terça-feira, 17 de outubro de 2023

A FLORESTA DE DODONA E A ESTÁTUA DE MEMNON[1]

 

Los Colossos de Memnón


Allan Kardec

 

Para chegar à floresta de Dodona passamos pela Rua Lamartine e paramos um instante na casa do Sr. B***, onde vimos um móvel submisso propor-nos um novo problema de estática.

Os assistentes, em qualquer número, colocam-se em torno da mesa em questão, numa ordem também qualquer, pois não há, ali, nem números nem lugares cabalísticos; apoiam as mãos sobre a beirada; mentalmente, ou em voz alta, apelam aos Espíritos que têm o hábito de levar em conta o seu convite. Sendo conhecida nossa opinião sobre esse gênero de Espíritos, nós os tratamos um tanto sem-cerimônia. Apenas são decorridos quatro ou cinco minutos quando um ruído claro de toc, toc se faz ouvir na mesa, por vezes bastante forte para ser percebido na sala vizinha, repetindo-se tanto tempo e tantas vezes quanto se deseje. A vibração é sentida nos dedos e, ao aplicar-se o ouvido à mesa, reconhece-se, sem qualquer equívoco, que o ruído se origina na própria substância da madeira, visto vibrar a mesa inteira, dos pés ao tampo.

Qual a causa desse ruído? É a madeira que opera ou, como se costuma dizer, um Espírito? Afastemos, inicialmente, qualquer ideia de fraude; encontramo-nos em casa de pessoas muito sérias, e de muito boa companhia para se divertirem à custa daqueles que recebem de bom grado; aliás, essa casa não é de modo algum privilegiada; fatos idênticos se produzem em cem outras, igualmente distintas. Seja-nos permitido uma pequena digressão, enquanto aguardamos a resposta.

Um jovem bacharelando estava em seu quarto, ocupado em recordar suas lições de retórica; batem à porta. Imagino que se possa distinguir a natureza do ruído e, sobretudo por sua repetição, se é causado por um estalido da madeira, pela agitação do vento ou outra causa fortuita qualquer, ou se é alguém que bate, querendo entrar. Neste último caso o ruído tem um caráter intencional que não pode ser posto em dúvida; é o que pensa nosso estudante.

Entretanto, para não se incomodar inutilmente, quis assegurar-se disso, pondo à prova o visitante. Se é alguém – diz – batei uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes; batei no alto, em baixo, à direita, à esquerda; batei o compasso, batei o toque de chamada militar etc.; e a cada um desses pedidos o ruído obedece com a mais perfeita pontualidade. Seguramente, pensa ele, não pode ser o estalido da madeira, nem o vento, nem mesmo um gato, por mais inteligente que se o suponha. Eis um fato; vejamos a que consequências nos conduzirão os argumentos silogísticos. Raciocina, então, da seguinte forma: Ouço um ruído; logo, é alguma coisa que o produz. Esse ruído obedece ao meu comando; portanto, a causa que o produz me compreende. Ora, o que compreende tem inteligência, portanto a causa desse barulho é inteligente. Se é inteligente, não é a madeira, nem o vento; se não é nem um, nem outro, é alguém. Então foi abrir a porta. Vê-se que não é preciso ser doutor para chegar a essa conclusão e julgamos nosso aprendiz de bacharel bastante aferrado aos seus princípios para deduzir o seguinte: suponhamos que, ao abrir a porta, não encontre ninguém e o ruído continue exatamente da mesma maneira. Ele prosseguirá o seu raciocínio:

Acabo de provar a mim mesmo, sem contestação, que o ruído é produzido por um ser inteligente, visto responder ao meu pensamento. Ouço sempre esse ruído diante de mim e é certo que não sou eu quem bate; é, pois, um outro; ora, se não vejo esse outro, é porque é invisível. Os seres corporais que pertencem à Humanidade são perfeitamente visíveis; sendo invisível o que bate, não é um ser corporal humano. À vista disso, desde que chamamos de Espíritos os seres incorpóreos, e não sendo corpóreo o ser que bate, há, pois, de ser um Espírito.

Julgamos perfeitamente lógicas as conclusões de nosso estudante; apenas aquilo que demos como suposição é uma realidade, no que concerne às experiências feitas na casa do Sr. B***. Acrescentaremos que era desnecessária a imposição das mãos e que todos os fenômenos se produziram igualmente bem, ainda que a mesa estivesse livre de qualquer contato. Assim, conforme o desejo expresso, os golpes faziam-se ouvir na mesa, na parede, na porta e em outros lugares, designados verbal ou mentalmente; indicavam a hora, o número de pessoas presentes; batiam o avanço, o toque de chamada militar, o ritmo de uma ária conhecida; imitavam o trabalho do tanoeiro, o rangido da serra, o eco, as rajadas de tiros isolados ou de pelotões, e muitos outros efeitos que seria cansativo descrever.

Foi-nos dito terem ouvido imitar, em certo círculo, o sibilar do vento, o sussurro das folhas, o ribombar do trovão, o marulho das vagas, o que nada tem de surpreendente. A inteligência da causa tornava-se patente quando, por meio desses golpes, eram obtidas respostas categóricas a determinadas questões; ora, é a essa causa inteligente que chamamos ou, melhor dizendo, que chamou a si mesma Espírito. Quando esse Espírito queria dar uma comunicação mais desenvolvida, indicava, por meio de um sinal particular, que desejava escrever; então, o médium escrevente tomava o lápis e transmitia por escrito o seu pensamento.

Entre os assistentes, não falando dos que estavam em volta da mesa, mas de todas as pessoas que enchiam o salão, havia incrédulos autênticos, semicrentes e adeptos fervorosos, mistura pouco favorável como se sabe. Deixaremos os primeiros à vontade, esperando que a luz se faça para eles. Respeitamos todas as crenças, mesmo a incredulidade, que também é uma espécie de crença, quando se preza bastante para não chocar as opiniões contrárias. Não diremos, portanto, que não possam brindar-nos com observações úteis. Seu raciocínio, muito menos prolixo que o do nosso estudante, resume-se geralmente assim: Não creio nos Espíritos, portanto, não podem ser Espíritos. Visto que não são Espíritos, deve ser um truque. Essa conclusão os leva naturalmente a supor que a mesa seria dotada de um maquinismo qualquer, à maneira de Robert Houdin. Nossa resposta é muito simples: primeiro seria necessário que todas as mesas e todos os móveis fossem dotados de tal maquinismo, pois que não os há privilegiados; segundo, desconhecemos artifício assaz engenhoso que produza, à vontade, todos os efeitos que acabamos de descrever; terceiro, seria preciso que o Sr. B*** aparelhasse as paredes e portas de seu apartamento com o mesmo maquinismo, o que é pouco provável; e em quarto lugar, enfim, teria sido necessário que as mesas, as portas e as paredes de todas as casas onde tais fenômenos se produzem diariamente fossem igualmente dotadas de maquinismo semelhante, o que também não seria de presumir-se, porque, então, se conheceria o hábil construtor de tantas maravilhas.

Os semicrentes admitem todos os fenômenos, mas estão indecisos quanto à sua causa. Nós os mandamos de volta aos argumentos do nosso futuro bacharel.

Os crentes apresentam três matizes bem característicos: os que nas experiências não veem mais que uma diversão e um passatempo, e cuja admiração se traduz por estas palavras ou seus análogos: É espantoso! É singular! É bem engraçado! Mas não vão além disto. Em seguida vêm as pessoas sérias, instruídas, observadoras, a quem nenhum detalhe escapa e para as quais as menores coisas constituem objeto de estudo. Finalmente, vêm os ultra crentes, se assim nos podemos exprimir ou, melhor dizendo, os crentes cegos, os que se pode censurar pelo excesso de credulidade, cuja fé, não suficientemente esclarecida, dá-lhes uma tal confiança nos Espíritos a ponto de lhes emprestarem todos os conhecimentos, a presciência, sobretudo. Assim, é com a melhor boa-fé do mundo que fazem perguntas sobre todos os assuntos, sem lhes passar pela mente que teriam obtido as mesmas respostas de uma cartomante a quem pagassem algumas moedas. Para eles, a mesa falante não é matéria de estudo ou de observação: é um oráculo. Contra ela há apenas a forma trivial e os seus usos muito vulgares, porém, se a madeira de que é feita, em vez de ser aparelhada para as necessidades domésticas, estivesse de pé, teríeis uma árvore falante; fosse nela esculpida uma estátua e teríeis um ídolo, ante o qual viriam prostrar-se as pessoas crédulas.

Agora, transponhamos os mares e vinte e cinco séculos atrás, e nos transportemos ao pé do monte Taurus, em Epiro; aí encontraremos a floresta sagrada, cujos carvalhos proferiam oráculos; acrescentai a isso o prestígio do culto e a pompa das cerimônias religiosas e facilmente se explicará a veneração de um povo ignorante e crédulo, incapaz de perceber a realidade através de tantos meios de fascinação.

A madeira não é a única substância que pode servir de veículo à manifestação dos Espíritos batedores. Vimo-la produzir-se numa parede e, por consequência, na pedra. Temos, pois, desse modo, as pedras falantes. Representem essas pedras uma personagem sagrada e teremos a estátua de Memnon ou a de Júpiter Ammon, proferindo oráculos como as árvores de Dodona.

É verdade que a história não nos diz que esses oráculos eram proferidos por pancadas, como vemos em nossos dias. Na floresta de Dodona resultavam do sibilar do vento através das árvores, do sussurro das folhas ou do murmúrio da fonte que jorra ao pé do carvalho consagrado a Júpiter. Diz-se que a estátua de Memnon emitia sons melodiosos aos primeiros raios do sol. Mas também a História nos diz, como teremos ocasião de demonstrar, que os Antigos conheciam perfeitamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos batedores. Ninguém duvida de que nisso repouse o princípio de sua crença na existência de seres animados nas árvores, nas pedras, nas águas etc. Mas, desde que tal gênero de manifestação foi explorado, as batidas já não eram suficientes; os visitantes eram muito numerosos para que a cada um se pudesse oferecer uma seção particular, o que teria sido, aliás, muito simples; era preciso o prestígio e, contanto que enriquecessem o templo com suas oferendas, tais despesas deviam ser providas. O essencial era que o objeto fosse olhado como sagrado e habitado por uma divindade; desde então, podia-se fazê-lo dizer aquilo que se quisesse, sem se precisar tomar tantas precauções.

Diz-se que os sacerdotes de Memnon usavam de fraude; a estátua era oca e os sons que emitia eram produzidos por algum processo acústico. Isso é possível e mesmo provável. Até os Espíritos batedores, que em geral são menos escrupulosos do que os outros, nem sempre estão, como nos disseram, à disposição do primeiro que chegar: têm sua vontade, suas ocupações, suas susceptibilidades e nenhum gosta de ser explorado pela cupidez. Que descrédito para os sacerdotes se não fizessem falar o seu ídolo de modo convincente! Seria preciso suprir seu silêncio e, se necessário, forçar uma ajuda. Aliás, era muito mais cômodo do que se dar a tanto trabalho, bastando formular a resposta conforme as circunstâncias. O que vemos hoje em dia não é prova menos evidente de que, a despeito disto, tinham por princípio o conhecimento das manifestações espíritas, razão por que dissemos que o Espiritismo moderno é o despertar da Antiguidade, porém da Antiguidade esclarecida pelas luzes da civilização e da realidade.



[1] Revista Espírita – fevereiro/1858 – Allan Kardec

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