segunda-feira, 6 de novembro de 2023

LUDWIG VAN BEETHOVEN[1]

 


Beethoven foi batizado em 17 de Dezembro de 1770, tendo nascido presumivelmente no dia anterior, na Renânia do Norte (Alemanha) e morreu em 26 de março de 1827.

Sua família era de origem flamenga, cujo sobrenome significava horta de beterrabas e no qual a partícula Van não indicava nobreza alguma.

Não há dúvida de que, como disse Leon Denis:

O gênio, sob as mil formas que reveste, é uma colaboração com o Invisível, uma assunção da alma humana à Divindade.

Os homens de gênio, os santos, os profetas, os grandes poetas, sábios, artistas, inventores, todos quantos têm dilatado o domínio da alma são enviados do Céu, executores dos desígnios de Deus em nosso mundo.

Os espiritistas, principalmente, sabemos muito bem que “a vida é uma escola e cada criatura, dentro dela, deve dar a própria lição.

Portanto, todos precisamos lutar com denodo e coragem, a fim de afugentarmos os convites tendentes a nos afastarem do dever primacial de nossos espíritos, qual o de nos prepararmos convenientemente para as lições que, dia a dia, somos convocados a prestar perante as nossas próprias consciências.

Há, obviamente, lições bem difíceis, como a da dor física e moral, da miséria, das ingratidões de todos os tipos. E esse amigo e esse socorro, nós os encontraremos se nos dispusermos a conhecer a vida heroica de grandes almas que sofreram pelo bem. Essas vidas, de homens ilustres, como disse Romain Rolland, não se dirigem ao orgulho dos ambiciosos, são dedicadas aos infelizes. E, no fundo, quem não é infeliz?

Ainda esse mesmo escritor, ao apresentar a biografia de Beethoven, declarou, com profundo senso realista, não considerar heróis os que triunfam pelo pensamento ou pela força, mas exclusivamente os que são grandes pelo coração.

E cita, como exemplo, o próprio Beethoven que afirmou não conhecer outro sinal de superioridade além da bondade, tanto que, no meio de suas dores, desejava que seu exemplo pudesse servir de arrimo aos outros miseráveis, e que o infeliz se consolasse encontrando um infeliz, como ele, que, não obstante todos os obstáculos da Natureza, fizera o possível para se tornar um homem digno desse nome.

A vida de Beethoven se lhe revelou, desde o começo, um combate triste e brutal. Toda ela foi como um dia de tempestade. A surdez o impossibilitou, ainda moço, de ouvir as suas grandiosas composições e, pode-se dizer que a melhor obra de Beethoven é a de Beethoven surdo.

Sua vida “prova, como disse um de seus biógrafos, a triste verdade que a glória é, com frequência, uma grande dor ornada de esplendorosa aparência de felicidade”, e ele tinha perfeita intuição de que não viera ao mundo para levar vida agradável, mas para realizar grande obra.

Quero provar – palavras suas - que todos os que procedem bem e nobremente podem, por isso mesmo, suportar a desgraça.

Foi grande apaixonado das ideias de Platão e Plutarco. Refugiava-se nos bosques para sentir as vibrações maravilhosas da Natureza. Era médium; constantemente recebia divinas inspirações. Levava consigo um caderno de apontamentos para registrar essas inspirações que lhe vinham quando menos esperava. E contam que, nesses momentos, enchia de pasmo os transeuntes, e, quando o surpreendiam ao piano, transfigurava-se-lhe o rosto, intumesciam-se-lhe as veias, o olhar ficava como que fixado no infinito, os lábios tremiam, seu aspecto era o de um feiticeiro vencido pelos próprios Espíritos evocados.

Afirmam mesmo que certa feita, em Viena, entrara em um restaurante, e, ao ser-lhe apresentado o cardápio pelo garçom, em vez de escolher o prato de sua preferência, começou, tomado de doce inspiração, a escrever, no seu verso, o que inesperadamente lhe era transmitido. Depois de o haver transformado em partitura, levantou-se e perguntou ao garçom quanto lhe devia, ao que este lhe retrucou:

-        O senhor não deve nada, pois ainda não comeu.

-        Como? Está você certo disso?

-        Sim, senhor – replicou o garçom.

-        Pois bem – disse Beethoven – traga-me então alguma coisa!

Em certa ocasião desejara transferir-se para Londres, onde pensava executar a Nona Sinfonia. Pela segunda vez, como em 1809, alguns nobres amigos suplicaram-lhe que permanecesse em Viena.

Sabemos – diziam eles – que escrevestes nova composição sacra (Missa em Ré) iluminada pela luz sobrenatural que penetra a vossa grande alma e na qual exprimistes os sentimentos que vos inspira a vossa fé profunda.

Alves Mendes, notável orador sacro lusitano, discursando na Associação dos Artistas de Coimbra, por ocasião do 32º Aniversário da sua fundação, ao referir-se a Beethoven, assim se externou:

Sublime Beethoven, maestro afinado pelas liras dos anjos, que, surdo, incomunicável, hermeticamente inacessível, cerradamente estranho à vibração das harmonias, traçaste esses cantos ideais, prodigiosíssimos, extasiantíssimos – esses cantos que parecem suspiros da alma, que são como a voz dos Espíritos.

Quando os críticos observavam que algumas de suas passagens musicais ultrapassavam a capacidade dos instrumentos para os quais tinham sido escritas, respondia:

Acreditarão, acaso, possa eu pensar num miserável violino quando converso com o Espírito? Seria o mesmo que esperar que um vulcão vertesse as suas lavas em moldes artificiais preparados por mãos humanas.

Quero, se for possível, dizia Beethoven, afrontar o destino; mas há momentos em que sou a mais miserável das criaturas de Deus. Resignação! Que triste refúgio. E é, entretanto, o único que me resta.

Essa tristeza trágica se exprime em várias de suas obras, como, por exemplo, na Sonata Patética, op. 13, e, sobretudo no largo da 3ª Sonata para piano, op. 10.

Na Quinta Sinfonia em Dó Menor, como escreveu Berlioz, desenvolve-se seu próprio pensamento íntimo, e suas mágoas recônditas, sua cólera, seus sonhos tão cheios de opressiva melancolia, suas visões noturnas e suas explosões de entusiasmo.

Essa Quinta Sinfonia é a história da luta do Homem contra o Destino, e da vitória do Homem guiado pelo Céu.

É o poema da peregrinação do Homem no sofrimento para a sabedoria, da sabedoria para a coragem, da coragem para a esperança e desta para a vida eterna, como muito bem afirmou um de seus biógrafos.

O primeiro tempo (alegro com brio) pinta o estado de um espírito conturbado pelo desespero; o tema inicial, através de inteligentes combinações, formado por quatro notas e que de quando em quando se fazem ouvidas no desenrolar dessa sinfonia, no dizer do próprio Beethoven, simboliza o destino batendo à nossa porta.

Podemos, por vezes, ter a ilusão de que vencemos o nosso destino; mas, quando menos esperamos, ei-lo que surge vigoroso, inclemente, tirânico. Sim, porque temos de sofrer, durante a nossa jornada terrena, os prejuízos de nossos atos e ações nesta ou em outras existências. E só seremos felizes, libertos, quando conseguirmos dominá-lo completamente.

Já na quarta parte dessa Sinfonia, partitura triunfal, alegre e enérgica, é a aurora radiante, a fase em que o Espírito domina a matéria com todos os prejuízos, vencendo o destino que criara com suas próprias mãos, para, então, liberto, gozar os encantamentos do amor verdadeiro e sincero, amor que é laço de luz eterna a unir os mundos e todos os seres da imensidade.

A carta testamento endereçada por Beethoven, em 6 de outubro de 1802, a seus irmãos Carl e Johann, cuja tradução da obra de Romain Rolland foi feita por José Lannes, bem evidencia não só os seus sentimentos, senão também a de sua mediunidade.

Ó vós, homens, que me considerais ou me dizeis rancoroso, louco ou misantropo, como sois injustos comigo!

Não sabeis a razão secreta dessas aparências. Meu coração e meu espírito se inclinavam desde a infância para o doce sentimento da bondade. Mesmo a realizar grandes ações sempre me senti disposto. Mas pensai somente em qual vem sendo de seis anos para cá meu estado horrível, agravado por médicos sem critério, enganado de ano em ano na esperança de melhora, constrangido, enfim, à perspectiva de um mal durável, cuja cura requer talvez anos, se não for totalmente impossível.

Nascido com um temperamento ardente e altivo, acessível mesmo às distrações sociais, cedo me vi forçado a separar-me dos homens e viver solitário. Se algumas vezes me dispunha a pairar acima dessas coisas, oh! com que aspereza me chocava com a triste experiência renovada dos meus males.

E, entretanto, não me era possível dizer aos homens: Falai mais alto, gritai, porque sou surdo! Ah! Como poderia revelar a deficiência de um sentido que deveria em me ser mais perfeito que nos outros, um sentido que possuí outrora tão apurado, tão apurado como poucos na minha profissão o tiveram!

Oh! Isto eu não o quero! Perdoai-me, pois, se me vedes viver afastado, quando quereria misturar-me convosco.

Dupla é a minha infelicidade, pois deve ser desconhecida. É-me interdito achar repouso no convívio dos homens, nas conversas delicadas, nas efusões recíprocas.

Só, absolutamente só. Não posso afoitar-me no mundo se o não exigir imperiosa necessidade. Devo viver como um proscrito. Se me aproximo de um grupo, sou preso de voraz angústia, com o temor de que descubram meu estado. Eis a razão dos seis meses que acabo de passar no campo. Meu sábio médico persuadiu-me a poupar o ouvido quanto me for possível. Ele vem de encontro ás minhas próprias intenções.

E, entretanto, dominado muitas vezes por minha inclinação, eu me tenho deixado arrastar ao convívio social. Mas que humilhação, quando alguém a meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe ou o canto do pastor, e eu não percebia nada. Experiências como essas quase me levaram ao desespero. E pouco me faltou para pôr termo à vida.

Foi a arte, ela só, que me reteve. Ah! parecia-me impossível deixar este mundo sem ter realizado tudo o de que me sentia incumbido. E assim eu prolongava esta vida miserável, verdadeiramente miserável, um corpo tão irritadiço que a mais pequena mudança pode lançar-me do melhor ao pior estado. Paciência! Assim me falam!...

É ela que devo agora escolher para guia. Tenho-a. Durável, eu o espero, deve ser minha resolução de resistir até que às parcas inexoráveis apraza-me cortar-me o fio da existência. Isto irá talvez para melhor, talvez não: estou preparado.

Aos 22 anos, ser já forçado a tornar-me filosofo, não é fácil; mais duro é ainda para o artista que para qualquer outro.

Divindade, tu penetras do alto o fundo de meu coração, tu o conheces, tu sabes que o amor humano e o desejo de fazer o bem nele habitam. Oh, homens, se um dia lerdes isto pensai na injustiça que me fizestes e que o infeliz se consola encontrando um infeliz como ele que, apesar dos obstáculos da Natureza, fez todo o possível para ser admitido na classe dos artistas e dos homens de escol.

Vós, meus irmãos Carl e Johann, assim que eu morrer e se o professor Schmidt ainda viver, pedi-lhe em meu nome que descreva minha moléstia e à história de minha moléstia juntai esta carta, a fim de que, depois de minha morte, o mais breve possível, o mundo se reconcilie comigo.

Ao mesmo tempo eu vos constituo herdeiros de minha pequena fortuna, se assim a posso chamar.

Partilhai-a com lealdade, sempre de acordo, auxiliai-vos mutuamente; o mal que me fizestes, já o sabeis, há muito tempo vê-lo perdoei.

A vós, irmão Carl, muito particularmente vos agradeço ainda pelo devotamento que me testemunhastes nestes últimos tempos.

Meu desejo é que tenhais uma vida feliz, mais livre de cuidados que a minha. Aconselhai os vossos filhos à Virtude. Somente ela, não o dinheiro, pode dar felicidade. Falo por experiência. Foi ela que me susteve na miséria. É a ela que devo, como também à minha arte, não haver terminado a vida pelo suicídio.

Adeus e amai-vos! Sou grato a todos os meus amigos, em particular ao Príncipe Lichnowski e ao Professor Schmidt.

Desejo que os instrumentos do Príncipe L. sejam conservados por um de vós. Mas que nenhuma discussão entre vós se levante por causa disso. Se melhor proveito vos puderem dar, vendei-os logo. Como me sentirei feliz, se ainda vos puder ser útil, no meu tumulo.

Se assim for, voarei com alegria para a morte. Se ela vier antes que eu possa desenvolver todas as minhas faculdades artísticas, apesar do meu duro destino, ela virá ainda muito cedo para mim e eu desejarei que se retarde. Mas, mesmo assim, estou contente. Não me libertará ela de um sofrimento sem fim?

Vem, quando quiseres, irei corajosamente ao teu encontro.

Adeus e não vos esqueçais inteiramente de mim, quando eu morrer. Eu mereço que penseis em mim, pois frequentemente, em vida, pensei em vós, para vos fazer felizes.

E sede felizes.

Ludwig Van Beethoven.

 

Em “Cartas a um Filho”, de Goethe, encontram-se estas particularidades acerca de Beethoven, e que provam de maneira muito precisa o que vimos afirmando, isto é, que Beethoven foi médium.

Beethoven, referindo-se à fonte de que lhe provinha a concepção de suas obras-primas, dizia a Betina:

Sinto-me obrigado a deixar transbordar de todos os lados as ondas de harmonia provenientes do foco da inspiração. Procuro acompanhá-las e delas me apodero apaixonadamente; de novo me escapam e desaparecem entre a multidão de distrações que me cercam. Daí a pouco, torno a apreender com ardor a inspiração; arrebatado, multiplicando todas as modulações, e venho, por fim, a me apropriar do primeiro pensamento musical. Vede agora: é uma sinfonia... Tenho necessidade de viver só comigo mesmo. Sinto que Deus e os anjos estão mais próximos de mim, na minha arte, do que os outros. Entro em comunhão com eles, e sem temor. A música é o único acesso espiritual nas esferas superiores da inteligência.

Após haver composto as mais suaves harmonias, exclamava ele: “Tive um êxtase”.

Beethoven renunciou ao mundo, a fim de granjear salvação – salvação através da música. Cantar para a glória eterna de Deus e para a fraternidade do homem!

A sua vida foi de verdadeiro e permanente temporal, escreveu alguém, e seu Espírito desencarnou durante uma tempestade de neve, ao clarão de um relâmpago!

São dignas de registro estas palavras de nosso grande Carlos Gomes:

Toda a vez que se fala de Beethoven, deve-se fazer o sinal da cruz e tirar-se o chapéu.

Lee van Dossi, escrevendo sobre os gênios e, referindo-se a Beethoven, compôs este magnífico hino de exaltação à sua memória:

Um titã entre os homens agraciou o mundo, não obstante sua grande pobreza, com inestimáveis tesouros; em sua triste solidão, sem mulher, sem amigos, sem o amor de parentes ou de filhos, cantou para o mundo, o mais impulsivo cântico de amor; incompreendido, ridicularizado a todo o instante e menosprezado, manteve sempre, com invencível dignidade, a fé em sua missão; educou-se por si mesmo com superior nobreza, através de duras lutas íntimas; surdo, privado do sentido que era o mais necessário para ele, ainda assim, ofertou aos homens sua possante e imortal música sempre repleta de novas maravilhas para o conhecedor, e também acessível a todo coração delicado.

Tudo que sabemos de suas lutas, o que encontramos escrito acerca de seu destino, tudo o que vem até nós, como torrente da colossal construção de catedral de suas sinfonias, de sua “Missa Solene” e de seu “Fidélio”, é alimento espiritual que entusiasma nosso sentimento estético e robustece nosso sentir moral.

Anton Dvorak, compositor tcheco, no propósito de explicar Beethoven a alguns alunos, conduziu um deles até a janela e exclamou, apontando para o céu:

 Você está vendo lá... no meio do céu... o Sol? Pois bem, Beethoven... é o Sol!

E Emmanuel Buenzod, comentando essa anedota, disse que a imagem do Sol, de enorme força, geradora da luz e da energia, é, com efeito, a que se apresenta muito naturalmente ao espírito, quando se pensa em Beethoven.

Nenhum comentário:

Postar um comentário