terça-feira, 5 de setembro de 2023

O DESPERTAR DO SR. LUÍS[1]

 



Allan Kardec

 

No número precedente publicamos o relato do estado singular de um Espírito que julgava sonhar. Enfim despertou, e o anunciou espontaneamente, na comunicação seguinte:

 

(Sociedade de Paris, 12 de fevereiro de 1869 – Médium: Sr. Leymarie)

 

Decididamente, senhores, malgrado meu, é preciso que eu abra os olhos e os ouvidos; é preciso que escute e veja. Por mais que negue e declare que sois maníacos, muito corajosos, mas muito inclinados aos devaneios, às ilusões, é preciso, confesso, apesar dos meus ditos, que finalmente eu saiba que não sonho mais. Acerca disto, estou certo, completamente certo. Venho à vossa casa todas as sextas-feiras, dias de reunião e, de tanto ouvir repetir, quis saber se esse famoso sonho se prolongaria indefinidamente. O amigo Jobard se encarregou de me edificar a respeito, e isto com provas sólidas.

Não pertenço mais à Terra; estou morto; vi o luto dos meus, o pesar dos amigos, o contentamento de alguns invejosos e agora venho ver-vos. Meu corpo não me seguiu; está mesmo lá, no seu recanto, no meio do esterco humano; e, com ou sem apelo, hoje venho a vós, não mais com despeito, mas com o desejo e a convicção de me esclarecer. Discirno perfeitamente; vejo o que fui; percorro com Jobard distâncias imensas: então vivo; concebo, combino, possuo minha vontade e meu livre-arbítrio: assim, nem tudo morre. Não éramos, pois, uma agregação inteligente de moléculas e todas as salmodias sobre a inteligência da matéria não passavam de frases vazias e sem consistência.

Ah! crede, senhores, se meus olhos se abrem, se entrevejo uma verdade nova, não é sem sofrimentos, sem revoltas, sem retornos amargos!

É, pois, muito verdadeiro! O Espírito permanece! Fluido inteligente, pode, sem a matéria, viver sua vida própria, etérea, segundo a vossa expressão: semimaterial. Por vezes, entretanto, eu me pergunto se o sonho fantástico que eu tinha há mais de um mês não continua com peripécias novas, inauditas; mas o raciocínio frio, impassível de Jobard força-me a mão e, quando resisto, ele ri e se deleita em me confundir; todo contente, cumula-me de epigramas e ditos alegres! Por mais que eu me rebele e me revolte, é preciso obedecer à verdade.

O  Desnoyers da Terra, o autor de Jean-Paul Choppard ainda está vivo e seu pensamento ardente abarca outros horizontes.

Outrora ele era liberal e terra-a-terra, ao passo que agora aborda e abraça problemas desconhecidos, maravilhosos; e, diante dessas novas apreciações, senhores, tende a bondade de me perdoar as expressões um tanto levianas, porque, se eu não tinha razão completamente, bem poderíeis estar um pouco errados.

Desejo refletir, reconhecer-me definitivamente, e se o resultado de minhas pesquisas sérias me conduzir às vossas ideias, hei de esperar, mas já não será para me dar um tiro nos miolos.

Até outra vez, senhores.

Luís Desnoyers

 

O mesmo Espírito deu espontaneamente a comunicação seguinte, a propósito da morte de Lamartine.

 

(Sociedade de Paris, 5 de março de 1869 – Médium: Sr. Leymarie)

 

Sim, senhores, nós morremos mais ou menos esquecidos; pobres seres, vivemos confiantes nos órgãos que transmitem os nossos pensamentos. Queremos a vida com suas exuberâncias, fazemos uma multidão de projetos. Neste mundo a nossa passagem pode ter tido a sua repercussão e, chegada a última hora, todos esses ruídos, todo esse barulhinho, nossa soberba, nosso egoísmo, nosso labor, tudo é engolido na massa. É uma gota d’água no oceano humano.

Lamartine era um grande e nobre espírito, cavalheiresco, entusiasta, um verdadeiro mestre na acepção da palavra, um diamante puro, bem lapidado; era belo, grande; tinha o olhar, tinha o gesto do predestinado; sabia pensar, escrever; sabia falar; era um inspirado, um transformador!... Poeta, mudou o impulso da literatura, emprestando-lhe suas asas prodigiosas; homem, governou um povo, uma revolução, e suas mãos se retiraram puras do contato com o poder.

Ninguém mais que ele foi amado, estimado, bendito, adorado; e quando vieram os cabelos brancos, quando o desânimo tomou o belo velho, o lutador dos grandes dias, não lhe perdoaram mais um instante de desfalecimento. A própria França estava desfalecida e esbofeteou o poeta, o grande homem; quis menoscabá-lo, esse lutador de duas revoluções, e o esquecimento, repito, parecia enterrar essa grande e magnânima figura! Ele está morto e bem morto, pois o acolhi no além-túmulo, com todos os que o tinham apreciado e estimado, malgrado o ostracismo, do qual a juventude das escolas fazia uma arma contra ele.

Estava transfigurado, sim, senhores, pela dor de ter visto os que o tinham tanto amado recusar-lhe o devotamento que, no entanto, ele nunca soube recusar em outros tempos, enquanto os vencedores lhe estendiam as mãos. O poeta havia se tornado filósofo, e esse pensador amadurecia sua alma dolorida para a grande prova. Via melhor; pressentia tudo, tudo o que esperais, senhores, e tudo o que eu não esperava.

Mais que ele, sou um vencido; vencido pela morte, vencido em vida pela necessidade, esse inimigo inacessível que nos importuna como um corrosivo; e muito mais vencido hoje, porque venho inclinar-me ante a verdade.

Ah! Se para a França hoje reluz uma grande verdade; se a França de 89, se a mãe de tantos gênios desaparecidos recomeça a sentir que um de seus mais caros filhos, o bom, o nobre Lamartine desapareceu, hoje sinto que para ele nada está morto; sua lembrança está em toda parte; as ondas sonoras de tantas lembranças comovem o mundo. Ele era imortal entre vós, mas muito mais ainda entre nós, onde está realmente transfigurado. Seu Espírito resplandece, e Deus pode receber o grande desconhecido.

De agora em diante Lamartine pode abarcar os mais vastos horizontes e cantar os hinos grandiosos que o seu grande coração havia sonhado. Pode preparar o vosso futuro, meus amigos, e acelerar conosco as etapas humanitárias. Mais que nunca poderá ver desenvolver-se em vós esse ardente amor pela instrução, pelo progresso, pela liberdade e pela associação, que são os elementos do futuro. A França é uma iniciadora; ela sabe o que pode; quererá, ousará, quando sua juba poderosa tiver sacudido o formigueiro que vive a expensas de sua virilidade e de sua grandeza.

Poderei eu, como ele, ganhar minha auréola e tornar-me resplandecente de felicidade, ver-me regenerar por vossa crença, cuja grandeza hoje compreendo? Para vós Deus me marcou como uma ovelha desgarrada; obrigado, senhores. Ao contato dos mortos tão lamentados, sinto-me viver e em breve direi convosco na mesma prece: A morte é a glória; a morte é a vida.

Luís Desnoyers

 

Observação – Uma senhora, membro da Sociedade, que conhecia particularmente o Sr. Lamartine, e tinha assistido aos seus últimos momentos, acabava de dizer que, depois de sua morte, sua fisionomia se havia literalmente transfigurado, que não tinha mais a decrepitude da velhice. É a essa circunstância que o Espírito aludia.



[1] Revista Espírita – abril/1869 – Allan Kardec

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