Beethoven foi batizado em 17 de
Dezembro de 1770, tendo nascido presumivelmente no dia anterior, na Renânia do
Norte (Alemanha) e morreu em 26 de março de 1827.
Sua família era de origem
flamenga, cujo sobrenome significava horta de beterrabas e no qual a
partícula Van não indicava nobreza alguma.
Não há dúvida de que, como disse
Leon
Denis:
O gênio, sob as mil formas que reveste, é uma
colaboração com o Invisível, uma assunção da alma humana à Divindade.
Os homens de gênio, os santos, os profetas, os grandes
poetas, sábios, artistas, inventores, todos quantos têm dilatado o domínio da
alma são enviados do Céu, executores dos desígnios de Deus em nosso mundo.
Os espiritistas, principalmente, sabemos muito bem que
“a vida é uma escola e cada criatura, dentro dela, deve dar a própria lição.
Portanto, todos precisamos lutar
com denodo e coragem, a fim de afugentarmos os convites tendentes a nos
afastarem do dever primacial de nossos espíritos, qual o de nos prepararmos
convenientemente para as lições que, dia a dia, somos convocados a prestar
perante as nossas próprias consciências.
Há, obviamente, lições bem
difíceis, como a da dor física e moral, da miséria, das ingratidões de todos os
tipos. E esse amigo e esse socorro, nós os encontraremos se nos dispusermos a
conhecer a vida heroica de grandes almas que sofreram pelo bem. Essas vidas, de
homens ilustres, como disse Romain Rolland, não se dirigem ao orgulho dos
ambiciosos, são dedicadas aos infelizes. E, no fundo, quem não é infeliz?
Ainda esse mesmo escritor, ao
apresentar a biografia de Beethoven, declarou, com profundo senso realista, não
considerar heróis os que triunfam pelo pensamento ou pela força, mas
exclusivamente os que são grandes pelo coração.
E cita, como exemplo, o próprio
Beethoven que afirmou não conhecer outro sinal de superioridade além da
bondade, tanto que, no meio de suas dores, desejava que seu exemplo pudesse
servir de arrimo aos outros miseráveis, e que o infeliz se consolasse
encontrando um infeliz, como ele, que, não obstante todos os obstáculos da
Natureza, fizera o possível para se tornar um homem digno desse nome.
A vida de Beethoven se lhe
revelou, desde o começo, um combate triste e brutal. Toda ela foi como um dia
de tempestade. A surdez o impossibilitou, ainda moço, de ouvir as suas
grandiosas composições e, pode-se dizer que a melhor obra de Beethoven é a de
Beethoven surdo.
Sua vida “prova, como disse um
de seus biógrafos, a triste verdade que a glória é, com frequência, uma grande
dor ornada de esplendorosa aparência de felicidade”, e ele tinha perfeita
intuição de que não viera ao mundo para levar vida agradável, mas para realizar
grande obra.
Quero provar – palavras
suas -
que todos os que procedem bem e nobremente podem, por isso mesmo, suportar a
desgraça.
Foi grande apaixonado das ideias
de Platão e Plutarco. Refugiava-se nos bosques para sentir as vibrações
maravilhosas da Natureza. Era médium; constantemente recebia divinas
inspirações. Levava consigo um caderno de apontamentos para registrar essas
inspirações que lhe vinham quando menos esperava. E contam que, nesses
momentos, enchia de pasmo os transeuntes, e, quando o surpreendiam ao piano,
transfigurava-se-lhe o rosto, intumesciam-se-lhe as veias, o olhar ficava como
que fixado no infinito, os lábios tremiam, seu aspecto era o de um feiticeiro
vencido pelos próprios Espíritos evocados.
Afirmam mesmo que certa feita,
em Viena, entrara em um restaurante, e, ao ser-lhe apresentado o cardápio pelo
garçom, em vez de escolher o prato de sua preferência, começou, tomado de doce
inspiração, a escrever, no seu verso, o que inesperadamente lhe era
transmitido. Depois de o haver transformado em partitura, levantou-se e
perguntou ao garçom quanto lhe devia, ao que este lhe retrucou:
-
O senhor não deve nada, pois ainda não comeu.
-
Como? Está você certo disso?
-
Sim, senhor – replicou o garçom.
-
Pois bem – disse Beethoven – traga-me
então alguma coisa!
Em certa ocasião desejara
transferir-se para Londres, onde pensava executar a Nona Sinfonia. Pela segunda
vez, como em 1809, alguns nobres amigos suplicaram-lhe que permanecesse em
Viena.
Sabemos – diziam eles – que escrevestes nova
composição sacra (Missa em Ré) iluminada pela luz sobrenatural que penetra a
vossa grande alma e na qual exprimistes os sentimentos que vos inspira a vossa
fé profunda.
Alves Mendes, notável orador
sacro lusitano, discursando na Associação dos Artistas de Coimbra, por ocasião
do 32º Aniversário da sua fundação, ao referir-se a Beethoven, assim se
externou:
Sublime Beethoven, maestro afinado pelas liras dos
anjos, que, surdo, incomunicável, hermeticamente inacessível, cerradamente
estranho à vibração das harmonias, traçaste esses cantos ideais,
prodigiosíssimos, extasiantíssimos – esses cantos que parecem suspiros da alma,
que são como a voz dos Espíritos.
Quando os críticos observavam
que algumas de suas passagens musicais ultrapassavam a capacidade dos
instrumentos para os quais tinham sido escritas, respondia:
Acreditarão, acaso, possa eu pensar num miserável
violino quando converso com o Espírito? Seria o mesmo que esperar que um vulcão
vertesse as suas lavas em moldes artificiais preparados por mãos humanas.
Quero, se for possível, dizia Beethoven,
afrontar o destino; mas há momentos em que sou a mais miserável das criaturas
de Deus. Resignação! Que triste refúgio. E é, entretanto, o único que me resta.
Essa tristeza trágica se exprime
em várias de suas obras, como, por exemplo, na Sonata Patética, op. 13, e,
sobretudo no largo da 3ª Sonata para piano, op. 10.
Na Quinta Sinfonia em Dó Menor,
como escreveu Berlioz, desenvolve-se seu próprio pensamento íntimo, e suas
mágoas recônditas, sua cólera, seus sonhos tão cheios de opressiva melancolia,
suas visões noturnas e suas explosões de entusiasmo.
Essa Quinta Sinfonia é a
história da luta do Homem contra o Destino, e da vitória do Homem guiado pelo
Céu.
É o poema da peregrinação do
Homem no sofrimento para a sabedoria, da sabedoria para a coragem, da coragem
para a esperança e desta para a vida eterna, como muito bem afirmou um de seus
biógrafos.
O primeiro tempo (alegro com
brio) pinta o estado de um espírito conturbado pelo desespero; o tema inicial,
através de inteligentes combinações, formado por quatro notas e que de quando
em quando se fazem ouvidas no desenrolar dessa sinfonia, no dizer do próprio
Beethoven, simboliza o destino batendo à nossa porta.
Podemos, por vezes, ter a ilusão
de que vencemos o nosso destino; mas, quando menos esperamos, ei-lo que surge
vigoroso, inclemente, tirânico. Sim, porque temos de sofrer, durante a nossa
jornada terrena, os prejuízos de nossos atos e ações nesta ou em outras
existências. E só seremos felizes, libertos, quando conseguirmos dominá-lo
completamente.
Já na quarta parte dessa
Sinfonia, partitura triunfal, alegre e enérgica, é a aurora radiante, a fase em
que o Espírito domina a matéria com todos os prejuízos, vencendo o destino que
criara com suas próprias mãos, para, então, liberto, gozar os encantamentos do
amor verdadeiro e sincero, amor que é laço de luz eterna a unir os mundos e
todos os seres da imensidade.
A carta testamento endereçada
por Beethoven, em 6 de outubro de 1802, a seus irmãos Carl e Johann, cuja
tradução da obra de Romain Rolland foi feita por José Lannes, bem evidencia não
só os seus sentimentos, senão também a de sua mediunidade.
Ó vós, homens, que me considerais ou me dizeis
rancoroso, louco ou misantropo, como sois injustos comigo!
Não sabeis a razão secreta dessas aparências. Meu
coração e meu espírito se inclinavam desde a infância para o doce sentimento da
bondade. Mesmo a realizar grandes ações sempre me senti disposto. Mas pensai
somente em qual vem sendo de seis anos para cá meu estado horrível, agravado
por médicos sem critério, enganado de ano em ano na esperança de melhora,
constrangido, enfim, à perspectiva de um mal durável, cuja cura requer talvez
anos, se não for totalmente impossível.
Nascido com um temperamento ardente e altivo, acessível
mesmo às distrações sociais, cedo me vi forçado a separar-me dos homens e viver
solitário. Se algumas vezes me dispunha a pairar acima dessas coisas, oh! com
que aspereza me chocava com a triste experiência renovada dos meus males.
E, entretanto, não me era possível dizer aos homens:
Falai mais alto, gritai, porque sou surdo! Ah! Como poderia revelar a
deficiência de um sentido que deveria em me ser mais perfeito que nos outros,
um sentido que possuí outrora tão apurado, tão apurado como poucos na minha
profissão o tiveram!
Oh! Isto eu não o quero! Perdoai-me, pois, se me vedes
viver afastado, quando quereria misturar-me convosco.
Dupla é a minha infelicidade, pois deve ser
desconhecida. É-me interdito achar repouso no convívio dos homens, nas
conversas delicadas, nas efusões recíprocas.
Só, absolutamente só. Não posso afoitar-me no mundo se
o não exigir imperiosa necessidade. Devo viver como um proscrito. Se me
aproximo de um grupo, sou preso de voraz angústia, com o temor de que descubram
meu estado. Eis a razão dos seis meses que acabo de passar no campo. Meu sábio
médico persuadiu-me a poupar o ouvido quanto me for possível. Ele vem de
encontro ás minhas próprias intenções.
E, entretanto, dominado muitas vezes por minha
inclinação, eu me tenho deixado arrastar ao convívio social. Mas que
humilhação, quando alguém a meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe ou o
canto do pastor, e eu não percebia nada. Experiências como essas quase me
levaram ao desespero. E pouco me faltou para pôr termo à vida.
Foi a arte, ela só, que me reteve. Ah! parecia-me
impossível deixar este mundo sem ter realizado tudo o de que me sentia
incumbido. E assim eu prolongava esta vida miserável, verdadeiramente
miserável, um corpo tão irritadiço que a mais pequena mudança pode lançar-me do
melhor ao pior estado. Paciência! Assim me falam!...
É ela que devo agora escolher para guia. Tenho-a.
Durável, eu o espero, deve ser minha resolução de resistir até que às parcas
inexoráveis apraza-me cortar-me o fio da existência. Isto irá talvez para
melhor, talvez não: estou preparado.
Aos 22 anos, ser já forçado a tornar-me filosofo, não é
fácil; mais duro é ainda para o artista que para qualquer outro.
Divindade, tu penetras do alto o fundo de meu coração,
tu o conheces, tu sabes que o amor humano e o desejo de fazer o bem nele
habitam. Oh, homens, se um dia lerdes isto pensai na injustiça que me fizestes
e que o infeliz se consola encontrando um infeliz como ele que, apesar dos
obstáculos da Natureza, fez todo o possível para ser admitido na classe dos
artistas e dos homens de escol.
Vós, meus irmãos Carl e Johann, assim que eu morrer e
se o professor Schmidt ainda viver, pedi-lhe em meu nome que descreva minha
moléstia e à história de minha moléstia juntai esta carta, a fim de que, depois
de minha morte, o mais breve possível, o mundo se reconcilie comigo.
Ao mesmo tempo eu vos constituo herdeiros de minha
pequena fortuna, se assim a posso chamar.
Partilhai-a com lealdade, sempre de acordo,
auxiliai-vos mutuamente; o mal que me fizestes, já o sabeis, há muito tempo
vê-lo perdoei.
A vós, irmão Carl, muito particularmente vos agradeço
ainda pelo devotamento que me testemunhastes nestes últimos tempos.
Meu desejo é que tenhais uma vida feliz, mais livre de
cuidados que a minha. Aconselhai os vossos filhos à Virtude. Somente ela, não o
dinheiro, pode dar felicidade. Falo por experiência. Foi ela que me susteve na
miséria. É a ela que devo, como também à minha arte, não haver terminado a vida
pelo suicídio.
Adeus e amai-vos! Sou grato a todos os meus amigos, em
particular ao Príncipe Lichnowski e ao Professor Schmidt.
Desejo que os instrumentos do Príncipe L. sejam
conservados por um de vós. Mas que nenhuma discussão entre vós se levante por
causa disso. Se melhor proveito vos puderem dar, vendei-os logo. Como me
sentirei feliz, se ainda vos puder ser útil, no meu tumulo.
Se assim for, voarei com alegria para a morte. Se ela
vier antes que eu possa desenvolver todas as minhas faculdades artísticas,
apesar do meu duro destino, ela virá ainda muito cedo para mim e eu desejarei
que se retarde. Mas, mesmo assim, estou contente. Não me libertará ela de um
sofrimento sem fim?
Vem, quando quiseres, irei corajosamente ao teu
encontro.
Adeus e não vos esqueçais inteiramente de mim, quando
eu morrer. Eu mereço que penseis em mim, pois frequentemente, em vida, pensei
em vós, para vos fazer felizes.
E sede felizes.
Ludwig Van
Beethoven.
Em “Cartas a um Filho”, de
Goethe, encontram-se estas particularidades acerca de Beethoven, e que provam
de maneira muito precisa o que vimos afirmando, isto é, que Beethoven foi
médium.
Beethoven, referindo-se à fonte
de que lhe provinha a concepção de suas obras-primas, dizia a Betina:
Sinto-me obrigado a deixar transbordar de todos os
lados as ondas de harmonia provenientes do foco da inspiração. Procuro
acompanhá-las e delas me apodero apaixonadamente; de novo me escapam e
desaparecem entre a multidão de distrações que me cercam. Daí a pouco, torno a
apreender com ardor a inspiração; arrebatado, multiplicando todas as
modulações, e venho, por fim, a me apropriar do primeiro pensamento musical.
Vede agora: é uma sinfonia... Tenho necessidade de viver só comigo mesmo. Sinto
que Deus e os anjos estão mais próximos de mim, na minha arte, do que os
outros. Entro em comunhão com eles, e sem temor. A música é o único acesso
espiritual nas esferas superiores da inteligência.
Após haver composto as mais
suaves harmonias, exclamava ele: “Tive um êxtase”.
Beethoven renunciou ao mundo, a
fim de granjear salvação – salvação através da música. Cantar para a glória
eterna de Deus e para a fraternidade do homem!
A sua vida foi de verdadeiro e
permanente temporal, escreveu alguém, e seu Espírito desencarnou durante uma
tempestade de neve, ao clarão de um relâmpago!
São dignas de registro estas
palavras de nosso grande Carlos Gomes:
Toda a vez que se fala de
Beethoven, deve-se fazer o sinal da cruz e tirar-se o chapéu.
Lee van Dossi, escrevendo sobre
os gênios e, referindo-se a Beethoven, compôs este magnífico hino de exaltação
à sua memória:
Um titã entre os homens agraciou o mundo, não obstante
sua grande pobreza, com inestimáveis tesouros; em sua triste solidão, sem
mulher, sem amigos, sem o amor de parentes ou de filhos, cantou para o mundo, o
mais impulsivo cântico de amor; incompreendido, ridicularizado a todo o
instante e menosprezado, manteve sempre, com invencível dignidade, a fé em sua
missão; educou-se por si mesmo com superior nobreza, através de duras lutas
íntimas; surdo, privado do sentido que era o mais necessário para ele, ainda
assim, ofertou aos homens sua possante e imortal música sempre repleta de novas
maravilhas para o conhecedor, e também acessível a todo coração delicado.
Tudo que sabemos de suas lutas, o que encontramos
escrito acerca de seu destino, tudo o que vem até nós, como torrente da
colossal construção de catedral de suas sinfonias, de sua “Missa Solene” e de
seu “Fidélio”, é alimento espiritual que entusiasma nosso sentimento estético e
robustece nosso sentir moral.
Anton Dvorak, compositor tcheco,
no propósito de explicar Beethoven a alguns alunos, conduziu um deles até a
janela e exclamou, apontando para o céu:
Você está vendo lá... no meio do céu... o Sol?
Pois bem, Beethoven... é o Sol!
E Emmanuel Buenzod, comentando
essa anedota, disse que a imagem do Sol, de enorme força, geradora da luz e da
energia, é, com efeito, a que se apresenta muito naturalmente ao espírito,
quando se pensa em Beethoven.
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