Allan Kardec
No número precedente publicamos
o relato do estado singular de um Espírito
que julgava sonhar. Enfim despertou, e o anunciou espontaneamente, na
comunicação seguinte:
(Sociedade de Paris, 12 de fevereiro de 1869 – Médium:
Sr. Leymarie)
Decididamente, senhores, malgrado meu, é preciso que eu
abra os olhos e os ouvidos; é preciso que escute e veja. Por mais que negue e
declare que sois maníacos, muito corajosos, mas muito inclinados aos devaneios,
às ilusões, é preciso, confesso, apesar dos meus ditos, que finalmente eu saiba
que não sonho mais. Acerca disto, estou certo, completamente certo. Venho à
vossa casa todas as sextas-feiras, dias de reunião e, de tanto ouvir repetir,
quis saber se esse famoso sonho se prolongaria indefinidamente. O amigo Jobard
se encarregou de me edificar a respeito, e isto com provas sólidas.
Não pertenço mais à Terra; estou morto; vi o luto dos
meus, o pesar dos amigos, o contentamento de alguns invejosos e agora venho
ver-vos. Meu corpo não me seguiu; está mesmo lá, no seu recanto, no meio do
esterco humano; e, com ou sem apelo, hoje venho a vós, não mais com despeito,
mas com o desejo e a convicção de me esclarecer. Discirno perfeitamente; vejo o
que fui; percorro com Jobard distâncias imensas: então vivo; concebo, combino,
possuo minha vontade e meu livre-arbítrio: assim, nem tudo morre. Não éramos,
pois, uma agregação inteligente de moléculas e todas as salmodias sobre a
inteligência da matéria não passavam de frases vazias e sem consistência.
Ah! crede, senhores, se meus olhos se abrem, se
entrevejo uma verdade nova, não é sem sofrimentos, sem revoltas, sem retornos
amargos!
É, pois, muito verdadeiro! O Espírito permanece! Fluido
inteligente, pode, sem a matéria, viver sua vida própria, etérea, segundo a
vossa expressão: semimaterial. Por vezes, entretanto, eu me pergunto se o sonho
fantástico que eu tinha há mais de um mês não continua com peripécias novas,
inauditas; mas o raciocínio frio, impassível de Jobard força-me a mão e, quando
resisto, ele ri e se deleita em me confundir; todo contente, cumula-me de
epigramas e ditos alegres! Por mais que eu me rebele e me revolte, é preciso
obedecer à verdade.
O Desnoyers da
Terra, o autor de Jean-Paul Choppard ainda está vivo e seu pensamento
ardente abarca outros horizontes.
Outrora ele era liberal e terra-a-terra, ao passo que
agora aborda e abraça problemas desconhecidos, maravilhosos; e, diante dessas
novas apreciações, senhores, tende a bondade de me perdoar as expressões um
tanto levianas, porque, se eu não tinha razão completamente, bem poderíeis
estar um pouco errados.
Desejo refletir, reconhecer-me definitivamente, e se o
resultado de minhas pesquisas sérias me conduzir às vossas ideias, hei de
esperar, mas já não será para me dar um tiro nos miolos.
Até outra vez, senhores.
Luís Desnoyers
O mesmo Espírito deu
espontaneamente a comunicação seguinte, a propósito da morte de Lamartine.
(Sociedade de Paris, 5 de março de 1869 – Médium: Sr.
Leymarie)
Sim, senhores, nós morremos mais ou menos esquecidos;
pobres seres, vivemos confiantes nos órgãos que transmitem os nossos
pensamentos. Queremos a vida com suas exuberâncias, fazemos uma multidão de
projetos. Neste mundo a nossa passagem pode ter tido a sua repercussão e,
chegada a última hora, todos esses ruídos, todo esse barulhinho, nossa soberba,
nosso egoísmo, nosso labor, tudo é engolido na massa. É uma gota d’água no
oceano humano.
Lamartine era um grande e nobre espírito,
cavalheiresco, entusiasta, um verdadeiro mestre na acepção da palavra, um
diamante puro, bem lapidado; era belo, grande; tinha o olhar, tinha o gesto do
predestinado; sabia pensar, escrever; sabia falar; era um inspirado, um
transformador!... Poeta, mudou o impulso da literatura, emprestando-lhe suas
asas prodigiosas; homem, governou um povo, uma revolução, e suas mãos se
retiraram puras do contato com o poder.
Ninguém mais que ele foi amado, estimado, bendito,
adorado; e quando vieram os cabelos brancos, quando o desânimo tomou o belo
velho, o lutador dos grandes dias, não lhe perdoaram mais um instante de
desfalecimento. A própria França estava desfalecida e esbofeteou o poeta, o
grande homem; quis menoscabá-lo, esse lutador de duas revoluções, e o
esquecimento, repito, parecia enterrar essa grande e magnânima figura! Ele está
morto e bem morto, pois o acolhi no além-túmulo, com todos os que o tinham
apreciado e estimado, malgrado o ostracismo, do qual a juventude das escolas
fazia uma arma contra ele.
Estava transfigurado, sim, senhores, pela dor de ter
visto os que o tinham tanto amado recusar-lhe o devotamento que, no entanto,
ele nunca soube recusar em outros tempos, enquanto os vencedores lhe estendiam
as mãos. O poeta havia se tornado filósofo, e esse pensador amadurecia sua alma
dolorida para a grande prova. Via melhor; pressentia tudo, tudo o que esperais,
senhores, e tudo o que eu não esperava.
Mais que ele, sou um vencido; vencido pela morte,
vencido em vida pela necessidade, esse inimigo inacessível que nos importuna
como um corrosivo; e muito mais vencido hoje, porque venho inclinar-me ante a
verdade.
Ah! Se para a França hoje reluz uma grande verdade; se
a França de 89, se a mãe de tantos gênios desaparecidos recomeça a sentir que
um de seus mais caros filhos, o bom, o nobre Lamartine desapareceu, hoje sinto
que para ele nada está morto; sua lembrança está em toda parte; as ondas
sonoras de tantas lembranças comovem o mundo. Ele era imortal entre vós, mas
muito mais ainda entre nós, onde está realmente transfigurado. Seu Espírito
resplandece, e Deus pode receber o grande desconhecido.
De agora em diante Lamartine pode abarcar os mais
vastos horizontes e cantar os hinos grandiosos que o seu grande coração havia
sonhado. Pode preparar o vosso futuro, meus amigos, e acelerar conosco as
etapas humanitárias. Mais que nunca poderá ver desenvolver-se em vós esse
ardente amor pela instrução, pelo progresso, pela liberdade e pela associação,
que são os elementos do futuro. A França é uma iniciadora; ela sabe o que pode;
quererá, ousará, quando sua juba poderosa tiver sacudido o formigueiro que vive
a expensas de sua virilidade e de sua grandeza.
Poderei eu, como ele, ganhar minha auréola e tornar-me
resplandecente de felicidade, ver-me regenerar por vossa crença, cuja grandeza
hoje compreendo? Para vós Deus me marcou como uma ovelha desgarrada; obrigado,
senhores. Ao contato dos mortos tão lamentados, sinto-me viver e em breve direi
convosco na mesma prece: A morte é a glória; a morte é a vida.
Luís Desnoyers
Observação – Uma senhora, membro da Sociedade, que
conhecia particularmente o Sr. Lamartine, e tinha assistido aos seus últimos
momentos, acabava de dizer que, depois de sua morte, sua fisionomia se havia
literalmente transfigurado, que não tinha mais a decrepitude da velhice. É a
essa circunstância que o Espírito aludia.
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