terça-feira, 4 de julho de 2023

VISÃO DE PERGOLESI[1]

 


Allan Kardec

 

Contaram muitas vezes, e todos conhecem o estranho relato da morte de Mozart, cujo Réquiem tão célebre foi a última e incontestável obra-prima. A dar crédito a uma tradição napolitana antiga e respeitável, muito tempo antes de Mozart, fatos não menos misteriosos e não menos interessantes teriam precedido, se não levado à morte prematura de um grande mestre: Pergolesi.

Ouvi essa tradição da própria boca de um velho camponês de Nápoles, essa terra das artes e das recordações; ele a recebera de seus avós, e em seu culto ao ilustre mestre, do qual falava, tinha o cuidado de nada alterar em seu relato.

Eu o imitarei e vos direi fielmente o que ele me contou.

Disse-me ele:

Conheceis a cidadezinha de Casoria, a poucos quilômetros de Nápoles? Foi lá que em 1704 Pergolesi veio à luz.

Desde a mais tenra idade revelou-se o artista do futuro. Como sua mãe, como fazem todas as nossas, cantarolava junto dele as lendas rimadas de nossa terra, para adormecer il bambino, ou, segundo a ingênua expressão de nossas amas-de-leite napolitanas, a fim de chamar para junto do berço os anjinhos do sono (angelini del sonno), diz-se que o menino, ao invés de fechar os olhos, os arregalava, fixos e brilhantes; suas mãozinhas se agitavam e pareciam aplaudir; aos gritos alegres que escapavam de seu peito ofegante, dir-se-ia que essa alma, apenas desabrochada, já estremecia aos primeiros ecos de uma arte que um dia deveria cativá-la por inteiro.

Aos oito anos, Nápoles o admirava como um prodígio, e durante mais de vinte anos a Europa inteira aplaudiu o seu talento e suas obras. Ele fez a arte musical dar um passo imenso; lançou, por assim dizer, o gérmen de uma era nova, que logo deveria produzir os mestres que se chamam Mozart, Méhul, Beethoven, Haydn e outros; numa palavra, a glória cobria a sua fronte com a mais brilhante auréola.

E, contudo, dir-se-ia que sobre essa fronte errava uma nuvem de melancolia, fazendo-a curvar-se para a terra. De vez em quando o olhar profundo do artista se elevava para o céu, como se aí buscasse alguma coisa, um pensamento, uma inspiração.

Quando o interrogavam, respondia que uma vaga aspiração enchia sua alma, que no fundo de si mesmo ouvia como que os ecos incertos de um canto do céu, que o arrebatava e o elevava, mas não podia captá-lo e que, semelhante a um pássaro cujas asas, por demais fracas, não podem, à sua vontade, elevá-lo no espaço, caía na terra, sem ter podido seguir essa suave inspiração.

Nesse combate, pouco a pouco a alma se esgotava; na mais bela idade da vida, pois então tinha apenas trinta e dois anos, Pergolesi parecia já ter sido tocado pelo dedo da morte. Seu gênio fecundo parecia ter-se tornado estéril, sua saúde definhava dia a dia; em vão seus amigos lhe procuravam a causa e ele próprio era incapaz de a descobrir.

Foi nesse estado penoso e estranho que ele passou o inverno de 1735 a 1736.

Sabeis com que piedade aqui celebramos, ainda em nossos dias, a despeito da debilidade da fé, o tocante aniversário da morte do Cristo; a semana em que a Igreja o relembra a seus filhos é bem realmente, para nós, uma semana santa. Assim, reportando-vos à época de fé em que vivia Pergolesi, podeis pensar com que fervor o povo acorria em massa às igrejas, para meditar as cenas enternecedoras do drama sangrento do Calvário.

Na sexta-feira santa Pergolesi acompanhou a multidão. Aproximando-se do templo, parecia-lhe que uma calma, há muito desconhecida para ele, se fazia em sua alma e, quando transpôs o portal, sentiu-se como que envolto por uma nuvem ao mesmo tempo espessa e luminosa. Logo nada mais viu; profundo silêncio se fez em seu redor; depois, ante os seus olhos admirados, e em meio à nuvem, na qual até então lhe parecia ter sido levado, viu desenharem-se os traços puros e divinos de uma virgem, inteiramente vestida de branco; ele a viu pousar seus dedos etéreos nas teclas de um órgão, e ouviu como um concerto longínquo de vozes melodiosas, que insensivelmente dele se aproximava. O canto que essas vozes repetiam o enchia de encantamento, mas não lhe era desconhecida; parecia-lhe que esse canto era aquele do qual não tinha podido perceber senão vagos ecos; essas vozes eram bem aquelas que, desde longos meses, lançavam perturbação em sua alma e agora lhe traziam uma felicidade sem limite. Sim, esse canto, essas vozes eram bem o sonho que ele tinha perseguido, o pensamento, a inspiração que inutilmente havia procurado por tanto tempo.

Mas, enquanto sua alma, arrebatada no êxtase, bebia a longos sorvos as harmonias simples e celestes desse concerto angélico, sua mão, como que movida por força misteriosa, agitava-se no espaço e parecia traçar, mau grado seu, notas que traduziam os sons que o ouvido escutava.

Pouco a pouco as vozes se afastaram, a visão desapareceu, a nuvem se desvaneceu e Pergolesi viu, ao abrir os olhos, escrito por sua mão, no mármore do templo, esse canto de sublime simplicidade, que o devia imortalizar, o Stabat Mater, que desde esse dia todo o mundo cristão repete e admira.

O artista ergueu-se, saiu do templo, calmo, feliz e não mais inquieto e agitado. Mas nesse dia uma nova aspiração se apoderou dessa alma de artista; ela ouvira o canto dos anjos, o concerto dos céus. As vozes humanas e os concertos terrestres já não lhe podiam bastar. Essa sede ardente, impulso de um grande gênio, acabou por esgotar o sopro de vida que lhe restava, e foi assim que aos trinta e três anos, na exaltação, na febre, ou melhor, no amor sobrenatural de sua arte, Pergolesi encontrou a morte.

 

Tal é a narração de meu napolitano. Como eu disse, não passa de uma tradição. Não defendo a sua autenticidade e a História talvez não a confirme em todos os pontos, mas é muito tocante para que não nos deleitemos com o seu relato.

Ernest Le Nordez

Petit Moniteur de 12 de dezembro de 1868



[1] Revista Espírita – fevereiro/1869 – Allan Kardec

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