quarta-feira, 26 de julho de 2023

A INSPIRAÇÃO[1]

 


 

Quando a palavra, o pensamento e os sentidos não vibram em nós, soa o solene momento de ouvirmos de Deus a voz.

Longfellow[2]

 

Nem na história, nem na tradição, se encontra a menor insinuação de que as religiões foram criadas pelo raciocínio; ao contrário, toda a história e tradição afirmam que elas vieram ao mundo pela revelação. O estado da religião nas primitivas eras de que temos conhecimento, faz supor e insinua que foi essa a sua origem no seio da humanidade.

Butler[3]

 

A inspiração, como os prodígios e milagres dos Evangelhos e os dons espirituais exaltados por S. Paulo, têm sido usualmente estudados com pouco critério. Seus apologistas lhes têm feito mais mal que os adversários. O espírito racionalista da nossa época mostra-se disposto a rejeitá-lo, apresentando como principal motivo a extravagância e o caráter exclusivo das pretensões interessadas dos teólogos a tal respeito.

A ortodoxia protestante proclama que isso foi um dom excepcional e miraculoso, concedido ao homem, apenas durante o primeiro século e unicamente ao Autor da religião e a mais oito, isto é, aos quatro Evangelistas e a S. Paulo, S. Tiago, S. Pedro e S. Judas; ao passo que a ortodoxia católico-romana afirma que esse dom miraculoso de Deus tem sido concedido durante esses dezoito séculos, mas, nos dezessete últimos, só a uma jurisdição eclesiástica: A Santa Igreja Católica.

Ambas as ortodoxias, apesar de diferirem em muitos pontos, são concordes em afirmar que a inspiração é dom direto de Deus, a fonte da pura e infalível verdade.

Embaraçada por essas pretensões tão antifilosóficas, não devemos nos admirar de ver a inspiração rejeitada como mentira, por muitos dos espíritos mais eminentes e pensadores da nossa época. Quando a ciência reconhecer plenamente a existência como pane do plano cósmico, dos fenômenos ultramundanos, como admite a dos mundanos, o crescente ceticismo se dissipará.

Antes disso, porém, cumpre-nos abandonar a definição ortodoxa da inspiração, adotando uma outra que mais se conforme com o espírito esclarecido do tempo; alguma coisa, talvez, neste sentido.

Ela é um fenômeno mental ou psíquico, restritamente obedecendo à lei; ocasional, mas não excepcional ou exclusiva, apresentando, às vezes, um caráter espiritual e ultramundano é certo, mas nunca miraculoso; fornecendo frequentemente ao homem valiosos conhecimentos, mas nunca ensinos infalíveis; sendo um dos dons mais preciosos por Deus concedido às suas criaturas; mas, em caso algum, podendo ser considerado como mensagem direta de Deus, mensagem que deva ser aceita sem discussão, pela razão e pela consciência, como a verdade divina expurgada dos erros humanos.

A isso podemos acrescentar, conformando-nos com as vistas do Bispo Butler, que a inspiração não é a fonte de uma só religião, mas, de um modo mais ou menos puro, de todas as religiões antigas ou modernas, que têm dominado as grandes frações da humanidade.

A proporção do bem e da verdade que se nota em cada sistema de fé religiosa é relativa ao grau de pureza da fonte donde cada uma emanou e, mesmo, aparece, em certos limites, como a ciência moderna reconhece nos credos mais toscos. Por isso diz Lowell:

Das crenças todas nas leis Que hão regido a humanidade,

Sempre germes achareis

De justiça e de bondade.

Entre os que adotam esta clara definição da inspiração, considerando-a como uma potência universal, há duas opiniões diferentes quanto à sua origem: certos nacionalistas (incluindo muitos dos cultores do magnetismo vital, descobrem-na em uma condição especial da alma; ao passo que outros lhe buscam a fonte em alguma inteligência oculta, estranha ao indivíduo e obrando sobre ele).

Estou convencido de que ambas as teorias contêm verdades. A inspiração é um fenômeno às vezes puramente psíquico, da classe da clarividência e pertencendo ao ramo da Ciência Mental[4], e, outras vezes, produzido por influências do outro mundo e pertencendo ao domínio do Espiritismo.

Entre os antigos filósofos, alguns houve que, mais ou menos distintamente notaram a sua existência, uns de uma certa forma, outros de outra. O espaço, porém, só me permite apresentar alguns espécimes. O mais importante exemplo nos vem de um homem justamente considerado como pai da Filosofia Moral.

Relativamente à inspiração, Sócrates, não menos que Platão, adotava a teoria espírita.

Entre os célebres Diálogos de Platão, há um em que os interlocutores são Sócrates e Ion, declamador e poeta ateniense, que tinha por hábito introduzir em seus discursos belas e abundantes citações de Homero. Aludindo ao grande sucesso que tais citações tinham obtido, e dado o fato de ter ele baqueado em seus esforços quando fazia citações de outros poetas, Ion pediu a Sócrates uma explicação. E Sócrates lhe respondeu:

Digo-vos, oh! Ion, qual me parece ser a causa dessa desigualdade de poderes. É que vós não empregais artifício algum para fazer tais citações, mas o efeito obtido provém de uma influência divina que vos move, semelhante àquela que reside na pedra que Eurípides chama magnética.

Depois, para mais esclarecer, acrescenta:

Os autores desses grandes poemas que admiramos, não alcançaram a preeminência pela arte com que eram arranjadas as belas melodias dos seus versos, mas porque os recitavam num estado de inspiração, sob o domínio de um espírito que não era o deles.

Dizei-me, pergunta a Ion, sem dissimulação: Quando declamais bem e arrebatais o vosso auditório admirado, celebrando a volta de Ulisses ao seu palácio, fazendo conhecer aos pretendentes a mão de sua mulher e lançando flechas a seus pés; ou explicando o ataque de Aquiles contra Heitor, expondo as passagens relativas a Andrômaca, a Hécuba e a Príamo, vos sentis na posse de vós mesmo? Não pareceis estar arrebatado e cheio de entusiasmo pela lembrança que esses fatos despertam, fazendo-vos imaginar que estais em Itaca, em Tróia, ou onde quer que vos leve o poema que recitais?

Ion lhe respondeu: Falaste sabiamente, Sócrates. Então o sábio lhe dá a seguinte explicação:

Vós, oh! Ion, sois influenciado pelo Espírito de Homero. Se recitais as obras de algum outro poeta, o fareis sem fogo e vossas palavras se perdem; mas, quando ouvis alguma das composições daquele, vossos pensamentos são excitados e vos tornais eloquente... Isso explica vossa pergunta sobre o fato de Homero e nenhum outro poeta vos inspirar com eloquência, e quer dizer que se não tendes primazia pela ciência tende-ia pela divina inspiração.

A expressão atribuída a Sócrates por Platão: Sois influenciado por Homero, é mui notável e implica a doutrina cardeal do Espiritismo.

Para adotar essa explicação, o filósofo tem a melhor de todas as razões: a sua própria experiência. Falemos do: GÊNIO OU DEMÔNIO DE SÓCRATES.

Sobre as particularidades relativas ao conhecido Espírito Protetor ou Demônio (Diamonion) de Sócrates, recorremos à mesma eminente autoridade, por cujo intermédio a maioria das opiniões emitidas verbalmente e não por escrito, do filósofo mártir, vieram ter a nós.

Apesar de se encontrar alusão noutros pontos dos escritos de Platão, a notícia mais direta e segura dessa voz espiritual e de seus conselhos se encontra na Apologia escrita logo após a morte de Sócrates. Nessa obra, a única recordação rigorosamente autêntica que possuímos da defesa daquele filósofo diante de seus juízes, ‒ Platão, que se achava presente a essa prova, deve merecer toda confiança quando reproduz fielmente as palavras e argumentos do seu amado mestre naquela memorável ocasião.

Entre as acusações feitas a Sócrates, achava-se compreendida a sua pretensão de comunicar com um Espírito familiar. Referindo-se a isso e aludindo ao fato de haver ele ensinado que as orações deviam ser feitas no íntimo e não nas assembleias populares, Sócrates diz aos seus juízes:

 Frequentemente, e em muitos lugares, tendes ouvido dizer que sou guiado por uma certa influência divina e espiritual; e é a isso que Mélitus, por zombaria, se refere em sua denúncia. Essa influência começou na minha infância, qual espécie de voz que, quando a ouço, me distrai do que estou fazendo, mas nunca me irrita. Foi ela que se opôs a que me envolvesse na política.

Outra alusão ao mesmo objeto, ainda mais solene, feita na imediata previsão de morrer, visto que a maioria dos juízes já o tinham condenado, é a seguinte:

Comigo, oh! Juízes, dá-se uma coisa estranha. A voz profética do meu divino protetor costuma, em todas as ocasiões, mesmo tratando-se de coisas banais, opor-se a que eu cometa uma injustiça.

Agora, porém, que me sucedeu o que estais vendo, uma coisa que vós supondes o maior dos males, nada me avisou de que Deus se opunha a que eu saísse de casa esta manhã, nem que me dirigisse a vós; contudo, fui frequentemente refreado no meio do meu discurso.

Qual supondes ser a causa disso?... O que me sucedeu não é efeito do acaso e é claro que, morrer agora e ficar livre de meus cuidados, é para mim muito melhor. Neste caso, o aviso de modo algum podia desviar-me do meu fim[5].

A sinceridade do filósofo quando tal disse, não pode racionalmente ser posta em dúvida. É preciso ser um cético teimoso e insensato para acreditar que um homem como Sócrates, já prestes a morrer por não querer resgatar a vida pela desistência de um ensino que sentia bom e justo, se afastasse nesse momento da rigorosa verdade. Poderemos rejeitar esse testemunho?

O mais sincero dos modernos historiadores da filosofia admite o que disse Sócrates como prova concludente[6]. Lewis, que ninguém por certo acusará de superstição ou credulidade, em sua História da Filosofia aludindo à crença de Sócrates em ser, de tempos a tempos aconselhado por uma voz divina, diz:

Isto é uma explícita afirmação e, com certeza, num país cristão onde abundam exemplos de pessoas que acreditam nas sugestões espirituais, não haverá dificuldade de crer em tal afirmação[7].

Não podemos saber até que ponto Sócrates devia ao seu Espírito Protetor as ideias sobre a imortalidade e a vida futura, nem mesmo é provável que ele o pudesse determinar. Sócrates parece ter considerado essa influência antes como conselheira que mentora.

Contudo, parece-nos estranho que, há vinte e três séculos, ele tivesse, sem auxílio, chegado ao conhecimento de verdades que com tanta dificuldade hoje vamos reconhecendo. Adicionemos o seguinte exemplo:

Quando é que a alma chega a obter a verdade? Quando busca investigar alguma coisa ao longe, estando presa ao corpo, é claro que este a desencaminha... A alma raciocina com mais eficácia sem o embaraço dos sentidos corporais, quando não ouve, não vê nem sente qualquer dor ou prazer. Sem esse embaraço, ela concentra-se o mais possível e aspira o conhecimento, do real, buscando separar-se do corpo e abstendo-se, tanto quanto possível, de toda união e participação com ele[8].

Aí vemos o germe da ideia da inspiração. Cícero, mais tarde, estendeu-se no assunto. A seguinte notável passagem, literalmente traduzida, é das suas Questões Tusculanas:

Que fazemos nós quando subtraímos nossa alma à ação dos gozos corporais, das relações comuns que os produzem, dos deveres públicos ou de qualquer outra preocupação - que mais fazemos, digo eu, senão concentrar nossa alma em si mesma e afastá-la o mais possível da ação do corpo? Mas, separar a alma do corpo será coisa diversa da morte? Por isso, acreditai-me, quando tomamos a peito subtrair-nos à ação de nosso corpo, vamo-nos acostumando a morrer. Enquanto estamos na terra, nada mais fazemos que nos preparar para a vida celestial; e quando, afinal, nos desprendermos dos laços terrenos, o libertamento da alma será mais fácil[9].

Esse acostumar-se a morrer tem alguma coisa de fantástico; mas essa expressão é, de algum modo, justificada pelos fenômenos do Magnetismo Animal. Quando o sonambulismo artificial se afunda até o ponto que os franceses chamam o êxtase, que não é mais que o transe profundo, os laços que prendem a alma ao corpo são gradualmente afrouxados e no paciente se manifesta, às vezes, um forte desejo de escapar-se da terra para um mundo mais belo. Se, pela inexperiência ou descuido do operador, o sono sonambúlico prolongar-se muito, a morte provavelmente virá. Eu soube, em Paris, que muitos casos destes se têm dado, mas os nomes dos agentes e percipientes, como é natural, são conservados em segredo.

O exemplo de um sonâmbulo que esteve prestes a escapar-se, foi relatado por um magnetizador francês, autor de uma obra curiosa sobre Os segredos da vida futura. Tinha ele à sua disposição dois sonâmbulos lúcidos: um jovem chamado Bruno, e uma mulher, Adélia, de humilde condição, mas não médium de profissão. Não recebia paga pelo exercício da faculdade que manifestara desde a infância.

Uma vez, ele magnetizou simultaneamente os dois, desejando comparar impressões e satisfazer dúvidas acerca do perigo inerente ao estado do êxtase prolongado. Colocou Bruno em relação magnética com Adélia, ordenando-lhe que observasse o que era feito dela. Entregue a esse trabalho por algum tempo, Bruno de repente exclamou: Perdi-a de vista; despertai-a; é tempo. Assustado, o magnetizador fixou a atenção sobre Adélia, a quem tinha abandonado a si mesma por espaço de um quarto de hora.

Eis o que ele próprio diz:

Neste pequeno lapso de tempo, seu corpo tinha adquirido quase a frieza do gelo; a pulsação e a respiração eram insensíveis; a face ficou lívida, os lábios azulados, o coração não dava sinal de vida. Um espelho que aproximei de seus lábios conservou-se limpo. Magnetizei-a com maior força, esperando reanimá-la, mas nada consegui durante cinco minutos.

Bruno e várias pessoas que assistiam à sessão, concorriam, pelo terror que os dominava, para o meu desnorteamento. Por um momento julguei tudo acabado e que a alma da sonâmbula havia realmente abandonado o corpo. Pedi que todos os presentes passassem à sala imediata, a fim de ver se assim recuperava a minha energia, mas a esperança própria me fugia e eu me sentia impotente.

Concentrando-me, então, pedi a Deus não consentisse que aquela alma, vítima das minhas dúvidas, se passasse para o outro mundo.

Depois de curto período de angústias, ouvi Adélia com voz muito fraca, dizer:

Por que me chamaste? Tudo estava acabado, quando Deus, tocado pela vossa prece, mandou-me voltar[10].

O autor acrescenta:

Aconselho aos que sejam tentados a aventurar-se em tais experiências, que delas desistam, a fim de não testemunharem um tão triste espetáculo, cuja consequência pode não ser para eles tão feliz como foi para mim.

Em ocasião anterior, Adélia achando-se no estado de êxtase, acreditou estar vendo e conversando com sua mãe e dois irmãos.

Então, entabulou-se a seguinte conversação entre ela e seu magnetizador:   

- Ah! Quanto me alegra estar com eles! Deixai-me ir; depressa estarei no céu.

- Sois corajosa. Que faremos do vosso corpo?

- Queimai-o ou fazei dele o que quiserdes.

- E que diremos aos oficiais de justiça?

- Dizei-lhes que me fui embora.

Que durante o sono magnético se produza uma modificação das relações normais existentes entre alma e corpo, é um fato atestado pela insensibilidade do percipiente aos sons exteriores e às dores, mesmo as mais agudas, que sobrevenham. Não se pode ler uma boa obra sobre Magnetismo sem se adquirir fortes razões para crer que no transe magnético profundo há um certo afastamento da alma das suas relações terrenas, aproximando-se do estado existencial a que ela chegará quando aquilo a que S. Paulo chama corpo espiritual estiver totalmente desligado do terrenal.

Outro fenômeno também está agora provado, e é que durante esse afastamento parcial da alma, as suas faculdades naturais menos embaraçadas pelos laços terrestres, mostram-se com percepções mais claras e conhecimentos mais desenvolvidos. Isto sucede, quando, como Sócrates o disse, a alma se concentra em si mesma, ou, segundo Cícero, quando nos chamamos a nós mesmos; seja que se produza artificialmente, como nos passes magnéticos; seja que se dê nas condições normais do corpo, por natural idiossincrasia.

O mais modesto e cauteloso dos escritores sobre o Magnetismo Animal, o Doutor Bertrand, definiu perfeitamente esse estado, quando artificialmente produzido:

O sonâmbulo adquire novas percepções fornecidas pelos órgãos internos, e a sucessão dessas percepções constitui uma nova vida, diversa da que gozamos habitualmente; nessa nova vida apresentam-se fases de conhecimento diferentes daquelas que nos dão as sensações ordinárias[11].

Eu mesmo, em muitas ocasiões, verifiquei esse fenômeno, que podemos chamar de ciência íntima, produzido pela exaltação da inteligência nesse estado anormal. Outros, porém, podem falar com mais segurança do que eu, devido a terem maior experiência.

Um médico com quem entretenho íntimas relações, dos mais conhecidos e considerados de New York, e sua mulher, tendo, antes do advento do Espiritismo tomado profundo interesse pelos fenômenos magnéticos, em experiências feitas durante cerca de dois anos com uma costureira americana, mediocremente instruída e com um pouco mais que a capacidade mental da gente de sua classe, me disse que Marian desperta e Marian mergulhada no sono magnético eram duas pessoas inteiramente distintas; tanto quanto se pode imaginar por suas percepções, inteligência e discernimento. Um dia, conversando sobre magnetismo e seus efeitos, ele me disse que essa jovem tinha feito comentário sobre assuntos médicos e filosóficos, nos quais manifestara grande profundeza de vistas. Em muitas outras matérias também se mostrou bastante esclarecida.

Entretanto, relativamente à inspiração, refletindo sobre os fenômenos supracitados, vêm-me à mente que o mundo os tem reconhecido sob essa forma particular porém, que a analogia entre eles e as variadas fases de exaltação intelectual e psíquica, o êxtase religioso, o hipnotismo involuntário e o transe espontâneo é tão estreita, que, racionalmente não se pode negar a conexão existente.

Muitos dos dons espirituais enumerados por Paulo se têm manifestado epidemicamente em pessoas de temperamento sensitivo, durante o sono magnético, como se deu com a intitulada possessão das freiras ursulinas de Loudun[12] (1632 a 1639), e com os pseudomilagres dos convulsionários (Trembleurs) das Cevenas[13] (1686 a 1707). A fúria mágica das pitonisas tinha, evidentemente, um cunho magnético. Numa no bosque de Arícia, Maomé na caverna de Hira, poderiam ter estado inconscientemente sob influência espiritual ou sonambúlica. A visão de Pedro, em que se lhe mostrou o céu aberto, descendo dele um vaso; o transe de Paulo, que ele não pôde dizer, se estaria no corpo ou fora dele, apresentam com certeza, menor ou maior, semelhança com muitas centenas de casos de êxtases, que têm aparecido em Paris, em Londres e em outros pontos, durante o último século. Todas as manifestações desta ordem pertencem a uma grande classe de fenômenos.

A forma mais simples e mais usual da inspiração é a comumente chamada a do gênio, cujos resultados aparecem em eminentes trabalhos literários, em primores de arte, em algumas das nossas mais maravilhosas descobertas científicas e invenções mecânicas; e mais evidentemente ainda, na elevada ordem da composição musical. Tudo isso é, algumas vezes, adstrito a uma organização natural, devidamente cultivada[14]; mas, ao lado da influência reconhecidamente poderosa de um cérebro forte e bem conformado, o melhor dos patrimônios, o gênio, pode dever seus triunfos aos Espíritos invisíveis, semelhantes à atração, salvo nos seus efeitos.

Os grandes poetas dos primeiros tempos tinham algum sentimento desse auxilio do alto, costumavam invocar a assistência dos poderes invisíveis; podemos afirmá-lo com razão, como disse Sócrates.

Quando um poema escrito por um mestre-escola grego, em passado que já vai bem longe, força ainda os nossos mais hábeis literatos a traduzirem-no, despertando ainda hoje a mesma admiração com que era ouvido há mais de três mil anos; quando alguns dramas, escritos por um homem comparativamente ignorante[15] têm, desde há três séculos, fornecido à língua saxônia uma quarta parte das suas palavras domésticas[16]. Poderemos banir a ideia do provável auxílio de uma esfera mais elevada de seres? O caráter maravilhoso desses resultados, desencaminhando o mundo, tem provocado a dúvida acerca da existência desses autores, como incapazes de apresentar tais obras. O professor Wolf, de Berlim, em uma obra apreciada, nega a Homero a autoria da Ilíada e da Odisséia, duvidando mesmo da sua existência e aventurando a ideia de serem esses imortais poemas a coleção das produções de diversos rimadores e rapsodistas. O mesmo sucede relativamente a Shakespeare. Uma ilustrada e laboriosa escritora consumiu sua vida, e podemos dizer que a inutilizou, coligindo e publicando o que acreditava serem provas de que o discípulo da escola livre de Strasford não era o autor dos dramas que ainda hoje encantam o mundo[17].

O mesmo ainda se nota a respeito de um dos mais célebres pintores: seus contemporâneos olhavam-no e seus biógrafos falavam dele, apesar de ter morrido apenas com trinta e sete anos de idade, com uma espécie de reverência, como de uma pessoa divinamente inspirada. Vasári assim começa a biografia da sua vida:

A largueza e a liberdade com que o céu, às vezes, se compraz acumular com as infinitas riquezas de seus tesouros a um dos seus favoritos, são exemplificados na pessoa de Rafael Sanzio.

Noutro ponto, diz que os indivíduos "como Rafael dificilmente podem ser chamados homem; devendo antes, se me permitem falar assim, dar-se-lhes o apelido de deuses mortais". Ainda em outro ponto, fala desse pintor como daqueles "que, por um dom especial da natureza, ou por um favor particular a eles concedido pelo Altíssimo, fazem milagres na arte[18]".

Nenhuma memória, que eu saiba, se possui da vida doméstica de Rafael; nenhuma coleção há de cartas suas. Isso nos pode revelar a sua própria consciência da inspiração que lhe assinala o temperamento artístico.

Temos uma evidência direta dessa espécie, em dois dos mais notáveis músicos do mundo.

Beethoven, falando da fonte donde lhe vinha o espírito de suas maravilhosas obras-primas, diz a Bettina:

Sinto que a corrente da melodia saindo do foco da inspiração, se derrama por todos os lados.

Sigo-a, alcanço-a apaixonadamente; vejo-a escapar-se, esvair-se no meio da confusão de excitamentos variados; apanho-a de novo com renovada paixão; não posso separar-me dela. Depois, com um vivo arrebatamento, multiplico-a em todas as formas de modulações, e, no último momento, seguro o seu pensamento capital, a fim de compor uma sinfonia[19].

Mais frisante é o seguinte trecho de uma carta de Mozart a um seu amigo:

Dizeis que desejaríeis conhecer o meu modo de compor e o método que sigo escrevendo obras de alguma extensão. Sobre isso, não vos posso dizer mais que o seguinte, porque eu mesmo nada mais compreendo, nem vos posso expor: Quando me torno completamente eu mesmo, quando estou inteiramente só e bem disposto, viajando em carruagem, passeando depois de uma boa refeição, ou de noite, quando não consigo conciliar o sono, é que sinto as ideias me assaltarem com mais força e abundância. Donde e como elas me vêm, não sei dizê-lo. Conservo na memória as ideias que me agradam e, como já tenho dito, estou acostumado ao seu sussurro. Se não me distraio, dá-se o fato de poder repetir um ou outro pedaço que desejo conservar, de modo a fazer com eles uma melodia, isto é, um todo conforme as regras do contraponto, às peculiaridades dos diversos instrumentos, e assim por diante. Tudo isso me excita a alma e se não me distrair, meu tema se alarga e vai metodizando-se, definindo-se e o todo, por mais vasto que seja, fica quase completo e acabado em minha alma, de modo a poder observá-lo, como se faz de relance com uma fina pintura ou uma bela estátua. Na minha imaginação não ouço as partes sucessivamente, porém, todas formam um conjunto. Não posso exprimir o deleite que isso me causa. Todas essas invenções e produções representam para mim o efeito de um sonho grato e animado. Mas o melhor é depois, a audição do todo completo. Não posso esquecer facilmente o que assim se produziu. Este é, talvez, o melhor dom que me concedeu o Divino Criador.

Essas ideias e sugestões vêm quase sempre descarnadas e imperfeitas: necessariamente, porque o mundo civilizado recentemente começou a estudar a inspiração como uma potência universal, em sua conexão com a faculdade do transe ou com a hipótese espiritualista, e, porque, neste sentido, as experiências desse ramo de investigações apenas começam a acumular-se, ainda não é comum a crença de que paira na esfera ultramundana um dos focos das mais subidas obras humanas, literárias, artísticas ou espirituais.

Ficamos sempre confusos com as analogias do caráter humano, com os seus extremos de bondade e maldade, e podemos dizer: "Pobre ou rico, vassalo ou soberano, sempre é escuso e estupendo o ser humano”.

Nós, porém, ainda não temos firmada uma explicação. Ainda não conhecemos praticamente como a escravidão da alma ao corpo tende a entorpecer suas percepções e a sufocar suas melhores aspirações; nem sabemos por que aquela aspira mais livremente e discerne com maior clareza, quando o rigor dessa servidão diminui.

Praticamente, não podemos ainda dizer como pode o homem aprender a crescer em sabedoria e bondade por sua comunicação ocasional com um estado mais elevado do ser; nem quão grande é o prejuízo dos que fogem dessa comunhão. Praticamente, não cremos que o Cristo nos tivesse falado de um espírito de verdade que viria, depois dele, ensinar-nos toda a verdade.

Nossas investigações nessa matéria têm sido feitas de longe, entre névoas cerradas e não em terreno favorável, esclarecido pela luz do alto.

Julgo que a razão disso é que a luz maravilhosa que há dezoito séculos despontou para o mundo, ofuscou e cegou a humanidade, mesmo quando ela se acha mais inteligente e aperfeiçoada. Era um fenômeno espiritual, sem igual em toda a história e, para os nossos antepassados, sem solução aparente fora do miraculoso; sem exemplo e, talvez, sem relação com as obras maravilhosas praticadas pelo Cristo, visto que os judeus em sua história e, mesmo os gregos e os romanos em sua mitologia, encontravam precedentes a muitas delas, mas em relação à luz do Cristianismo que, no seu aspecto moral e espiritual e em seus efeitos, é sem igual na velha experiência do homem. Não aparecendo assim, no começo, a não ser para um pequeno número de adeptos, mas indo gradualmente se apossando da mente e da alma do mundo, essa luz brilhou como um sol surgindo pela primeira vez para a terra, cujos habitantes, até então, tinham vivido e trabalhado à luz de um astro.

Deverá esse símile ser rejeitado por parecer divergir de tudo o que observamos na marcha da natureza? Permiti vos diga, com segurança, que essa divergência não existe: a ação da natureza é multiforme.

Entretanto, as obras de Deus ao redor de nós, dão-nos a evidência de que o princípio do progresso gradual domina a economia do universo, de que as leis naturais são invariáveis e persistentes, e de que mesmo dentro dessa ordem e governadas por essas leis, ocorrem em certas épocas, vastos adiantamentos no progresso humano, os quais, como as revoluções políticas que sobrevêm de tempos a tempos, modificando a ordem de coisas estabelecidas, produzem, às vezes, em alguns anos, melhoramentos que os tempos não tinham conseguido efetuar.

A história nada contém de mais interessante que a lembrança desses progressos gigantescos, cada um aparentemente sem precedente, cada um vindo interromper a monótona paz do mundo.

Quantos incidentes na história cósmica estão à espera de um Colombo, dando ao mundo antigo uma metade do nosso globo para que ele a estude e nela possa viver? Os anais da literatura não nos apresentam uma vitória igual, em seus resultados práticos, ao triunfo de Fausto, caso se deva atribuir ao ourives de Mentz a arte da impressão, que habilitou o homem a estreitar suas relações com todos os de sua raça. Até nos inventos, o império das fadigas teve sua época titânica ocorrida há pouco mais de um século; época essa em que o vapor começou a substituir a força humana; em que a roca e o torno, humildes auxiliares do operário humano durante três mil anos, foram substituídos por um sistema rápido de manufatura, que tornou quinhentas vezes mais produtivo o trabalho da humanidade.

Na vida do indivíduo, por mais restrito que o progresso seja, encontramos fenômeno ainda mais notável, denunciando um adiantamento sem precedentes. Criança, jovem, adulto, patriarca, os limites de cada um desses estados sucessivos, são imperceptíveis; depois, porém, chega a grande época, o ponto do progresso em que sem sabermos como, nossas faculdades perceptíveis, intelectuais e espirituais, repentinamente se acham aumentadas; em que os meios de comunicação com os nossos semelhantes se libertam dos tropeços do tempo e do espaço; em que novos Colombos nos guiam a um novo mundo.

O mesmo acontece com a sucessão da vida animal na terra, desde os tempos pré-históricos. A geologia nos informou que houve um período de incalculável duração no qual este mundo ocupado pelas raças inferiores, não foi habitado pelo homem. Um eminente naturalista moderno[20], explorando esse período e investigando o princípio do progresso vital descobriu uma grande lei geral governando o gradativo adiantamento das espécies, por meio da seleção natural e da preservação de cada espécie, animal ou vegetal, na luta pela existência. Ele, porém, não aduziu fatos que atestassem a transformação de uma espécie em outra, nem nos descobriu nenhum elo prendendo o bruto ao homem.

Contudo, permanece intacta a hipótese, certamente razoável, de que, de conformidade com a lei que regulou a vida pré-adâmita, está subentendida uma condição segundo a qual uma criatura com faculdades e sentimentos que a habilitam a conceber e desejar uma vida futura, podia, em certo ponto do progresso geral, aparecer repentinamente; uma criatura destinada a subjugar a terra e alcançar o céu. A vasta cadeia, se nos podemos exprimir assim, do cósmico desenvolvimento, apresenta em certo ponto uma falta, anterior e posteriormente à qual, a razão progressiva das séries não difere, quando, em virtude de passo superiormente grande, toma lugar no mundo uma raça, a única capaz de transmitir a experiência de uma outra geração, e que, depois de certo tempo, aprende a perpetuar essa experiência por duradouros sinais artificiais. Daí, como consequência desse passo, apareceu o progresso ético, intelectual e espiritual.

Agora, voltando dessa digressão ao assunto que nos ocupa, encontramos firme a mesma analogia. A história da Ética e da Religião, como as da Cosmogonia, da Literatura e da Ciência produtiva, teve à sua época, da qual data um motivo de progresso até então desconhecido. Nos primeiros progressos do Espiritismo, como nos sucessivos progressos das raças e na peregrinação da vida humana, temos a notar que se deu um passo agigantado, indo da mais baixa à mais alta esfera de seres.

Sem precedentes, sem nenhum outro que se lhe assemelhe, o progresso que resultou deste, não pode ser comparado à marcha de qualquer outra revolução política ou religiosa.

O estabelecimento neste mundo de um reino que não é deste mundo, chamado, às vezes, o reino do céu, não se nos faz conhecer pela observação[21], nem se denuncia pela pompa mundana que lhe fazem, nem mesmo através de alguma abertura nas nuvens. O reino do céu vai-se fazendo lenta, pacífica e calmamente no coração do homem, à medida que a realeza do Cristo se exerce sobre as almas humanas.

Cumpre-nos estudar essas pretensões que aos céticos parecem exageradas, não segundo as asserções dos teólogos, nem com as incertezas e obscuridades da história remota, mas em fatos conhecidos, bem delineados, familiares a todo homem instruído.

No que chamamos usualmente mundo civilizado, existem milhões de homens que, se lhes perguntarem qual a sua religião, dirão que não são católicos; existem outros milhões para afirmarem que não são protestantes; porém, se excetuarmos os cinco ou seis milhões de judeus, acharemos que cerca de um centésimo somente da humanidade dirá que não é cristã.

Se os ensinos espirituais ouvidos primeiro na Galileia há dezoito séculos (limpos de todos os credos estranhos), não são a religião da civilização, nenhum outro o poderá ser. Aquilo que justamente chamamos a maioria esclarecida do mundo, adere a esses ensinos, apesar da amortecedora e retroativa influência dos credos estranhos que lhes ajuntaram.

É admirável que a cristandade, antes de começar a reconhecer o reinado universal da lei, admitindo a intervenção miraculosa, tivesse buscado explicar um tal fenômeno; é admirável, ainda, à vista da presunção para a qual se inclina a nossa raça míope, que a ortodoxia não conhecendo solução natural de um tal enigma, tenha-se refugiado em uma concepção na qual se manifestam pretensões que o homem tem escrúpulos de expor claramente; porque elas não só envolvem a direta intervenção e suspensão de suas leis pelo Criador e Legislador Onipotente de miríades de sistemas solares e miríades de miríades de mundos, mas também pressupõem virtualmente a sua presença, com a forma humana, durante uma geração de homens neste nosso pequeno mundo, quando há tantos que para nós são mundos, mas para Ele são pequenos pontos na imensidade.

Entretanto, se essas pretensões transcendentais eram próprias do seu tempo e da sua geração, nada menos que elas, fornece hoje um motivo abundante e uma ocupação ao ceticismo. É esse um ponto inexpugnável; mas, a ortodoxia deixa-o de lado, internando-se pelas ilimitadas regiões do Dogmatismo. Ela busca os milagres nas obscuras perspectivas dos dezoito séculos passados, quando o milagre dos milagres, se o maravilhoso se chamar miraculoso, nos está patente e pode ser apreciado pelos nossos sentidos.

Presume a teoria do Ceticismo o seguinte: O filho de um operário judeu, residente em uma vila obscura da Galileia criou-se na casa de seu pai com as mais limitadas oportunidades de cultivar o espírito, sem meios de estudar as literaturas da Grécia e de Roma, sem experiência do mundo para suprir a sua falta de instrução e ainda sem auxílio espiritual, torna-se, na idade de trinta anos, um Pregador público; continua a ensinar durante três anos, três somente; e depois, por causa da liberdade de suas opiniões, sofre a pena capital. Suas palavras e atos desses três anos, que ele não reduziu à escrita, foram registrados no período de meio século seguinte à sua morte, por seus companheiros humildes e relativamente ignorantes.

Apesar disso, mais de cinquenta gerações de homens encontraram nesses registros, somente neles, uma religião que os homens cultos podem abraçar e as nações civilizadas venerar. Certamente, não é assim como os céticos admitem; pois seria isso um milagre de todos os milagres, uma impossibilidade moral e intelectual.

A impossibilidade é inerente ao postulado do Ceticismo – sem auxilio espiritual. Se esse auxílio é essencial a todas as obras altas e nobres do homem, será concebível que ele faltasse ao mais alto e mais nobre de todos?

As dificuldades que acompanham essa ideia capital, na hipótese dos céticos, não findam aí. Se os discípulos não caluniaram o Mestre, suas narrativas encerram uma acusação direta de falsidade contra ele; pois, apesar de ter ele habitualmente dado a si mesmo o título de Filho do Homem, consente que o chamem e aclamem Messias, Cristo, tão falado pelos antigos profetas e tão esperado pelos judeus, como um Libertador. É necessário que os que não aceitam a minha interpretação consultem os léxicos hebreu e grego.

Jesus proclama-se o Ungido de seu Pai e nosso Pai, um Mensageiro divino, Profeta e Rei Espiritual. Devemos conceder-lhe esses títulos? A história nada apresenta de seguro que nos autorize a fazê-lo. Suas credenciais, porém, estão na sua própria Mensagem, na obra que produziu e na narração da vida do Mensageiro.

Todas as grandes figuras da Antiguidade empalidecem, mais ou menos, diante da luz da civilização moderna, com exceção, somente, da do Cristo. O mundo pensante tem, de certo modo, sobrevivido a todas as outras fases da crença religiosa, excetuando-se a cristã. Esta foi por seu Autor colocada tão adiante do grau de progresso da época em que seus preceitos foram ouvidos pela primeira vez, que a corrente de dezoito séculos passando sobre todos os outros sistemas, não pôde atingi-la. Os ensinos do Cristo, de caráter profético, são mais adiantados não só do que as mais puras práticas do mundo moderno, mas também do que as suas aspirações. Poderemos negar ao seu Autor o direito de ser chamado o Escolhido, o Ungido de Deus? Qual foi a resposta do Apóstolo mais crente do Cristo, quando o Mestre lhe perguntou: "E vós, quem dizeis que eu sou?"

Pedro respondeu: "O Cristo de Deus[22]." Foi esse também o título que lhe deu o mesmo apóstolo na sua primeira prédica aos judeus, depois da crucificação do Mestre, na qual ele designa o Grande Pregador como "Jesus de Nazaré, varão por Deus aprovado com milagres, maravilhas e prodígios"; e ainda, com ligeiras variações de frases, quando, discursando diante de Cornélio e seus irmãos gentios, em Cesaréia, falou do Mestre como "Jesus de Nazaré, a quem Deus ungiu com o Espírito Santo e o poder de fazer o bem".

Sua própria natureza, seu caráter e obras narradas nas biografias evangélicas, são quase tão maravilhosas, como o sistema que ele legou ao mundo. Elas não são o que se devia esperar daquele país, daquele tempo e ‒ a não ser como um sublime modelo oferecido a nós do que o Homem há de ser ‒ daquela raça humana com a qual, em centenas de ocasiões ele expressamente se identifica. É difícil, sobre este ponto, dizer melhor do que o fez um padre anglicano, cuja morte prematura foi uma desgraça para a igreja de que era ornamento.

Uma vez, no curso das idades, isento das inumeráveis falhas, desde o começo inerentes à natureza humana, um botão desenvolveu-se no seio de uma flor sem mácula. Deus exibiu na terra um espécimes perfeito da humanidade... Como se o sangue vital de todas as nações estivesse em suas veias, como se o que há de melhor e mais perfeito em todos os homens, de mais terno, delicado e puro, em todas as mulheres, se concentrasse no seu caráter, ele se chamava a si mesmo o Filho do Homem[23].

Não menos eloquente neste assunto é o autor de uma obra bem conhecida, o Ecce Homo de Seeley:

A história da vida de Cristo será sempre uma lembrança, na qual a perfeição moral do homem se revela em sua origem e unidade, e manifesta-se a mola oculta que põe em movimento todo esse maquinismo... Todos os menores exemplos e vidas ocuparão sempre um lugar subordinado e servirão principalmente para refletir a luz do exemplo central e original. À vista de suas feridas, todas as penas humanas desaparecerão e todas as abnegações humanas virão encontrar um apoio na sua cruz.

Donde procede a essa preeminência? O germe do Divino repousa, realmente, silencioso em nossa natureza comum; mas, antes de ele frutificar, receberá o sopro divino de uma região mais pura que a nossa. Nenhum mortal ousará decidir, se neste supremo grau da inspiração devemos ver uma fase extraordinária do Sopro Divinal, produzindo uma obra monumental.

Contudo, creio que mal obraria se ocultasse o fato de haver eu recebido a respeito uma comunicação, uma somente e essa espontânea, que acredito vinda de uma fonte espiritual. É uma das poucas mensagens, que obtive, relativas a pontos controvertidos da doutrina. O leitor poderá julgá-la. Eis a comunicação recebida a 26 de janeiro de 1862:

O aparecimento do Cristo foi o resultado de uma crença e não de uma concepção. Maria tinha herdado uma organização peculiar, física e espiritual, dos seus ancestrais da linhagem de David. Foi colocada em perfeito estado de transe, com suspensão da vida corporal. O princípio espiritual frutificante foi recebido durante esse transe. O corpo mortal do Cristo foi o resultado da fé perfeita de Maria, dominando o organismo, fé essa de tal transcendência, que é o centro e a circunferência de tudo o que se deseja. É uma verdade literal, e não somente uma figura, dizer-se que essa fé pode remover montanhas. Ela está para a fé comum da humanidade como o diamante cristalino para o carvão de pedra.

O que sucedeu com Maria já vinha previsto com muitos séculos de antecedência. Foi uma fé específica, o florescimento de uma crença preservada pelas idades, de que uma virgem conceberia e pariria um filho. Nenhuma outra combinação poderia produzir um Cristo.

Contudo, não houve nisso uma suspensão da lei. Seu nascimento foi natural. Com o concurso de idênticas circunstâncias, a admitir-se tal caso, um nascimento semelhante ainda pode dar-se. Era necessário que o Cristo permanecesse acima do plano da humanidade, para poder atraí-la a si. Ele era isento dos apetites e paixões humanos, em grau tal que escapa a toda a humana concepção. No sentido humano e corporal, era um homem incompleto. Se não se desse nele essa ausência de apetites e paixões, a verdade não nos teria vindo por seu intermédio, como veio. Haveria obscurecimentos e prejuízos, sob cuja influência a sua integridade de Mensageiro não seria preservada, e ele teria sido simpaticamente recebido pelo seu tempo.

O Cristo sofreu as provas e tentações que os seus irmãos da humanidade costumam suportar, mais fortemente mesmo do que estes, por causa da força repulsiva que elas iam encontrar nele, e não porque houvesse nele alguma coisa que as atraísse. Essas tentações não o atraíam, mas penalizavam-no. Ele tinha sempre diante de seus olhos as leis eternas e através do presente via o futuro.

Nesta comunicação não se descobre suspensão ou violação da lei natural, e mesmo, creio eu, não há nenhuma impossibilidade que no-la faça rejeitar imediatamente. Segundo ela, o nascimento do Cristo efetuou-se em circunstâncias tão peculiares, que o libertaram dos apetites e paixões da natureza humana, em grau necessário à sua pura integridade, como um Pregador a quem nenhum outro jamais poderia ser comparado. No estado a que chegaram os nossos conhecimentos, sinto-me incapaz de afirmar ou negar uma tal teoria.

Sem o dom da clarividência espiritual, vendo tudo através de um vidro embaciado, poderei precipitar uma decisão? Contento-me com a esperança de obter, talvez, em poucos anos, maior discernimento e luz mais viva.

O hábil autor do Ecce Homo toca justamente nas questões do nascimento do Cristo. Tratando do entusiasmo espiritual que caracterizava Jesus, pergunta: "Quem pode compreender como esse fogo se ateava nele?" A sua resposta é: "O insondável mistério de sua personalidade esconde esse segredo. Deus não queria engendrar um segundo filho semelhante”.

O Senhor Gladstone, o grande político da Inglaterra, aludindo, em crítica, à obra onde elas aparecem, às palavras supracitadas, diz:

Elas parecem referir-se a coisas que não conhecemos e nem temos habilitação para estudar.

Sou da sua opinião. É estranho, sim, mas também é triste que os homens, em todos os tempos, tenham sido arrastados a encarar essas questões, a ataca-las e, apesar de conhecerem sua incapacidade, e mesmo de estarem convencidos disso, sejam compelidos a decidir no assunto! Forçados, sim, pelos outros homens, mas não por Deus, pois não é maior a certeza que tenho da minha própria existência do que a de que a Onipotência e Bondade Divina não me punirá, nem a nenhuma outra de suas criaturas pelo fato de, a respeito desses arcanos, nos julgarmos e confessarmos incapazes de compreendê-los. O que somente posso dizer é que Jesus era divinamente favorecido e dotado de altíssimos dons. Que havia um limite, uma lei diretriz, seus biógrafos no-lo informam. No seu país natal, onde os homens perguntavam uns aos outros: "Não é este o carpinteiro, o filho de Maria?" Ele não pôde fazer outras obras a não ser a cura de poucos enfermos, pela aposição das mãos; e espantou-se da sua incredulidade[24]. Noutro ponto, em palavras repassadas de tristeza, ele mesmo nos diz que não devia ter feito tudo o que fizera por seus concidadãos: "Jerusalém, Jerusalém, que mataste os profetas e apedrejaste os que a ti foram enviados; quantas vezes procurei juntar teus filhos, como a galinha que sob as asas reúne os pintos, sem nada conseguir24?

Como definiremos os limites dos seus conhecimentos? Lendo-se o Evangelho, sente-se o que sentiam os juízes judeus, quando diziam: "Nunca outro homem falou como este". Contudo, nos escritos que possuímos, encontramos palavras que, se as aceitarmos, demonstram claramente que, como os demais homens, o Cristo também era sujeito ao erro. Os exemplos aparecem para todos os que desapaixonadamente estudam os Evangelhos.

Cumpre que as almas tímidas, que julgam perigoso achar-se uma simples imperfeição de doutrina ou um descuido da narrativa, se convençam de que o sistema espiritual do Cristo, com a sua grande influência sobre a vida terrena do homem, não depende absolutamente de incidentes como estes, não essenciais. Seu espírito, substância e eficácia, nada sofrem com isso. Ele é útil, quando mais não seja, como regra para a conduta humana neste mundo, como guia muito necessário ao nosso preparo da vida futura.

Não é conveniente, a respeito deste assunto, depositar confiança em coisas acidentais, ou em qualquer autoridade, a não ser a da excelência intrínseca e do poder inerente aos grandes ensinos. Não é nas suas velhas fortalezas de pedra, por mais inexpugnáveis que pareçam, que deve uma nação, na hora do perigo, depositar confiança; mas, sim na fidelidade, no valor e no afeto que animam o coração de seus defensores. Assim, o Cristianismo, assaltado pelas legiões da dúvida e do materialismo, não deve depositar sua confiança nas velhas evidências da tradição e da remota história; apesar de serem firmadas sobre estudos e entrincheiradas contra as laboriosas polêmicas das idades; se ele quer tornar-se a religião da civilização, seu reino deve fundar-se nas convicções sinceras, na candura e no amor esclarecido das almas livres.

Permiti-me dizer aqui uma palavra com referência a mim mesmo. Ninguém, mais do que eu, venera religiosamente os ensinos e a pessoa do Cristo; ninguém, mais do que eu, sente profundamente o indispensável dever de estudar suas lições e fazer todo o possível para seguir o seu exemplo; apesar dos teólogos não terem conseguido lançar em meu cérebro todas as perplexidades que amontoaram no credo de Atanásio. Se alguns encontram nisso, apesar de suas sutilezas, um conforto nas suas aflições, um incentivo para reanimar sua fé, um motivo para excitar seu zelo adormecido, um estímulo aos seus deveres religiosos, deixai que aproveitem aí o que podem aceitar. O patriarca alexandrino não fala ao meu coração nem à minha inteligência; mas, se outros, podem receber a sua doutrina, não se deve impedi-lo.

Se, fora da declaração de ser ele o Messias prometido, o Profeta Ungido de Deus, por Ele comissionado para libertar o mundo das trevas espirituais, há algum fundamento razoável para crer que o Cristo se tenha dito ou considerado uma das Pessoas da Divindade, confesso-me incapaz de contestá-lo. Mui raramente, apenas uma meia dúzia de vezes, nos três Evangelhos sinóticos, Jesus dá a si mesmo o título de Filho de Deus; ao passo que chama quase sempre filhos de Deus a seus irmãos da Terra; e, na única prece que nos deixou, manda chamar à Divindade Nosso Pai. Sendo mensageiro de Deus, como é que essa preeminência justifica o título que, de vez em quando, a si próprio dá? Se, como ensina, os pacíficos serão chamados Filhos de Deus, ele, que é o Príncipe da paz, o Portador do Evangelho que trouxe a paz aos homens de boa vontade neste mundo, com mais razão que todos os outros, deve ser chamado o Filho amado de Deus, o depositário de toda a sua complacência.

Jesus foi o tipo mais perfeito dos inspirados, pois que, quando habitou entre nós, vivia, mais que qualquer outra das criaturas de Deus, tendo somente em vista a sua futura pátria. Por isso, seus ensinos são os mais subidos frutos da inspiração.

Nos mais elevados fenômenos do Espiritismo, em outras palavras, nos melhores exemplos da moderna fase dos poderes e dons conexos com a inspiração, devemos ver o cumprimento da promessa feita pelo Cristo aos cristãos, de que eles fariam obras imitando as suas[25]. Nas mais puras revelações do Espiritismo podemos achar o cumprimento de uma outra promessa sua, relativa à vinda do sopro divino, do alto trazendo aos homens a verdade e o conforto.

O Cristianismo primitivo, a maior de todas as reformas, evidencia-se melhor no Espiritismo moderno; porque, o germe deste está naquele. À medida que se for estudando as manifestações do Espiritismo, a atenção ir-se-á afastando do dogmatismo religioso e concentrando-se na forma primitiva dos ensinos do Cristo.

Que mais poderoso motivo poderemos aduzir em prova desses prodígios e maravilhas, que vêm rejeitar tudo o que é estranho e ímpio, só aceitando o que é fiel e bom?



[1] Região em Litígio: entre este mundo e o outro – Robert Dale Owen

[2] Henry Wadsworth Longfellow (27 de fevereiro de 1807 / 24 de março de 1882) foi um poeta e educador norte-americano.

[3] Analogy of Religion, parte 2ª, cap. II, pags. 195 e 196

[4] A. Jackson Davis, o autor da Nature’s Divines Revelations, escreveu uma obra inteira sob o ditado dos Espíritos.

[5] Apology  §§ 31 e 33 – Plutarco – De genio Socratis – Apuleios – De genio Socratis

[6] Stanley – History of Phylosophy, cap. VI, pag. 19.

[7] G.H.Lewis – Biographical History of Phylosophy, pag. 141

[8] Platão – Phoedon, §§ 10, 11e 12.

[9] Tuscul Quest , liv I, § 31.

[10] Cahagnet – Arcanes de l avie Future devoilés, vol. 1, pags. 117 e 118.

[11] Bertrand – Traité du Somnambulisme, Paris 1823, pags. 469 e 470.

[12] Histoire des Diables de Loundun, ou de la Possession des Religienses Ursulines.

[13] Court de Gébelin: Histoire de Camisars; Examen du Theatre Sacre des Cevennes, Memoires pour servir à l’histoire des Camisars.

[14] Galton – Hereditary Genius

[15] Life of Shakespeare, edição 1823, Londres, pag. 14.

[16] Barlett – Familiar Questions.

[17] Deha Bacon – The Phylosophy of the Plays of Shakspeare enfolded. Boston , 1857

[18] Vasári – Lives of the Painters, vol. III, pags. 1, 2 e 58.

[19] Goethe – Briefwechsel mit cinem Huide.

[20] Charles Darwin.

[21] Lucas – XVII:20.

[22] Lucas – IX:20.

[23] F. W. Robertson – Sermons, pags. 365 e 366.

[24] Marcos – VI:3, 5 e 6.

[25] João – XIV:12

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