Allan Kardec
Vários jornais reproduziram o
seguinte artigo:
O incidente da semana – escrevem de Roma, ao Times – é a
ordem dada ao Sr.
Home, o célebre médium, para deixar a cidade pontifícia em três dias.
Convidado a apresentar-se à polícia romana, o Sr. Home passou
por um interrogatório formal. Perguntaram-lhe quanto tempo pretendia passar em
Roma; se se entregava às práticas do Espiritismo depois de sua conversão ao
catolicismo etc. etc. Eis algumas palavras trocadas na ocasião, tais quais o
próprio Sr. Home registrou em suas notas particulares, e que ele transmite, ao
que parece, com muita facilidade.
– Depois de vossa conversão ao catolicismo, exercestes
o poder de médium?
– Nem depois, nem antes exerci tal poder, pois, como
não depende de minha vontade, não posso dizer que o exerço.
– Considerais esse poder como um dom da Natureza?
– Eu o considero como um dom de Deus.
– Que religião ensinam os Espíritos?
– Isto depende.
– Que fazeis para que eles venham?
– Respondi que nada fazia.
Mas no mesmo instante, batidas repetidas e distintas foram
ouvidas sobre a mesa onde escrevia o meu investigador.
– Mas também fazeis as mesas se moverem? perguntou
ele.
No mesmo instante a mesa se pôs em movimento.
Pouco tocado por esses prodígios, o chefe da polícia convidou
o mágico a deixar Roma em três dias. Abrigando-se, como era direito seu, sob a
proteção das leis internacionais, o Sr. Home relatou o fato ao cônsul da
Inglaterra, o qual obteve do Sr. Matteucci a garantia de que o célebre médium
não seria incomodado e poderia continuar sua estada em Roma, desde que se abstivesse,
durante esse tempo, de qualquer comunicação com o mundo espiritual. Coisa
admirável! O Sr. Home acedeu a esta condição e assinou o compromisso que lhe
exigiam. Como pôde comprometer-se a não usar um poder, cujo exercício independe
de sua vontade? É o que não buscaremos penetrar.
Não sabemos até que ponto a
narrativa é exata, em todos os seus detalhes. Mas uma carta, escrita ultimamente
pelo Sr. Home a uma senhora do nosso conhecimento parece confirmar o fato
principal. Quanto às batidas ouvidas na ocasião, julgamos que se pode, sem
receio, inclui-las entre as facécias a que nos habituaram os jornais pouco
preocupados em aprofundar as coisas do outro mundo.
De fato o Sr. Home está em Roma
neste momento; e, para ele, o motivo é muito honroso para que não o digamos, já
que os jornais houveram por bem aproveitar a ocasião para o ridicularizar.
O Sr. Home não é rico e não teme
dizer que deve buscar no trabalho os recursos para fazer face às despesas sob
sua responsabilidade. Pensou em encontrá-los no talento natural que tem pela
escultura, e para se aperfeiçoar nesta arte é que foi para Roma.
Com a notável faculdade
mediúnica que possui, poderia ser rico, muito rico mesmo, se a tivesse querido
explorar. A mediocridade de sua posição é a melhor resposta ao epíteto de hábil
charlatão, que lhe lançaram ao rosto. Mas ele sabe que essa faculdade lhe foi
dada com um fim providencial, para os interesses de uma causa santa, e julgaria
cometer um sacrilégio se a convertesse em profissão. Ele tem bem alto o
sentimento dos deveres que ela lhe impõe para compreender que os Espíritos se manifestam
pela vontade de Deus para reconduzir os homens à fé na vida futura, e não para
se exibirem num espetáculo de curiosidades, em concorrência com os
escamoteadores, ou para servirem à cupidez dos que pretendessem explorá-la.
Aliás, ele também sabe que os Espíritos não estão às ordens nem aos caprichos
de ninguém e, menos ainda, de quem quer que queira exibir seus atos e
gestos a tanto por sessão. Não há um só médium no mundo que possa garantir a
produção de um fenômeno espírita num dado momento, donde forçoso é concluir que
a pretensão contrária dá prova de absoluta ignorância dos mais elementares princípios
da ciência; sendo assim, toda suposição é permitida, porque se os Espíritos não
responderem ao chamado, ou não fizerem coisas muito admiráveis para
satisfazer os curiosos e sustentar a reputação do médium, é mesmo necessário
encontrar um meio de as dar aos espectadores em troca de seu dinheiro, se não
se quiser devolvê-lo.
Nunca repetiríamos em demasia: a
melhor garantia de sinceridade é o desinteresse absoluto. Um médium é sempre
forte quando pode responder aos que suspeitassem de sua boa-fé:
Quanto pagastes para vir até
aqui?
Ainda uma vez: a mediunidade
séria não pode ser e jamais será uma profissão. Não só porque seria moralmente desacreditada,
mas porque repousa sobre uma faculdade essencialmente móvel, fugidia e
variável, que nenhum dos que a possuem hoje está certo de a possuir amanhã. Só
os charlatães estão sempre seguros de si mesmos. Outra coisa é um talento adquirido
pelo estudo e pelo trabalho que, por isto mesmo, é uma propriedade, da qual é
naturalmente permitido tirar partido. De modo algum a mediunidade está neste
caso. Explorá-la é dispor de uma coisa da qual realmente não se é dono; é
desviá-la de seu objetivo providencial; mais ainda: não é de si próprio
que se dispõe, é dos Espíritos, das almas dos mortos, cujo concurso é posto a prêmio.
Este pensamento repugna instintivamente. Eis por que em todos os centros
sérios, onde se ocupam do Espiritismo santamente, religiosamente, como em Lyon,
Bordeaux e tantos outros lugares, os médiuns exploradores seriam completamente desconsiderados.
Que aquele, pois, que não tem de
que viver procure alhures os recursos e, se necessário, só consagre à
mediunidade o tempo que materialmente a ela possa devotar. Os Espíritos levarão
em conta o seu devotamento e os seus sacrifícios, ao passo que, mais cedo ou
mais tarde, punem os que esperam dela fazer um trampolim, seja pela retirada da
faculdade, pelo afastamento dos Espíritos bons, pelas mistificações
comprometedoras, seja por meios ainda mais desagradáveis, como o prova a
experiência.
O Sr. Home sabe muito bem que
perderia a assistência de seus Espíritos protetores se abusasse de sua
faculdade. Sua primeira punição seria a perda da estima e da consideração de famílias
honradas, onde é recebido como amigo e onde não seria chamado senão da mesma
maneira que as pessoas que vão dar representações em domicílio. Quando de sua
primeira estada em Paris, sabemos que certos círculos lhe fizeram ofertas muito
vantajosas para dar sessões e que ele sempre recusou. Todos os que o conhecem e compreendem os verdadeiros
interesses do Espiritismo aplaudirão a resolução que hoje toma. Por nossa conta
pessoal nós lhe somos reconhecido pelo bom exemplo que dá.
Se insistimos novamente sobre a
questão do desinteresse dos médiuns, é que temos razões de crer que a mediunidade
fictícia e abusiva é um dos meios de que se servem os inimigos do
Espiritismo com vistas a desacreditá-lo e o apresentar como obra do
charlatanismo. É necessário, pois, que todos os que se interessam vivamente
pela causa da doutrina se deem por advertidos, a fim de desmascarar as manobras
fraudulentas, se houver, e mostrar que o Espiritismo verdadeiro nada tem de comum
com as paródias que dele poderiam fazer, e que repudia tudo quanto se afaste do
princípio moralizador, que é sua essência.
O artigo acima referido oferece
vários outros assuntos de observação. O autor julga dever qualificar o Sr. Home
de mágico; nada há nisto de mais ingênuo. Mas, um pouco adiante ele diz: “o
célebre médium”, expressão empregada em relação a indivíduos que adquiriram uma
triste celebridade. Onde, pois, as infrações e os crimes do Sr. Home? É uma
injúria gratuita, não só a ele, mas a todas as pessoas respeitáveis e altamente
colocadas, que o recebem e, assim, parecem patrocinar um homem de má fama.
A última frase do artigo é mais
curiosa, porque encerra uma dessas contradições flagrantes com que, aliás, os
nossos adversários pouco se inquietam. O autor se surpreende que o Sr. Home
tenha consentido no compromisso que lhe impunham e pergunta como pôde ele
prometer não fazer uso de um poder independente de sua vontade. Se ele quisesse
sabê-lo, nós o remeteríamos ao estudo dos fenômenos espíritas, de suas causas e
de seu modo de produção, e ele ficaria sabendo como o Sr. Home pôde assumir um
compromisso que, ademais, não diz respeito às manifestações que ele obtém na
intimidade, ainda que sob os ferrolhos da Inquisição. Mas parece que o autor
não liga tanto, já que acrescenta: “É o que não buscaremos penetrar”. Por essas
palavras, insidiosamente dá a entender que tais fenômenos não passam de
embuste.
Todavia, a medida tomada pelo
governo pontifício prova que este tem medo das manifestações ostensivas. Ora,
não se pode temer um jogo de habilidades. Esse mesmo governo interditaria os
supostos físicos, que imitam muito essas manifestações? Não, certamente, porque
em Roma permitem muitas outras coisas menos evangélicas. Por que, então,
interditá-las ao Sr. Home? Por que querer expulsá-lo do país, se não passa de um
prestidigitador? Dirão que é no interesse da religião; seja. Mas, então, essa
religião é muito frágil, já que pode ser comprometida com tanta facilidade. Em
Roma, como noutro lugar, os escamoteadores executam, com maior ou menor
habilidade, o truque da garrafa encantada, na qual a água se transforma em
todas as espécies de vinho, e o do chapéu mágico, no qual se multiplicam pães e
outros objetos. Entretanto, não receiam que isto desacredite os milagres de
Jesus-Cristo, pois é sabido que não passam de imitações. Se temem o Sr. Home, é
que há de sua parte algo de sério e não truques habilidosos.
Tal a consequência que tirará
todo homem que refletir um pouco. Não entra na cabeça de nenhuma pessoa sensata
que um governo, que uma corte soberana, composta de homens que, com toda
justiça, não passam por tolos, se apavorem com um mito.
Esta reflexão – por certo não
seremos os únicos a fazê-la – e os jornais que se apressaram em divulgar o
incidente, com vistas a ridicularizá-lo, muito naturalmente vão provocá-la, de
sorte que o resultado será, como o de tudo que já foi feito para matar o
Espiritismo, o de popularizar a ideia. Assim um fato, aparentemente
insignificante, terá, inevitavelmente, consequências mais graves do que tinham
pensado. Não duvidamos que tenha sido suscitado para apressar a eclosão do
Espiritismo na Itália, onde já conta numerosos representantes, mesmo no clero.
Também não duvidamos que a cúria
romana se torne, mais cedo ou mais tarde, e sem o querer, um dos principais
instrumentos de propagação da doutrina nesse país, porque está no destino que
seus próprios adversários devem servir para espalhar por toda parte aquilo que
eles mesmos farão para a destruir. Cego, pois, quem nisto não ver o dedo da
Providência. Sem contradita, será um dos fatos mais consideráveis da história
do Espiritismo, um dos que melhor atestam seu poder e sua origem.
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