Allan Kardec
Vemos certos escritores eméritos
dar de ombros à simples referência de uma história escrita pelos Espíritos.
– Como? dizem
eles.
– Como podem os
seres do outro mundo vir controlar o nosso saber, a nós outros, sábios da
Terra?
Ora, pois! Isso é possível?
– Senhores, não vos forçamos a acreditar; nem sequer
nos esforçaremos, por pouco que seja, para vos demover dessa ilusão tão cara.
Até mesmo no interesse de vossa glória futura, nós vos exortamos a inscrever
vossos nomes, em caracteres indestrutíveis, ao pé desta modesta sentença: Todos
os partidários do Espiritismo são insensatos, porque somente a nós cabe julgar
até onde vai o poder de Deus, e isso a fim de que a posteridade não vos
possa esquecer; ela mesma verá se deve conceder-vos um lugar ao lado dos que,
até há pouco tempo, repeliram os homens a quem a ciência e o reconhecimento
público hoje erigem estátuas.
No entanto, eis um escritor cuja
capacidade não é desconhecida por ninguém e que ousa, a despeito do risco de
fazer-se passar também por um cérebro vazio, hastear a bandeira das ideias
novas sobre as relações do mundo físico com o mundo corporal[2].
Na História de França, de
Henri Martin, volume 6, página 143, lemos o seguinte, a propósito de Joana
d’Arc:
(...) Existe, na Humanidade, uma ordem extraordinária
de fatos morais e físicos que parecem derrogar as leis ordinárias da Natureza:
são os estados de êxtase e de sonambulismo, quer espontâneo, quer artificial,
com todos os seus impressionantes fenômenos de deslocamento dos sentidos, de
insensibilidade total ou parcial do corpo, de exaltação da alma, enfim, de
percepções alheias a todas as condições da vida habitual. Essa classe de fatos
foi julgada sob pontos de vista inteiramente opostos. Os fisiologistas, vendo
perturbadas ou deslocadas as relações costumeiras dos órgãos físicos,
qualificam de doença o estado extático ou sonambúlico, admitindo a realidade
daqueles fenômenos que podem ser incluídos na patologia e negando todo o resto,
isto é, tudo aquilo que pareça estranho às leis constatadas da física. A seus
olhos, a doença se converte mesmo em loucura quando, ao deslocamento da ação
dos órgãos, junta-se a alucinação dos sentidos, tal como a visão de objetos,
que só existem para o visionário. Um eminente fisiologista defendeu, com toda
clareza, a tese de que Sócrates era louco, porque esse filósofo imaginava
conversar com o seu demônio. Respondem os místicos não somente atestando por
reais os fenômenos extraordinários das percepções magnéticas – questão sobre a
qual encontram numerosos auxiliares, e incontáveis testemunhas fora do
misticismo – mas sustentando, também, que as visões dos extáticos têm objetos
reais, vistos, é certo, não através dos olhos do corpo, mas do Espírito. Para
eles, o êxtase é a ponte lançada do mundo visível ao mundo invisível, o meio de
comunicação do homem com os seres superiores, a lembrança e a promessa da
existência de um mundo melhor, de onde fomos destituídos e que devemos
reconquistar.
Nesse debate, que partido devem tomar a História e a
Filosofia?
Não poderia a História determinar, com precisão, nem os
limites, nem a extensão dos fenômenos e das faculdades extáticas e
sonambúlicas; constata, porém, que ocorrem por toda parte; que sempre os homens
neles acreditaram; que têm exercido uma ação considerável sobre os destinos do
gênero humano; que se têm manifestado não somente entre os contemplativos, mas
igualmente entre os gênios mais poderosos e mais ativos; enfim, entre a maior
parte dos grandes iniciados; que, por mais desarrazoados se mostrem diversos
extáticos, nada há de comum entre as divagações da loucura e as visões de
alguns; que tais visões podem estabelecer ligações com certas leis; que os
extáticos de todos os países e de todos os séculos têm o que se poderia chamar
uma linguagem de símbolos, da qual a poesia é apenas um derivado, linguagem que
exprime, mais ou menos constantemente, as mesmas ideias e os mesmos sentimentos
pelas mesmas imagens.
Talvez seja mais temerário ainda tentar-se concluir em
nome da Filosofia; entretanto, após haver reconhecido a importância moral
desses fenômenos, por mais obscura nos seja sua lei e sua finalidade; depois de
neles distinguir dois graus, um inferior, que não passa de uma extensão
estranha ou de um deslocamento inexplicável da ação dos órgãos, o outro
superior, nada mais sendo do que a exaltação prodigiosa das forças morais e
intelectuais, o filósofo poderia sustentar,
ao que nos parece, que a ilusão do inspirado consiste em tomar, como revelação
trazida por seres exteriores, anjos, santos ou gênios, as revelações interiores
dessa personalidade infinita que está em nós e, muitas vezes também, entre os
melhores e os maiores, as quais se manifestam como lampejos de forças latentes
que ultrapassam, quase que sem medida, as faculdades de nossa condição atual.
Numa palavra, na linguagem dos mestres, são, para nós, fatos de subjetividade;
na linguagem das antigas filosofias místicas e das religiões mais adiantadas,
são as revelações do férouer masdeísta, do bom demônio (o de Sócrates), do anjo
guardião, desse outro Eu que nada mais é que o Eu eterno, em plena posse de si
mesmo, pairando sobre o Eu envolvido nas sombras desta vida (figura do
magnífico símbolo zoroastriano, figurado por toda parte em Persépolis e em
Nínive; o férouer alado ou o Eu celeste, adejando sobre a criatura terrestre).
Negar a ação dos seres exteriores sobre o inspirado;
não ver em suas pretensas manifestações mais que a forma dada às intuições do
extático pelas crenças de seu tempo e de seu país; e buscar a solução do
problema nas profundezas da personalidade humana, não é, absolutamente, uma
maneira de pôr em dúvida a intervenção divina nesses grandes fenômenos e nessas
grandes existências. O autor e sustentáculo de toda a vida, por mais
essencialmente independente que seja de cada criatura e de toda a criação, por mais
distinta que seja de nosso ser contingente a sua personalidade absoluta, de
forma alguma é um ser exterior, isto é, estranho a nós, e não é de fora que ele
nos fala; quando a alma mergulha em si mesma, nela o encontra e, em toda
inspiração salutar, nossa liberdade se associa à sua Providência. Aqui, como em
toda parte, grassa o duplo escolho da incredulidade e da piedade mal
esclarecida: uma não vê mais que ilusões e impulsos puramente humanos, a outra
recusa admitir qualquer parcela de ilusão, de ignorância ou de imperfeição,
onde vê somente o dedo de Deus. Como se os enviados de Deus deixassem de ser
homens, homens de um certo tempo e de um certo lugar, e como se os lampejos
sublimes que lhes atravessam a alma aí depositassem a ciência universal e a
perfeição absoluta. Nas mais evidentes e providenciais inspirações, os erros
que procedem dos homens se mesclam à verdade que provém de Deus. O Ser
Infalível a ninguém comunica a sua infalibilidade.
Não pensamos que essa digressão possa parecer
supérflua; tínhamos de nos pronunciar sobre o caráter e sobre a obra daquelas
que foram inspiradas e que, no mais alto grau, deram testemunho das faculdades
extraordinárias de que falamos há pouco, e que as aplicou à mais retumbante
missão dos tempos modernos; era, pois, preciso exprimir uma opinião quanto à
categoria dos seres excepcionais à qual pertence Joana d’Arc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário