Allan Kardec
As contradições encontradas
muito frequentemente na linguagem dos Espíritos, mesmo sobre questões
essenciais, foram, até hoje, para certas pessoas, uma causa de incerteza quanto
ao valor real de suas comunicações, circunstância da qual não deixaram os
adversários de tirar partido. Com efeito, à primeira vista essas contradições
parecem ser uma das principais pedras de tropeço da ciência espírita. Vejamos
se elas têm a importância que lhes atribuem.
Perguntaremos, em primeiro
lugar, qual a ciência que não apresentou, em seus primórdios, semelhantes
anomalias? Em suas investigações, que sábio não foi muitas vezes confundido por
fatos que pareciam lançar por terra as regras estabelecidas? Se a Botânica, a
Zoologia, a Fisiologia, a Medicina e nossa própria língua não nos oferecem
milhares de exemplos e se suas bases não desafiam toda contradição? É
comparando os fatos, observando as analogias e as dessemelhanças que se chega,
pouco a pouco, a estabelecer as regras, as classificações, os princípios: numa
palavra, a constituir a Ciência. Ora, o Espiritismo apenas começa a despontar;
não é, pois, de admirar que se submeta à lei comum, até que seu estudo esteja
completo. Só então se reconhecerá que aqui, como em todas as coisas, a exceção
quase sempre vem confirmar a regra.
Não obstante, em todos as épocas
os Espíritos nos têm dito para não nos inquietarmos com essas pequenas
divergências e que, dentro de pouco tempo, todos seriam levados à unidade de
crença. Essa predição por certo se realiza a cada dia, à medida que se penetra
mais adiante nas causas desses fenômenos misteriosos e os fatos são mais bem
observados. Já as dissidências que se manifestaram na origem tendem
evidentemente a enfraquecer-se; pode-se mesmo dizer que resultam, agora, apenas
de opiniões pessoais isoladas.
Se bem esteja o Espiritismo em a
Natureza, e tenha sido conhecido e praticado desde a mais remota Antiguidade, é
fato notório que em nenhuma outra época foi tão universalmente espalhado quanto
hoje. É que outrora faziam dele um estudo misterioso, ao qual o vulgo não era
iniciado; conservou-se por uma tradição, que as vicissitudes da Humanidade e a
ausência dos meios de transmissão enfraqueceram insensivelmente. Os fenômenos
espontâneos, que vez por outra jamais deixaram de produzir-se, passaram
despercebidos ou foram interpretados segundo os preconceitos ou a ignorância da
época ou, ainda, explorados em proveito dessa ou daquela crença. Estava
reservado ao nosso século, onde o progresso recebe um impulso incessante,
tornar clara uma ciência que, por assim dizer, somente existia em estado
latente. Não foi senão há poucos anos que os fenômenos foram observados
seriamente. Na realidade o Espiritismo é uma ciência nova que se implanta pouco
a pouco no espírito das massas, esperando ocupar uma posição oficial. De início
essa ciência pareceu bem simples; para as pessoas superficiais, consistia na
arte de fazer girar as mesas; contudo, por suas ramificações e consequências,
uma observação mais atenta revelou que era, ao contrário, muito mais complexa
do que se havia suspeitado. As mesas girantes são como a maçã de Newton que, na
sua queda, encerra o sistema do mundo.
Aconteceu com o Espiritismo o
que de início acontece com todas as coisas: os primeiros não puderam ver tudo;
cada um viu por seu lado e se apressou a transmitir suas impressões conforme
seu ponto de vista e segundo suas ideias ou prevenções. Ora, não é sabido que,
de acordo com o meio, o mesmo objeto a uns pode parecer quente, ao passo que
outros o acharão frio?
Tomemos ainda outra comparação
das coisas vulgares, mesmo que pareça trivial, a fim de nos fazer melhor
compreender.
Ultimamente lia-se em diversos
jornais: “O cogumelo é um produto dos mais bizarros; delicioso ou mortal,
microscópico ou de dimensão fenomenal, confunde, sem cessar, a observação do
botânico. No túnel de Doncastre existe um cogumelo que há doze meses se desenvolve,
parecendo não haver ainda atingido sua última fase de crescimento. Atualmente
mede quinze pés de diâmetro. Veio num pedaço de madeira; é considerado o mais
belo espécime de cogumelo que já existiu. Sua classificação é difícil, porque
as opiniões estão divididas”. Assim, eis a ciência em grande dificuldade por
causa de um cogumelo que se apresenta sob um novo aspecto. Esse fato provocou
em nós a seguinte reflexão: Suponhamos vários naturalistas, cada um a observar
por seu lado uma variedade desse vegetal: um dirá que o cogumelo é um
criptógamo comestível, apreciado pelas pessoas de fino paladar; o segundo, que
é venenoso; o terceiro, que é invisível a olho nu; e o quarto, que pode
alcançar até quarenta e cinco pés de circunferência etc. À primeira vista,
todas as asserções são contraditórias e pouco apropriadas à fixação das ideias
sobre a verdadeira natureza dos cogumelos. Depois virá um quinto observador que
reconhecerá a identidade dos caracteres gerais e mostrará que essas
propriedades tão diversas constituem, em verdade, subdivisões ou variedades de
uma mesma classe. De seu ponto de vista, cada um tinha razão; todos, porém,
laboravam em erro, ao concluírem do particular para o geral, e ao tomarem a
parte pelo todo.
Ocorre o mesmo em relação aos
Espíritos. Têm sido julgados conforme a natureza das relações que se teve com
eles: uns foram feitos demônios; outros anjos. Depois, por se terem precipitado
para explicar os fenômenos antes que vissem tudo, cada um o fez à sua maneira,
buscando-lhes as causas, evidentemente, naquilo em que consistia o objeto de
suas preocupações; o magnetista relacionava tudo à ação magnética, o físico à
ação elétrica etc. A divergência de opinião em matéria de Espiritismo
origina-se, pois, dos diferentes aspectos sob os quais é considerado. De que
lado está a verdade? É o que compete ao futuro demonstrar; mas a tendência
geral não poderia oferecer dúvida. Evidentemente, um princípio domina e reúne,
pouco a pouco, os sistemas prematuros; uma observação menos exclusiva os unirá
todos a uma fonte comum, vendo-se logo que a divergência, definitivamente, é
mais de forma do que de fundo.
Compreende-se perfeitamente que
os homens elaborem teorias contrárias sobre muitas coisas; entretanto, o que
pode parecer mais singular é o fato de os próprios Espíritos poderem entrar em
contradição; foi principalmente isso que, no princípio, lançou uma espécie de
confusão nas ideias. As diferentes teorias espíritas têm, pois, duas origens:
umas desabrocharam do cérebro humano, enquanto as demais foram reveladas pelos
Espíritos. As primeiras emanam dos homens que, confiando demasiadamente em suas
próprias luzes, creem ter em mãos a chave daquilo que procuram quando, na
maioria das vezes, não encontram senão uma maneira para se promoverem. Nada há
nisso de surpreendente; entre os Espíritos, porém, seria inadmissível que uns
dissessem uma coisa e os demais falassem outra, o que agora é perfeitamente
explicável. A princípio, fez-se uma ideia completamente falsa da natureza dos
Espíritos. Foram representados como seres à parte, de natureza excepcional,
nada possuindo em comum com a matéria e devendo tudo saber. Segundo opinião
pessoal, eram seres benfazejos ou malfazejos, uns com todas as virtudes, os
outros com todos os vícios e todos, em geral, com um saber infinito, superior
ao da Humanidade.
À notícia das recentes
manifestações, o primeiro pensamento que brotou na mente da maior parte das
criaturas foi o de buscarem um meio de penetrar em todas as coisas ocultas, uma
nova maneira de adivinhação menos sujeita à dúvida que os processos vulgares.
Quem poderia dizer o número dos
que sonharam fortuna fácil, pela revelação de tesouros ocultos ou pelas
descobertas industriais e científicas, que não teriam custado a seus inventores
senão o trabalho de lhes descrever os procedimentos, sob o ditado dos sábios do
outro mundo! Só Deus sabe quantas desilusões e quantos desapontamentos! Que de
pretensas receitas, cada uma mais ridícula que a outra, foram dadas pelos
farsistas do mundo invisível?
Conhecemos alguém que havia
solicitado uma receita infalível para tingir os cabelos; foi-lhe dada uma
fórmula de composição, espécie de unguento que fez da cabeleira uma espécie de
massa compacta, da qual o paciente teve as maiores dificuldades do mundo para
se desembaraçar. Todas essas esperanças quiméricas tiveram que se dissipar à
medida que se conhecia melhor a natureza desse mundo e a real finalidade das
visitas que nos fizeram seus habitantes. Mas, então, para algumas pessoas que
nada faziam, qual era o valor desses Espíritos, que nem sequer tinham o poder
de conseguir lhes alguns milhões? Não poderiam ser Espíritos. A essa febre
passageira sucedeu a indiferença e, depois, a incredulidade. Oh! Que de
prosélitos teriam feito os Espíritos, se tivessem podido fazer o bem enquanto
os outros dormiam! Teriam adorado o diabo, mesmo que tivesse brandido a sua
bolsa de moedas.
Ao lado desses sonhadores, havia
pessoas sérias que somente viam vulgaridade nesses fenômenos; observaram
atentamente, sondaram o recôndito desse mundo misterioso, reconhecendo
facilmente, nesses fatos estranhos, se não novos, pelo menos um fim providencial
de ordem mais elevada. Tudo mudou de face quando se soube que esses mesmos
Espíritos nada mais são que as criaturas que viveram na Terra, cujo número
iremos aumentar quando morrermos; que deixaram aqui o seu envoltório grosseiro,
como a lagarta deixa a crisálida para transformar-se em borboleta. Não pudemos
duvidar quando vimos nossos parentes, amigos e contemporâneos virem conversar
conosco e dar-nos provas irrecusáveis de sua presença e identidade.
Considerando as inúmeras variedades que a Humanidade apresenta, do duplo ponto
de vista intelectual e moral, e a multidão que diariamente emigra da Terra para
o mundo invisível, repugna à razão acreditar que um estúpido samoieda, um feroz
canibal, um vil criminoso, sofram com a morte uma transformação que os coloquem
no mesmo nível do sábio e do homem de bem. Compreendeu-se, assim, que podia e
devia haver Espíritos mais ou menos avançados e, desde então, explicaram-se
naturalmente todas essas comunicações tão diferentes, das quais umas se elevam
até o sublime, enquanto outras se arrastam na imundície. E foram ainda melhor
compreendidas quando se descobriu que o nosso pequeno grão de areia perdido no
espaço não era o único habitado, entre tantos milhões de globos semelhantes,
ocupando, no Universo, apenas uma posição intermediária, nas proximidades da
escala mais inferior; que havia, em consequência, seres mais avançados do que
os mais avançados entre nós, e outros ainda mais atrasados que os nossos
selvagens. Desde então o horizonte intelectual e moral ampliou-se, como sucedeu
com nosso horizonte terrestre, quando foi descoberta a quarta parte do mundo;
aos nossos olhos, o poder e a majestade de Deus cresceram do finito ao
infinito. Dessa forma, ficaram explicadas as contradições da linguagem dos
Espíritos, porquanto se compreendeu que seres inferiores, sob todos os pontos
de vista, não poderiam pensar nem se exprimir como se superiores fossem; consequentemente,
não podiam saber tudo nem tudo compreender, devendo Deus revelar aos eleitos
somente o conhecimento dos mistérios, que a ignorância jamais alcançaria.
Traçada pelos próprios Espíritos
e pela observação dos fatos, a escala
espírita dá-nos a chave de todas as aparentes anomalias da linguagem dos
Espíritos. É preciso chegar, pela força do hábito, a conhecê-los, a bem dizer,
à primeira vista, e poder assimilar-lhes a classe de acordo com a natureza de
suas manifestações. É preciso dizer, por necessidade, a um que é mentiroso, a
outro que é hipócrita, a esse que é mau, àquele que é faccioso etc., sem se
deixar levar nem pela sua arrogância, nem pelas suas bravatas, nem pelas suas ameaças,
nem pelos seus sofismas, nem mesmo pelas suas lisonjas.
É o meio de afastar essa turba
que, incessantemente, pulula à nossa volta, e que se afasta quando sabemos
atrair somente os Espíritos verdadeiramente bons e sérios, de maneira idêntica
à que procedemos em relação aos vivos. Serão seres ínfimos, votados à ignorância
e ao mal para todo o sempre? Não, porque tal parcialidade não se conformaria
nem com a justiça, nem com a bondade do Criador, que provê a existência e o
bem-estar do menor inseto. É por uma sucessão de existências que eles se elevam
e dEle se aproximam à medida que se tornam melhores. Esses Espíritos inferiores
não conhecem de Deus senão o nome; não O veem, nem O compreendem, da mesma
forma que o último dos camponeses, isolado nos rincões mais distantes, não vê
nem compreende o soberano que governa seu país.
Se estudarmos cuidadosamente o
caráter próprio de cada classe de Espíritos, conceberemos facilmente que alguns
deles são incapazes de fornecer ensinamentos exatos sobre o estado de seu mundo;
se, além disso, considerarmos que, por sua natureza, alguns Espíritos são
levianos, mentirosos, zombeteiros e malévolos, enquanto outros ainda se acham
imbuídos das ideias e dos preconceitos terrestres, compreenderemos que, em suas
relações conosco, podem divertir-se à nossa custa, induzir-nos propositadamente
ao erro por malícia, afirmar o que não sabem, dar-nos conselhos pérfidos ou
mesmo enganar-se de boa-fé, julgando as coisas conforme seu ponto de vista.
Citemos uma comparação.
Suponhamos que uma colônia de
habitantes da Terra um belo dia encontre meios de estabelecer-se na Lua;
imaginemos essa colônia composta de diversos elementos da população de nosso
globo, desde o europeu mais civilizado até o selvagem australiano. Sem dúvida os
habitantes da Lua ficarão emocionados e maravilhados de poderem obter, junto a
seus novos hóspedes, informações precisas sobre nosso planeta, que alguns
supunham habitado, embora não tivessem certeza, considerando-se que também
entre eles alguns se julgam os únicos seres do Universo. Caem sobre os
recém-chegados, fazem-lhes perguntas e os sábios se apressam para publicar a
história física e moral da Terra.
Como não seria autêntica essa
história, desde que foi obtida de testemunhas oculares? Um deles recolhe em sua
casa um zelandês, que lhe ensina que neste mundo é um banquete comer homens e
que Deus o permite, desde que se sacrificam vítimas em seu nome. Na casa de outro,
é um filósofo moralista que lhe fala de Sócrates e Platão, assegurando que a
antropofagia é uma abominação condenável por todas as leis divinas e humanas.
Aqui é um muçulmano que não se alimenta de carne humana, mas diz que a salvação
é obtida matando o maior número possível de cristãos; ali é um cristão, que
fala que Maomé é um impostor; mais longe, um chinês considera como bárbaros
todos os demais, afirmando que Deus permite que os filhos devem ser lançados ao
rio, contanto que existam em grande quantidade; um boêmio traça o quadro das
delícias da vida dissoluta das capitais; um anacoreta prega a abstinência e as
mortificações; um faquir indiano dilacera o corpo e durante anos se impõe
sofrimento para descerrar as portas do Céu, de tal sorte que as privações de
nossos mais piedosos cenobitas não passam de sensualidade. Em seguida vem um
bacharel, afirmando que é a Terra que gira, e não o Sol; um camponês, dizendo
que o bacharel é mentiroso, pois vê muito bem o Sol levantar-se e deitar-se
todos os dias; um africano diz que faz muito calor; um esquimó, que o mar é uma
planície de gelo e que só se viaja de trenó.
A política não fica atrás; uns
elogiam o regime absoluto, outros a liberdade; alguém garante que a escravidão
é contrária à Natureza, sendo irmãos todos os homens, já que são filhos de
Deus; outro ainda, afirma que determinadas raças foram feitas para a escravidão
e são muito mais felizes que no estado de liberdade etc.
Imagino os escritores selenitas
bastante embaraçados para escreverem a história física, política, moral e
religiosa do mundo terrestre com semelhantes documentos. “Talvez – pensarão
alguns – encontraremos maior unidade entre os sábios; interroguemos esse grupo
de doutores”.
Ora, um dos dois, médico da
Faculdade de Paris, centro das luzes, garante que todas as moléstias têm por
princípio o sangue viciado, fazendo-se necessário, pois, renová-lo por meio de
sangrias, seja qual for a sua causa. “Laborais em erro, meu caro confrade – replica
um segundo – o homem jamais dispõe de tanto sangue; se o tirais, tirai-lhe a
vida. Convenhamos que o sangue esteja viciado; o que fazemos quando um vaso
está sujo? Não o quebramos, limpamos; então purgai, purgai, purgai até a
extinção”. Tomando a palavra, diz um terceiro: “Senhores, com vossas sangrias
matais os doentes; com vossos purgantes os envenenais; a Natureza é mais sábia
que todos nós; deixemo-la agir e aguardemos. Se é isso, replicam os dois primeiros,
se matamos nossos doentes, vós os deixais morrer”.
A disputa começava a se inflamar
quando um quarto, tomando à parte um selenita, e o conservando a sua esquerda,
disse-lhe: “Não os escuteis; são todos ignorantes; nem mesmo sei por que fazem
parte da Academia. Segui bem o meu raciocínio: todo doente é fraco; portanto,
sofre de fraqueza nos órgãos; isso é lógica pura, ou não me conheço mais; sendo
assim, é preciso que se lhe dê fortificantes; para isso não tenho senão um
remédio: água fria, água fria, e não passo disso. – Curais todos os doentes? – Sempre,
quando a doença não é mortal. – Com um processo assim tão infalível,
pertenceis à Academia?– Já postulei três vezes minha candidatura. Pois bem!
Sabeis que fui repelido por esses pretensos sábios, porque estavam certos de
que eu os pulverizaria com minha água fria? – Senhor selenita, diz um novo interlocutor,
puxando-o para a direita: vivemos em uma atmosfera de eletricidade; a
eletricidade é o verdadeiro princípio da vida: acrescentá-la, quando não existe
bastante; retirá-la, quando existe em excesso. – Neutralizar uns pelos
outros os fluidos contrários – eis o segredo. Faço maravilhas com meus
aparelhos: lede meus anúncios e vereis![2]
Não chegaríamos ao fim, se
quiséssemos relacionar todas as teorias contrárias que foram sucessivamente
preconizadas em todos os ramos do conhecimento humano, sem excetuar as ciências
exatas; entretanto, foi sobretudo nas ciências metafísicas que o campo se abriu
às doutrinas mais contraditórias.
Se, todavia, um homem ajuizado e
de espírito – por que não os haveria na Lua? Comparar todos esses relatos incoerentes,
chegará à seguinte conclusão, muito lógica: que na Terra existem regiões
quentes e frias; que em certos países os homens se devoram entre si; que em
outros eles matam os que não pensam do mesmo modo, tudo para a maior glória de
sua divindade; finalmente, que cada um se pronuncia de acordo com os seus
conhecimentos e exalta as coisas do ponto de vista de suas paixões e de seus
interesses.
Em suma, em quem acreditará, de
preferência? Pela linguagem reconhecerá, sem dificuldade, o verdadeiro sábio do
ignorante; o homem sério do leviano; o que tem juízo daquele que raciocina em
falso; não confundirá os bons e os maus sentimentos, a elevação com a baixeza,
o bem com o mal. E dirá a si mesmo:
Devo ouvir tudo, escutar tudo, porque mesmo na conversa
do homem mais embrutecido posso aprender alguma coisa; minha estima e minha
confiança, porém, não serão conquistadas senão por aqueles que delas se
mostrarem dignos.
Se essa colônia terrena deseja
implantar seus costumes e usos em sua nova pátria, os sábios repelirão os conselhos
que lhes parecerem perniciosos e se confiarão àqueles que julgarem mais
esclarecidos, neles não vendo nem falsidade, nem mentiras, mas, ao contrário,
reconhecendo seu sincero amor do bem. Agiríamos de modo diferente, se uma
colônia de selenitas viesse cair na Terra? Pois bem! O que é dado aqui como
suposição, torna-se realidade no que concerne aos Espíritos; se não vêm entre
nós em carne e osso, nem por isso estão menos presentes de maneira oculta,
transmitindo-nos os pensamentos através de seus intérpretes, isto é, dos
médiuns. Quando aprendermos a conhecê-los, julgá-los-emos por sua linguagem,
por seus princípios, e suas contradições nada mais terão que nos deva
surpreender, porquanto vemos saberem uns aquilo que os outros ignoram; que
alguns estão colocados muito embaixo, ou são ainda muito materiais para
compreender e apreciar as coisas de ordem mais elevada; tal é o homem que, no
sopé da montanha, não vê senão alguns passos em volta dele, enquanto o que está
no alto descortina um horizonte sem limites.
A primeira fonte das
contradições decorre, pois, do grau de desenvolvimento intelectual e moral dos
Espíritos; porém há outras, sobre as quais é útil chamar a atenção. Dirão que
passamos sobre a questão dos Espíritos inferiores, desde que assim o é; compreende-se
que possam enganar-se por ignorância; todavia, como se justifica que Espíritos
superiores estejam em dissidência?
Que utilizem em certo país uma
linguagem diferente da que empregam em outro? Finalmente, que o mesmo Espírito
nem sempre seja coerente consigo mesmo?
A resposta a essa questão
repousa sobre o conhecimento completo da
ciência espírita, e essa ciência não pode ser ensinada em poucas palavras,
porque é tão vasta quanto todas as ciências filosóficas.
Como todos os ramos do
conhecimento humano, só é adquirida pelo estudo e pela observação. Não podemos
repetir aqui tudo quanto já publicamos sobre o assunto; a ele, pois, remetemos
nossos leitores, limitando-nos a um simples resumo. Todas essas dificuldades desaparecem
para quem quer que lance sobre esse terreno um olhar investigador e sem
prevenção.
Provam os fatos que os Espíritos
enganadores se paramentam de nomes respeitáveis, sem o menor escrúpulo, a fim de
que suas torpezas sejam aceitas com mais facilidade, o que por vezes também
ocorre entre nós. Pelo fato de um Espírito apresentar-se sob um nome qualquer,
não significa que seja realmente aquele que pretende ser; todavia, na linguagem
dos Espíritos sérios há um cunho de dignidade com o qual não se poderia
equivocar: só respira bondade e benevolência, e jamais se desmente. A dos
Espíritos impostores, ao contrário, seja qual for o verniz com que se apresentem,
deixa sempre a cauda exposta[3],
como se diz vulgarmente.
Nada há, pois, de espantoso em
que os Espíritos inferiores, sob nomes usurpados, ensinem verdadeiros
disparates. Compete ao observador procurar conhecer a verdade, e o pode fazer
sem dificuldade, desde que queira compenetrar-se do que a esse respeito dissemos em nossa Instrução Prática.
Esses mesmos Espíritos
geralmente lisonjeiam os gostos e as inclinações das pessoas, cujo caráter
sabem bastante fraco e bastante crédulo para os ouvir. Fazem-se eco de seus preconceitos
e, até mesmo, de suas ideias supersticiosas, por uma razão muito simples: os
Espíritos são atraídos por suas simpatias pelo Espírito das pessoas que os
chamam ou que os escutam com prazer.
Quanto aos Espíritos sérios,
podem igualmente manter uma linguagem diferente, segundo as pessoas, mas com outro
objetivo. Quando julgam útil e para melhor convencer, evitam chocar muito
bruscamente as crenças enraizadas, e se exprimem segundo os tempos, os lugares
e as pessoas. “Eis por que – dizem eles – não falamos a um chinês ou a um
maometano, como a um cristão ou a um homem civilizado: jamais seríamos ouvidos.
Algumas vezes, pois, parecemos entrar na maneira de ver das pessoas, a fim de
conduzi-las pouco a pouco àquilo que queremos, desde que isso possa ser
realizado sem alterar as verdades essenciais”. Não é evidente que se um
Espírito quiser levar um muçulmano fanático a praticar a sublime máxima do Evangelho:
“Não façais aos outros o que não gostaríeis que os outros vos fizessem”, seria
repelido se dissesse que foi Jesus que a ensinou? Ora, o que vale mais, deixar
ao muçulmano seu fanatismo ou torná-lo bom, fazendo com que momentaneamente acredite
que fora Alá que havia falado? Eis um problema cuja solução transferimos ao
leitor. Quanto a nós, parece-nos que, tornando-o mais doce e mais humano, seria
ele menos fanático e mais acessível à ideia de uma nova crença do que se lhe quiséssemos
impor pela força. Há verdades que, para serem aceitas, não podem ser lançadas
no rosto sem uma certa precaução.
Quantos males teriam os homens
evitado se sempre houvessem agido assim!
Como se vê, os Espíritos também
tomam precauções quando falam; nesse caso, porém, a divergência está no
acessório, e não no principal. Induzir os homens ao bem, destruir o egoísmo, o ódio,
a inveja, o ciúme, ensinar-lhes a praticar a verdadeira caridade cristã, eis
para eles o essencial; o resto virá em seu devido tempo; e tanto pregam pela
palavra quanto pelo exemplo, quando se trata de Espíritos verdadeiramente bons
e superiores; tudo neles respira doçura e benevolência. A irritação, a
violência, a aspereza e a dureza de linguagem, mesmo que seja para dizer boas
coisas, jamais denotam um sinal de verdadeira superioridade. Os Espíritos
realmente bons não se irritam nem jamais se encolerizam: se não são ouvidos,
vão se embora; eis tudo.
Existem ainda duas causas de
aparentes contradições que não devemos deixar passar em silêncio. Como já
dissemos em muitas ocasiões, os Espíritos inferiores dizem tudo o que se quer, sem
se preocuparem com a verdade; os Espíritos superiores se calam ou se recusam a
responder quando lhes fazem uma pergunta indiscreta ou sobre a qual não lhes é
permitido dar explicações.
Dizem eles:
Neste caso, não insistais jamais, porque serão
Espíritos levianos que responderão e vos enganarão; acreditais que somos nós e
podeis pensar que entramos em contradição. Os Espíritos sérios não se
contradizem jamais; sua linguagem é sempre a mesma com as mesmas pessoas. Se um
deles diz coisas contrárias sob o mesmo nome, ficai certos de que não é o mesmo
Espírito que fala ou, pelo menos, que não se trata de um Espírito bom.
Reconhecereis o bom pelos princípios que ensina, pois todo Espírito que não
prega o bem não é um Espírito bom, e devereis repeli-lo.
Querendo dizer a mesma coisa em
dois lugares diferentes, o mesmo Espírito não se servirá literalmente das
mesmas palavras: para ele o pensamento é tudo; mas o homem, infelizmente, é
levado mais a se prender à forma do que ao fundo, e é essa forma que muitas
vezes interpreta ao sabor de suas ideias e paixões. Dessa interpretação podem
originar-se contradições aparentes, que igualmente têm sua fonte na
insuficiência da linguagem humana para exprimir as coisas extra-humanas.
Estudemos o fundo, perscrutemos o pensamento
íntimo e veremos analogia muitas vezes onde um exame superficial nos teria
mostrado um disparate.
As causas das contradições na
linguagem dos Espíritos podem, pois, ser assim resumidas:
1.
O grau de
ignorância ou de saber dos Espíritos aos quais nos dirigimos;
2.
O embuste dos
Espíritos inferiores que, tomando nomes sob empréstimo podem dizer, por
malícia, ignorância e maldade, o contrário do que disse alhures o Espírito cujo
nome usurparam;
3.
Os defeitos
pessoais do médium, que podem influir sobre a pureza das comunicações e alterar
ou modificar o pensamento do Espírito;
4.
A insistência
para obter uma resposta que um Espírito recusa dar, e que é transmitida por um
Espírito inferior;
5.
A própria vontade
do Espírito, que fala segundo os tempos, os lugares e as pessoas, e que pode
julgar conveniente não dizer tudo a toda gente;
6.
A insuficiência
da linguagem humana para exprimir as coisas do mundo incorpóreo;
7.
A interpretação
que cada um pode dar a uma palavra ou explicação, conforme suas ideias e
preconceitos, ou o ponto de vista sob o qual encaram as coisas.
As dificuldades são tantas que
não se triunfa a não ser por um estudo longo e assíduo; aliás, jamais dissemos
que a ciência espírita era uma ciência fácil. O observador sério, que se
aprofunda em todas as coisas com maturidade, paciência e perseverança, capta uma
porção de matizes delicados que escapam ao observador superficial. É através
desses detalhes íntimos que ele se inicia nos segredos dessa ciência. A
experiência ensina a conhecer os Espíritos, como ensina a conhecer os homens.
Acabamos de considerar as
contradições sob o ponto de vista geral. Em outros artigos trataremos dos
pontos especiais mais importantes.
[1] Revista
Espírita – julho/1858 – Allan Kardec.
[2] O leitor compreenderá que nossa crítica não visa senão
os exageros em todas as coisas. Em tudo existe um lado bom; o erro consiste no
exclusivismo, que o sábio judicioso sempre sabe evitar. Não temos intenção de
confundir os verdadeiros sábios, dos quais a Humanidade se honra merecidamente,
com os que exploram suas ideias sem
discernimento; é desses
que queremos falar. Nosso objetivo é unicamente demonstrar que a própria
Ciência não está isenta de contradições.
[3] N.
do T.: Grifos nossos
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