terça-feira, 11 de julho de 2023

UM ESPÍRITO QUE SE JULGA PROPRIETÁRIO[1]

 


Allan Kardec

 

Em casa de um dos membros da Sociedade de Paris, que faz reuniões espíritas, desde algum tempo vinham bater à porta, mas, quando iam abrir, não encontravam ninguém. Os toques de campainha eram dados com força e como que por alguém que estivesse resolvido a entrar. Tendo sido tomadas todas as precauções para assegurar-se de que o fato não se devia nem a uma causa acidental, nem à malevolência, concluiu-se que deveria ser uma manifestação. Num dia de sessão o dono da casa pediu ao visitante invisível que se desse a conhecer e dissesse o que desejava.

Eis as duas comunicações que deu:

I

(Paris, 22 de dezembro de 1868)

 

Agradeço-vos, senhor, o amável convite para tomar a palavra, e já que me encorajais, vencerei minha timidez para vos externar francamente o meu desejo.

Inicialmente, devo dizer que nem sempre fui rico. Nasci pobre e, se venci, devo-o apenas a mim. Não vos direi, como tantos outros, que cheguei a Paris de tamancos; é uma velha lengalenga que não pega mais; mas eu tinha o ardor e o espírito do especulador por excelência. Quando menino, se eu emprestava três bolas de bilhar, tinham que me devolver quatro. Negociava com tudo o que tinha e ficava feliz ao ver pouco a pouco o meu tesouro crescer. É verdade que circunstâncias infelizes me despojaram várias vezes; eu era fraco; outros, mais fortes, apoderavam-se de meus ganhos e eu tinha que recomeçar tudo. Mas eu era perseverante.

Pouco a pouco deixei a infância; minhas ideias cresceram. Menino, tinha explorado meus camaradas; moço, explorava os companheiros de oficina. Fazia corridas; era amigo de todo o mundo, mas fazia pagar meu trabalho e minha amizade. “Ele é bem complacente, mas não se lhe deve falar em dar”. He! he! É assim que se chega. Ide, pois, ver esses belos filhos de hoje, que gastam tudo o que possuem no jogo e no café! Arruínam-se e se endividam, de alto a baixo da escala. Eu deixava que os outros corressem como loucos, às cambalhotas; eu andava lentamente, com prudência; por isso cheguei ao porto e adquiri uma fortuna considerável.

Eu era feliz; tinha mulher e filhos; ela, um tanto coquete, os outros, gastadores. Pensava que com a idade tudo isto desaparecesse; mas não. Entretanto, eu os mantive por muito tempo em rédea curta. Mas um dia adoeci. Chamaram o médico que, sem dúvida, fez muito mal à minha bolsa; depois... perdi os sentidos...

Quando recobrei a razão, tudo ia às mil maravilhas! Minha mulher recebia visitas; meus filhos tinham carruagens, cavalos, domésticos, mordomos, que sei eu! Todo um exército voraz que se atirou sobre o meu pobre patrimônio, tão penosamente adquirido, para o esbanjar.

Entretanto, logo percebi que a desordem estava organizada; não gastavam senão as rendas, mas gastavam largamente. Eram bastante ricos; não precisavam mais capitalizar, como o bom velho; era preciso gozar, e não entesourar... E eu ficava boquiaberto, sem saber o que dizer, porque, se erguia a voz, não era ouvido; fingiam não me ver. Sou uma nulidade; os criados ainda não me enxotaram, embora o meu costume não esteja em harmonia com o luxo dos apartamentos; mas não me prestam atenção. Sento-me, levanto-me, esbarro nos visitantes, detenho os criados; parece que nada sentem. Contudo, tenho vigor, espero que o possais testemunhar, vós que me ouvistes tocar. Creio que é de propósito; sem dúvida querem que eu enlouqueça, para se livrarem de mim.

Tal era minha situação, quando vim visitar uma de minhas casas. Velho hábito que ainda conservo, embora não seja mais o dono; mas vi construir tudo. Foram os meus escudos que pagaram tudo; e eu gosto dessas casas, cuja renda enriquece meus filhos ingratos.

Assim, cá eu estava em visita, quando soube que espíritas aqui se reuniam. Isto me interessou. Inquiri-me sobre o Espiritismo e soube que os espíritas pretendiam explicar todas as coisas. Como minha situação me parece pouco clara, não me desgostaria se recebesse, a respeito, o conselho dos Espíritos. Nem sou um incrédulo, nem um curioso; tenho vontade de ver e crer, ser esclarecido e, se me reconduzirdes à posição de governar tudo em minha casa, palavra de proprietário, não subirei o vosso aluguel enquanto viver.

 

II

(Paris, 29 de dezembro de 1868)

 

Dizeis que estou morto? Mas pensais bem no que dizeis? Pretendeis que meus filhos não me veem, nem me escutam; mas vós me vedes e me escutais, já que entrais em conversação comigo? Já que abris a porta quando toco? Já que interrogais e eu respondo? Escutai, vejo o que há: sois menos fortes do que eu pensava, e como os vossos Espíritos nada podem dizer, quereis confundir-me, fazendo-me duvidar de minha razão...

Tomais-me por uma criança? Se eu tivesse morrido, seria um Espírito como eles e os veria; mas não vejo nenhum e ainda não me pusestes em contato com eles.

Há, contudo, uma coisa que me intriga. Dizei-me, pois, por que escreveis tudo o que digo? Por acaso quereis trair-me? Dizem que os espíritas são loucos; pensais, talvez, em dizer aos meus filhos que me ocupo de Espiritismo, dando-lhes, assim, meios de me interditar?

Mas ele escreve, escreve! Mal acabei de pensar e minhas ideias já estão no papel... Tudo isto não está claro! O que é certo é que vejo, falo, respiro, ando, subo escadas e, graças a Deus, percebo claramente que é no quinto andar que habitais... Não é caridoso brincar assim com as penas dos outros. Sofro; não posso mais e pretendem fazer-me crer que não tenho mais corpo? Creio que sinto bem a minha asma! Quanto aos que me disseram que não era senão o Espiritismo, pois bem! São pessoas como vós, minhas conhecidas, que eu tinha perdido de vista e que encontrei desde a minha doença!

Oh! Mas... é singular! Oh! Por exemplo, não existo mais; absolutamente! Mas, parece-me... Oh! Minha memória que se vai... sim... não... mas sim... palavra que estou louco... Falei a pessoas que julgava mortas e enterradas há oito ou dez anos... Por Deus! Eu assisti aos enterros; fiz negócios com os herdeiros! É realmente estranho! E elas falam! Andam... conversam! Sentem o seu reumatismo! Falam da chuva e do bom tempo... tomam do meu tabaco e me apertam a mão!

Mas, então, eu! Não, não, não é possível! Eu não estou morto! Não se morre assim, sem se dar conta... ainda estive no cemitério, justamente no fim de minha doença... era um parente... meu filho estava de luto... minha mulher lá não estava, mas chorava... Eu o acompanhei, pobre querido... Mas quem era, então?  Na verdade não sei... Que perturbação estranha me agita! Seria eu? Mas não; pois se eu acompanhava o corpo, não podia estar no caixão... estar lá, e lá no fundo! E, contudo! Como tudo isto é estranho! Que labirinto confuso! Não me digais nada; quero procurar só; vós me perturbais... Deixai-me; eu voltarei... Decididamente, parece que sou um fantasma! Oh!       Que coisa singular!

 

Observação – Esse Espírito está na mesma situação que o precedente, no sentido de que um e outro ainda se julgam neste mundo; mas há entre eles esta diferença: um se julga de posse de seu corpo carnal, ao passo que o outro tem consciência de seu estado espiritual, mas imagina que sonha. Este último está, sem sombra de dúvida, mais próximo da verdade e, contudo, será o último a reconhecer o seu erro. É verdade que o ex-proprietário estava muito apegado aos bens materiais, mas a sua avareza e os hábitos de economia um pouco sórdida provam que não levava uma vida sensual. Além disso, não é incrédulo por natureza; não repele a espiritualidade. Luís, ao contrário, a teme; o que ele lamenta não é a ausência da fortuna que gastava em vida, mas os prazeres que tal esbanjamento lhe proporcionava. Não podendo admitir que sobrevive ao seu corpo, crê sonhar; compraz-se nessa ideia, na esperança de voltar à vida mundana; nela se agarra por todos os sofismas que sua imaginação pode lhe sugerir. Permanecerá, pois, nesse estado, já que o quer, até que a evidência venha abrir-lhe os olhos. Qual deles sofrerá mais ao despertar? A resposta é fácil: um só se surpreenderá levemente, enquanto o outro ficará apavorado.



[1] Revista Espírita – fevereiro/1869 – Allan Kardec

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