terça-feira, 25 de julho de 2023

A MÚSICA ESPÍRITA[1]

 

Gioachino Rossini


Allan Kardec

 

(Paris – Grupo Desliens, 9 de dezembro de 1868 – Médium: Sr. Desliens)

 

Recentemente, na sede da Sociedade Espírita de Paris, o presidente deu-me a honra de perguntar minha opinião sobre o estado atual da música e sobre as modificações que a ela poderia trazer a influência das crenças espíritas. Se não atendi imediatamente a esse benévolo e simpático apelo, crede, senhores, que só uma causa maior motivou a minha abstenção.

Os músicos, ai! São homens como os outros, talvez mais homens, isto é, nessa condição, falíveis e pecadores. Não fui isento de fraquezas, e se Deus me deu vida longa, a fim de me dar tempo de me arrepender, a embriaguez do sucesso, a complacência dos amigos, a adulação dos cortesãos muitas vezes me tiraram o meio. Um maestro é uma potência, neste mundo onde o prazer representa tão grande papel. Aquele cuja arte consiste em seduzir o ouvido, enternecer o coração, vê muitas ciladas criadas sob seus passos e nelas cai o infeliz! Inebria-se com a embriaguez dos outros; os aplausos lhe tapam os ouvidos e ele vai direto ao abismo, sem procurar um ponto de apoio para resistir ao arrastamento.

Contudo, a despeito de meus erros, eu tinha fé em Deus; cria na alma que vibrava em mim, a qual, desprendida de seu cárcere sonoro, logo se reconheceu em meio às harmonias da Criação e confundiu sua prece com as que se elevam da Natureza ao infinito, da criatura ao ser incriado!...

Estou feliz pelo sentimento que provocou minha vinda entre os espíritas, porque foi a simpatia que a ditou e, se a princípio a curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que deveis a minha apreciação da pergunta que foi feita. Eu lá estava, prestes a falar, crendo tudo saber, quando meu orgulho, caindo, revelou a minha ignorância. Fiquei mudo e escutei. Voltei, instrui-me e, quando às palavras de verdade emitidas por vossos instrutores se juntaram a reflexão e a meditação, disse-me: “O grande maestro Rossini, o criador de tantas obras-primas, segundo os homens, nada fez, infelizmente, senão debulhar algumas das pérolas menos perfeitas do escrínio musical criado pelo mestre dos maestros”.

Rossini juntou notas, compôs melodias, provou a taça que contém todas as harmonias; roubou algumas centelhas ao fogo sagrado; mas esse fogo sagrado, nem ele criou, nem os outros! Nada inventamos: copiamos do grande livro da Natureza e a multidão aplaude quando não deformamos demais a partitura.

Uma dissertação sobre a música celeste!... Quem poderia encarregar-se disto? Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia captar-lhe os matizes, variados ao infinito?... Quem possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não foi feito para tais condições!... Mais tarde!... Muito mais tarde!...

Esperando, talvez eu venha satisfazer em breve o vosso desejo e vos dar minha apreciação sobre o estado atual da música e vos dizer das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá aí introduzir. Hoje, ainda, é muito cedo. O assunto é vasto, já o estudei, mas ele ainda se apodera de mim; quando dele for senhor, caso a coisa seja possível, ou melhor, quando o tiver entrevisto tanto quanto me permitir o estado de meu espírito, eu vos satisfarei. Mas, ainda um pouco de tempo. Se só um músico pode falar bem da música do futuro, deve fazê-lo como mestre, e Rossini não quer falar como aprendiz.

Rossini



[1] Revista Espírita – janeiro/1869 – Allan Kardec

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