou a transmitir suas impressões conforme seu ponto de vista e segundo suas ideias ou prevenções. Ora, não é sabido que, de acordo com o meio, o mesmo objeto a uns pode parecer quente, ao passo que outros o acharão frio?

Tomemos ainda outra comparação das coisas vulgares, mesmo que pareça trivial, a fim de nos fazer melhor compreender.

Ultimamente lia-se em diversos jornais: “O cogumelo é um produto dos mais bizarros; delicioso ou mortal, microscópico ou de dimensão fenomenal, confunde, sem cessar, a observação do botânico. No túnel de Doncastre existe um cogumelo que há doze meses se desenvolve, parecendo não haver ainda atingido sua última fase de crescimento. Atualmente mede quinze pés de diâmetro. Veio num pedaço de madeira; é considerado o mais belo espécime de cogumelo que já existiu. Sua classificação é difícil, porque as opiniões estão divididas”. Assim, eis a ciência em grande dificuldade por causa de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Esse fato provocou em nós a seguinte reflexão: Suponhamos vários naturalistas, cada um a observar por seu lado uma variedade desse vegetal: um dirá que o cogumelo é um criptógamo comestível, apreciado pelas pessoas de fino paladar; o segundo, que é venenoso; o terceiro, que é invisível a olho nu; e o quarto, que pode alcançar até quarenta e cinco pés de circunferência etc. À primeira vista, todas as asserções são contraditórias e pouco apropriadas à fixação das ideias sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois virá um quinto observador que reconhecerá a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas propriedades tão diversas constituem, em verdade, subdivisões ou variedades de uma mesma classe. De seu ponto de vista, cada um tinha razão; todos, porém, laboravam em erro, ao concluírem do particular para o geral, e ao tomarem a parte pelo todo.

Ocorre o mesmo em relação aos Espíritos. Têm sido julgados conforme a natureza das relações que se teve com eles: uns foram feitos demônios; outros anjos. Depois, por se terem precipitado para explicar os fenômenos antes que vissem tudo, cada um o fez à sua maneira, buscando-lhes as causas, evidentemente, naquilo em que consistia o objeto de suas preocupações; o magnetista relacionava tudo à ação magnética, o físico à ação elétrica etc. A divergência de opinião em matéria de Espiritismo origina-se, pois, dos diferentes aspectos sob os quais é considerado. De que lado está a verdade? É o que compete ao futuro demonstrar; mas a tendência geral não poderia oferecer dúvida. Evidentemente, um princípio domina e reúne, pouco a pouco, os sistemas prematuros; uma observação menos exclusiva os unirá todos a uma fonte comum, vendo-se logo que a divergência, definitivamente, é mais de forma do que de fundo.

Compreende-se perfeitamente que os homens elaborem teorias contrárias sobre muitas coisas; entretanto, o que pode parecer mais singular é o fato de os próprios Espíritos poderem entrar em contradição; foi principalmente isso que, no princípio, lançou uma espécie de confusão nas ideias. As diferentes teorias espíritas têm, pois, duas origens: umas desabrocharam do cérebro humano, enquanto as demais foram reveladas pelos Espíritos. As primeiras emanam dos homens que, confiando demasiadamente em suas próprias luzes, creem ter em mãos a chave daquilo que procuram quando, na maioria das vezes, não encontram senão uma maneira para se promoverem. Nada há nisso de surpreendente; entre os Espíritos, porém, seria inadmissível que uns dissessem uma coisa e os demais falassem outra, o que agora é perfeitamente explicável. A princípio, fez-se uma ideia completamente falsa da natureza dos Espíritos. Foram representados como seres à parte, de natureza excepcional, nada possuindo em comum com a matéria e devendo tudo saber. Segundo opinião pessoal, eram seres benfazejos ou malfazejos, uns com todas as virtudes, os outros com todos os vícios e todos, em geral, com um saber infinito, superior ao da Humanidade.

À notícia das recentes manifestações, o primeiro pensamento que brotou na mente da maior parte das criaturas foi o de buscarem um meio de penetrar em todas as coisas ocultas, uma nova maneira de adivinhação menos sujeita à dúvida que os processos vulgares.

Quem poderia dizer o número dos que sonharam fortuna fácil, pela revelação de tesouros ocultos ou pelas descobertas industriais e científicas, que não teriam custado a seus inventores senão o trabalho de lhes descrever os procedimentos, sob o ditado dos sábios do outro mundo! Só Deus sabe quantas desilusões e quantos desapontamentos! Que de pretensas receitas, cada uma mais ridícula que a outra, foram dadas pelos farsistas do mundo invisível?

Conhecemos alguém que havia solicitado uma receita infalível para tingir os cabelos; foi-lhe dada uma fórmula de composição, espécie de unguento que fez da cabeleira uma espécie de massa compacta, da qual o paciente teve as maiores dificuldades do mundo para se desembaraçar. Todas essas esperanças quiméricas tiveram que se dissipar à medida que se conhecia melhor a natureza desse mundo e a real finalidade das visitas que nos fizeram seus habitantes. Mas, então, para algumas pessoas que nada faziam, qual era o valor desses Espíritos, que nem sequer tinham o poder de conseguir lhes alguns milhões? Não poderiam ser Espíritos. A essa febre passageira sucedeu a indiferença e, depois, a incredulidade. Oh! Que de prosélitos teriam feito os Espíritos, se tivessem podido fazer o bem enquanto os outros dormiam! Teriam adorado o diabo, mesmo que tivesse brandido a sua bolsa de moedas.

Ao lado desses sonhadores, havia pessoas sérias que somente viam vulgaridade nesses fenômenos; observaram atentamente, sondaram o recôndito desse mundo misterioso, reconhecendo facilmente, nesses fatos estranhos, se não novos, pelo menos um fim providencial de ordem mais elevada. Tudo mudou de face quando se soube que esses mesmos Espíritos nada mais são que as criaturas que viveram na Terra, cujo número iremos aumentar quando morrermos; que deixaram aqui o seu envoltório grosseiro, como a lagarta deixa a crisálida para transformar-se em borboleta. Não pudemos duvidar quando vimos nossos parentes, amigos e contemporâneos virem conversar conosco e dar-nos provas irrecusáveis de sua presença e identidade. Considerando as inúmeras variedades que a Humanidade apresenta, do duplo ponto de vista intelectual e moral, e a multidão que diariamente emigra da Terra para o mundo invisível, repugna à razão acreditar que um estúpido samoieda, um feroz canibal, um vil criminoso, sofram com a morte uma transformação que os coloquem no mesmo nível do sábio e do homem de bem. Compreendeu-se, assim, que podia e devia haver Espíritos mais ou menos avançados e, desde então, explicaram-se naturalmente todas essas comunicações tão diferentes, das quais umas se elevam até o sublime, enquanto outras se arrastam na imundície. E foram ainda melhor compreendidas quando se descobriu que o nosso pequeno grão de areia perdido no espaço não era o único habitado, entre tantos milhões de globos semelhantes, ocupando, no Universo, apenas uma posição intermediária, nas proximidades da escala mais inferior; que havia, em consequência, seres mais avançados do que os mais avançados entre nós, e outros ainda mais atrasados que os nossos selvagens. Desde então o horizonte intelectual e moral ampliou-se, como sucedeu com nosso horizonte terrestre, quando foi descoberta a quarta parte do mundo; aos nossos olhos, o poder e a majestade de Deus cresceram do finito ao infinito. Dessa forma, ficaram explicadas as contradições da linguagem dos Espíritos, porquanto se compreendeu que seres inferiores, sob todos os pontos de vista, não poderiam pensar nem se exprimir como se superiores fossem; consequentemente, não podiam saber tudo nem tudo compreender, devendo Deus revelar aos eleitos somente o conhecimento dos mistérios, que a ignorância jamais alcançaria.

Traçada pelos próprios Espíritos e pela observação dos fatos, a escala espírita dá-nos a chave de todas as aparentes anomalias da linguagem dos Espíritos. É preciso chegar, pela força do hábito, a conhecê-los, a bem dizer, à primeira vista, e poder assimilar-lhes a classe de acordo com a natureza de suas manifestações. É preciso dizer, por necessidade, a um que é mentiroso, a outro que é hipócrita, a esse que é mau, àquele que é faccioso etc., sem se deixar levar nem pela sua arrogância, nem pelas suas bravatas, nem pelas suas ameaças, nem pelos seus sofismas, nem mesmo pelas suas lisonjas.

É o meio de afastar essa turba que, incessantemente, pulula à nossa volta, e que se afasta quando sabemos atrair somente os Espíritos verdadeiramente bons e sérios, de maneira idêntica à que procedemos em relação aos vivos. Serão seres ínfimos, votados à ignorância e ao mal para todo o sempre? Não, porque tal parcialidade não se conformaria nem com a justiça, nem com a bondade do Criador, que provê a existência e o bem-estar do menor inseto. É por uma sucessão de existências que eles se elevam e dEle se aproximam à medida que se tornam melhores. Esses Espíritos inferiores não conhecem de Deus senão o nome; não O veem, nem O compreendem, da mesma forma que o último dos camponeses, isolado nos rincões mais distantes, não vê nem compreende o soberano que governa seu país.

Se estudarmos cuidadosamente o caráter próprio de cada classe de Espíritos, conceberemos facilmente que alguns deles são incapazes de fornecer ensinamentos exatos sobre o estado de seu mundo; se, além disso, considerarmos que, por sua natureza, alguns Espíritos são levianos, mentirosos, zombeteiros e malévolos, enquanto outros ainda se acham imbuídos das ideias e dos preconceitos terrestres, compreenderemos que, em suas relações conosco, podem divertir-se à nossa custa, induzir-nos propositadamente ao erro por malícia, afirmar o que não sabem, dar-nos conselhos pérfidos ou mesmo enganar-se de boa-fé, julgando as coisas conforme seu ponto de vista. Citemos uma comparação.

Suponhamos que uma colônia de habitantes da Terra um belo dia encontre meios de estabelecer-se na Lua; imaginemos essa colônia composta de diversos elementos da população de nosso globo, desde o europeu mais civilizado até o selvagem australiano. Sem dúvida os habitantes da Lua ficarão emocionados e maravilhados de poderem obter, junto a seus novos hóspedes, informações precisas sobre nosso planeta, que alguns supunham habitado, embora não tivessem certeza, considerando-se que também entre eles alguns se julgam os únicos seres do Universo. Caem sobre os recém-chegados, fazem-lhes perguntas e os sábios se apressam para publicar a história física e moral da Terra.

Como não seria autêntica essa história, desde que foi obtida de testemunhas oculares? Um deles recolhe em sua casa um zelandês, que lhe ensina que neste mundo é um banquete comer homens e que Deus o permite, desde que se sacrificam vítimas em seu nome. Na casa de outro, é um filósofo moralista que lhe fala de Sócrates e Platão, assegurando que a antropofagia é uma abominação condenável por todas as leis divinas e humanas. Aqui é um muçulmano que não se alimenta de carne humana, mas diz que a salvação é obtida matando o maior número possível de cristãos; ali é um cristão, que fala que Maomé é um impostor; mais longe, um chinês considera como bárbaros todos os demais, afirmando que Deus permite que os filhos devem ser lançados ao rio, contanto que existam em grande quantidade; um boêmio traça o quadro das delícias da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as mortificações; um faquir indiano dilacera o corpo e durante anos se impõe sofrimento para descerrar as portas do Céu, de tal sorte que as privações de nossos mais piedosos cenobitas não passam de sensualidade. Em seguida vem um bacharel, afirmando que é a Terra que gira, e não o Sol; um camponês, dizendo que o bacharel é mentiroso, pois vê muito bem o Sol levantar-se e deitar-se todos os dias; um africano diz que faz muito calor; um esquimó, que o mar é uma planície de gelo e que só se viaja de trenó.

A política não fica atrás; uns elogiam o regime absoluto, outros a liberdade; alguém garante que a escravidão é contrária à Natureza, sendo irmãos todos os homens, já que são filhos de Deus; outro ainda, afirma que determinadas raças foram feitas para a escravidão e são muito mais felizes que no estado de liberdade etc.

Imagino os escritores selenitas bastante embaraçados para escreverem a história física, política, moral e religiosa do mundo terrestre com semelhantes documentos. “Talvez – pensarão alguns – encontraremos maior unidade entre os sábios; interroguemos esse grupo de doutores”.

Ora, um dos dois, médico da Faculdade de Paris, centro das luzes, garante que todas as moléstias têm por princípio o sangue viciado, fazendo-se necessário, pois, renová-lo por meio de sangrias, seja qual for a sua causa. “Laborais em erro, meu caro confrade – replica um segundo – o homem jamais dispõe de tanto sangue; se o tirais, tirai-lhe a vida. Convenhamos que o sangue esteja viciado; o que fazemos quando um vaso está sujo? Não o quebramos, limpamos; então purgai, purgai, purgai até a extinção”. Tomando a palavra, diz um terceiro: “Senhores, com vossas sangrias matais os doentes; com vossos purgantes os envenenais; a Natureza é mais sábia que todos nós; deixemo-la agir e aguardemos. Se é isso, replicam os dois primeiros, se matamos nossos doentes, vós os deixais morrer”.

A disputa começava a se inflamar quando um quarto, tomando à parte um selenita, e o conservando a sua esquerda, disse-lhe: “Não os escuteis; são todos ignorantes; nem mesmo sei por que fazem parte da Academia. Segui bem o meu raciocínio: todo doente é fraco; portanto, sofre de fraqueza nos órgãos; isso é lógica pura, ou não me conheço mais; sendo assim, é preciso que se lhe dê fortificantes; para isso não tenho senão um remédio: água fria, água fria, e não passo disso. – Curais todos os doentes? – Sempre, quando a doença não é mortal. – Com um processo assim tão infalível, pertenceis à Academia?– Já postulei três vezes minha candidatura. Pois bem! Sabeis que fui repelido por esses pretensos sábios, porque estavam certos de que eu os pulverizaria com minha água fria? – Senhor selenita, diz um novo interlocutor, puxando-o para a direita: vivemos em uma atmosfera de eletricidade; a eletricidade é o verdadeiro princípio da vida: acrescentá-la, quando não existe bastante; retirá-la, quando existe em excesso. – Neutralizar uns pelos outros os fluidos contrários – eis o segredo. Faço maravilhas com meus aparelhos: lede meus anúncios e vereis![2]

Não chegaríamos ao fim, se quiséssemos relacionar todas as teorias contrárias que foram sucessivamente preconizadas em todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar as ciências exatas; entretanto, foi sobretudo nas ciências metafísicas que o campo se abriu às doutrinas mais contraditórias.

Se, todavia, um homem ajuizado e de espírito – por que não os haveria na Lua?  Comparar todos esses relatos incoerentes, chegará à seguinte conclusão, muito lógica: que na Terra existem regiões quentes e frias; que em certos países os homens se devoram entre si; que em outros eles matam os que não pensam do mesmo modo, tudo para a maior glória de sua divindade; finalmente, que cada um se pronuncia de acordo com os seus conhecimentos e exalta as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus interesses.

Em suma, em quem acreditará, de preferência? Pela linguagem reconhecerá, sem dificuldade, o verdadeiro sábio do ignorante; o homem sério do leviano; o que tem juízo daquele que raciocina em falso; não confundirá os bons e os maus sentimentos, a elevação com a baixeza, o bem com o mal. E dirá a si mesmo:

Devo ouvir tudo, escutar tudo, porque mesmo na conversa do homem mais embrutecido posso aprender alguma coisa; minha estima e minha confiança, porém, não serão conquistadas senão por aqueles que delas se mostrarem dignos.

Se essa colônia terrena deseja implantar seus costumes e usos em sua nova pátria, os sábios repelirão os conselhos que lhes parecerem perniciosos e se confiarão àqueles que julgarem mais esclarecidos, neles não vendo nem falsidade, nem mentiras, mas, ao contrário, reconhecendo seu sincero amor do bem. Agiríamos de modo diferente, se uma colônia de selenitas viesse cair na Terra? Pois bem! O que é dado aqui como suposição, torna-se realidade no que concerne aos Espíritos; se não vêm entre nós em carne e osso, nem por isso estão menos presentes de maneira oculta, transmitindo-nos os pensamentos através de seus intérpretes, isto é, dos médiuns. Quando aprendermos a conhecê-los, julgá-los-emos por sua linguagem, por seus princípios, e suas contradições nada mais terão que nos deva surpreender, porquanto vemos saberem uns aquilo que os outros ignoram; que alguns estão colocados muito embaixo, ou são ainda muito materiais para compreender e apreciar as coisas de ordem mais elevada; tal é o homem que, no sopé da montanha, não vê senão alguns passos em volta dele, enquanto o que está no alto descortina um horizonte sem limites.

A primeira fonte das contradições decorre, pois, do grau de desenvolvimento intelectual e moral dos Espíritos; porém há outras, sobre as quais é útil chamar a atenção. Dirão que passamos sobre a questão dos Espíritos inferiores, desde que assim o é; compreende-se que possam enganar-se por ignorância; todavia, como se justifica que Espíritos superiores estejam em dissidência?

Que utilizem em certo país uma linguagem diferente da que empregam em outro? Finalmente, que o mesmo Espírito nem sempre seja coerente consigo mesmo?

A resposta a essa questão repousa sobre o conhecimento  completo da ciência espírita, e essa ciência não pode ser ensinada em poucas palavras, porque é tão vasta quanto todas as ciências filosóficas.

Como todos os ramos do conhecimento humano, só é adquirida pelo estudo e pela observação. Não podemos repetir aqui tudo quanto já publicamos sobre o assunto; a ele, pois, remetemos nossos leitores, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem para quem quer que lance sobre esse terreno um olhar investigador e sem prevenção.

Provam os fatos que os Espíritos enganadores se paramentam de nomes respeitáveis, sem o menor escrúpulo, a fim de que suas torpezas sejam aceitas com mais facilidade, o que por vezes também ocorre entre nós. Pelo fato de um Espírito apresentar-se sob um nome qualquer, não significa que seja realmente aquele que pretende ser; todavia, na linguagem dos Espíritos sérios há um cunho de dignidade com o qual não se poderia equivocar: só respira bondade e benevolência, e jamais se desmente. A dos Espíritos impostores, ao contrário, seja qual for o verniz com que se apresentem, deixa sempre a cauda exposta[3], como se diz vulgarmente.

Nada há, pois, de espantoso em que os Espíritos inferiores, sob nomes usurpados, ensinem verdadeiros disparates. Compete ao observador procurar conhecer a verdade, e o pode fazer sem dificuldade, desde que queira compenetrar-se do que a esse respeito  dissemos em nossa Instrução Prática.

Esses mesmos Espíritos geralmente lisonjeiam os gostos e as inclinações das pessoas, cujo caráter sabem bastante fraco e bastante crédulo para os ouvir. Fazem-se eco de seus preconceitos e, até mesmo, de suas ideias supersticiosas, por uma razão muito simples: os Espíritos são atraídos por suas simpatias pelo Espírito das pessoas que os chamam ou que os escutam com prazer.

Quanto aos Espíritos sérios, podem igualmente manter uma linguagem diferente, segundo as pessoas, mas com outro objetivo. Quando julgam útil e para melhor convencer, evitam chocar muito bruscamente as crenças enraizadas, e se exprimem segundo os tempos, os lugares e as pessoas. “Eis por que – dizem eles – não falamos a um chinês ou a um maometano, como a um cristão ou a um homem civilizado: jamais seríamos ouvidos. Algumas vezes, pois, parecemos entrar na maneira de ver das pessoas, a fim de conduzi-las pouco a pouco àquilo que queremos, desde que isso possa ser realizado sem alterar as verdades essenciais”. Não é evidente que se um Espírito quiser levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho: “Não façais aos outros o que não gostaríeis que os outros vos fizessem”, seria repelido se dissesse que foi Jesus que a ensinou? Ora, o que vale mais, deixar ao muçulmano seu fanatismo ou torná-lo bom, fazendo com que momentaneamente acredite que fora Alá que havia falado? Eis um problema cuja solução transferimos ao leitor. Quanto a nós, parece-nos que, tornando-o mais doce e mais humano, seria ele menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença do que se lhe quiséssemos impor pela força. Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas no rosto sem uma certa precaução.

Quantos males teriam os homens evitado se sempre houvessem agido assim!

Como se vê, os Espíritos também tomam precauções quando falam; nesse caso, porém, a divergência está no acessório, e não no principal. Induzir os homens ao bem, destruir o egoísmo, o ódio, a inveja, o ciúme, ensinar-lhes a praticar a verdadeira caridade cristã, eis para eles o essencial; o resto virá em seu devido tempo; e tanto pregam pela palavra quanto pelo exemplo, quando se trata de Espíritos verdadeiramente bons e superiores; tudo neles respira doçura e benevolência. A irritação, a violência, a aspereza e a dureza de linguagem, mesmo que seja para dizer boas coisas, jamais denotam um sinal de verdadeira superioridade. Os Espíritos realmente bons não se irritam nem jamais se encolerizam: se não são ouvidos, vão se embora; eis tudo.

Existem ainda duas causas de aparentes contradições que não devemos deixar passar em silêncio. Como já dissemos em muitas ocasiões, os Espíritos inferiores dizem tudo o que se quer, sem se preocuparem com a verdade; os Espíritos superiores se calam ou se recusam a responder quando lhes fazem uma pergunta indiscreta ou sobre a qual não lhes é permitido dar explicações.

Dizem eles:

Neste caso, não insistais jamais, porque serão Espíritos levianos que responderão e vos enganarão; acreditais que somos nós e podeis pensar que entramos em contradição. Os Espíritos sérios não se contradizem jamais; sua linguagem é sempre a mesma com as mesmas pessoas. Se um deles diz coisas contrárias sob o mesmo nome, ficai certos de que não é o mesmo Espírito que fala ou, pelo menos, que não se trata de um Espírito bom. Reconhecereis o bom pelos princípios que ensina, pois todo Espírito que não prega o bem não é um Espírito bom, e devereis repeli-lo.

Querendo dizer a mesma coisa em dois lugares diferentes, o mesmo Espírito não se servirá literalmente das mesmas palavras: para ele o pensamento é tudo; mas o homem, infelizmente, é levado mais a se prender à forma do que ao fundo, e é essa forma que muitas vezes interpreta ao sabor de suas ideias e paixões. Dessa interpretação podem originar-se contradições aparentes, que igualmente têm sua fonte na insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas. Estudemos o fundo,  perscrutemos o pensamento íntimo e veremos analogia muitas vezes onde um exame superficial nos teria mostrado um disparate.

As causas das contradições na linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:

1.       O grau de ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;

2.       O embuste dos Espíritos inferiores que, tomando nomes sob empréstimo podem dizer, por malícia, ignorância e maldade, o contrário do que disse alhures o Espírito cujo nome usurparam;

3.       Os defeitos pessoais do médium, que podem influir sobre a pureza das comunicações e alterar ou modificar o pensamento do Espírito;

4.       A insistência para obter uma resposta que um Espírito recusa dar, e que é transmitida por um Espírito inferior;

5.       A própria vontade do Espírito, que fala segundo os tempos, os lugares e as pessoas, e que pode julgar conveniente não dizer tudo a toda gente;

6.       A insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;

7.       A interpretação que cada um pode dar a uma palavra ou explicação, conforme suas ideias e preconceitos, ou o ponto de vista sob o qual encaram as coisas.

As dificuldades são tantas que não se triunfa a não ser por um estudo longo e assíduo; aliás, jamais dissemos que a ciência espírita era uma ciência fácil. O observador sério, que se aprofunda em todas as coisas com maturidade, paciência e perseverança, capta uma porção de matizes delicados que escapam ao observador superficial. É através desses detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos dessa ciência. A experiência ensina a conhecer os Espíritos, como ensina a conhecer os homens.

Acabamos de considerar as contradições sob o ponto de vista geral. Em outros artigos trataremos dos pontos especiais mais importantes.



[1] Revista Espírita – julho/1858 – Allan Kardec.

[2] O leitor compreenderá que nossa crítica não visa senão os exageros em todas as coisas. Em tudo existe um lado bom; o erro consiste no exclusivismo, que o sábio judicioso sempre sabe evitar. Não temos intenção de confundir os verdadeiros sábios, dos quais a Humanidade se honra merecidamente, com os que exploram suas ideias sem

discernimento; é desses que queremos falar. Nosso objetivo é unicamente demonstrar que a própria Ciência não está isenta de contradições.

[3] N. do T.: Grifos nossos

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