Anor Sganzerla[2], Leo Pessini[3]
RESUMO
Esta reflexão crítica se dá
em torno da ética científica do Crispr-Cas9, e estrutura-se em cinco momentos:
1) inicia-se recordando o filme ‘Gattaca[4]’ e o experimento de edição de embriões humanos por
meio da técnica Crispr-Cas9, protagonizado por He Jiankui, no final de 2018, na
China, e que chocou o mundo científico; 2) a seguir, faz-se uma incursão em
busca de compreensão sobre a descoberta do Crispr-Cas9 e que tipo de
implicações éticas traz à humanidade; 3) nessa etapa, fazem-se considerações em
torno da pesquisa científica dessa revolucionária técnica de edição de genes,
que tem que continuar e evoluir, mas respeitando diretrizes éticas; 4)
necessita-se de diretrizes éticas para a governança das técnicas de edição do
genoma humano - alguns princípios éticos gerais são propostos; 5) finaliza-se a
reflexão apontando para a necessidade de fazer uma ciência com consciência,
prudência e responsabilidade, para construir um futuro com esperança ética,
evitando o alarmismo apocalíptico (tecnofobia) de um lado, bem como o utopismo
tecnológico ingênuo (tecnoutopia) de outro.
PALAVRAS-CHAVE
Bioética; Edição de genes;
Sistemas Crispr-Cas
ABSTRACT
This critical reflection
takes place around the scientific ethics of Crispr-Cas9, and is structured in
five moments: 1) it starts by remembering the film ‘Gattaca’ and the experiment
of editing human embryos using the Crispr-Cas9 technique, by He Jiankui, in
late 2018, in China, and which shocked the scientific world; 2) next, there is
an inroad in search of understanding about the discovery of Crispr-Cas9 and
what kind of ethical implications it brings to humanity; 3) at this stage,
considerations are made around the scientific research of this revolutionary
gene editing technique, which has to continue and evolve, while respecting
ethical guidelines; 4) ethical guidelines are needed for the governance of
human genome editing techniques - some general ethical principles are proposed;
5) the reflection ends by pointing to the need to make science with conscience,
prudence and responsibility, to build a future with ethical hope, avoiding
apocalyptic alarmism (technophobia) on the one hand, as well as naive
technological utopianism (technoutopia) from another.
KEYWORDS
Bioethics; Gene editing;
Crispr-Cas systems
Introdução
Por um longo período, durante o
século XX, a humanidade conviveu com medos e esperanças relacionadas com as
possibilidades de intervenções genéticas no ser humano. A cada nova invenção e
intervenção tecnológica no âmbito genético, uma nova onda de temores e
esperanças surgia no horizonte. A lembrança da prática da eugenia dos anos 1920
fez com que o pessimismo tomasse o lugar da esperança quando se trata do
aperfeiçoamento genético do ser humano. Uma série de filmes, bem como
literatura clássica de ficção científica, lida de forma brilhante com esse
cenário, no qual o ser humano, ao desejar assumir o controle da evolução, pode
tornar-se facilmente escravo dela.
Justamente no apagar das luzes
do século XX, uma notícia chocou o mundo com a revelação da façanha de
conseguir o primeiro clone a partir de células de um animal adulto: surge a
simpática ovelhinha Dolly, fruto do trabalho de longos anos de pesquisa dos
geneticistas Ian Wilmut e Keith Campbell, em Edinburg, Escócia[5].
Intensificam-se as discussões em torno de espinhosas questões éticas, tais
como: a clonagem terapêutica, a possibilidade de clonagem de seres humanos, a
utilização de células-tronco embrionárias, a produção de embriões para
pesquisa, entre outras. A conclusão do mapeamento do genoma humano, no final do
século passado e no início deste século, permitiu o surgimento de técnicas
revolucionárias de modificação do genoma do ser humano, a chamada edição de
genes.
Isaac Asimov, na sua obra
intitulada ‘O começo do fim’, escrita no final da década de 1970, previa de
certa forma uma nova fronteira para a medicina genética. Afirma o autor que “o
avanço da engenharia genética torna praticamente possível que começaremos a
desenhar nosso próprio progresso evolutivo[6]”.
Essa afirmação dita há pouco mais de 40 anos tornou-se ainda mais real em
nossos tempos, pois o desejo humano de controlar o acaso e a imprevisibilidade
da vida tornou-se mais factível diante dos avanços tecnocientíficos.
Se no passado, para saber a
respeito do futuro, os indivíduos consultavam os astros, na atualidade, a
consulta aos genes tem sido a aposta para prever o futuro, na esperança de
decifrar totalmente o ser humano. Nesse sentido, a humanidade começa a ter em
suas mãos ferramentas e conhecimentos no âmbito da biologia molecular, da
genética e da aplicação da engenharia genética, que prometem revolucionar
completamente a sua vida, bem como a vida dos seres vivos na face da Terra.
Vivemos em um momento crucial da história humana que alguns cientistas chamam
de antropoceno, ou seja, a era em que o ser humano assume a responsabilidade
por alterações genéticas em si próprio, bem como no planeta. Todo esse novo
cenário se abre a partir de uma das mais importantes descobertas da humanidade
no século XX, que foi a descoberta da dupla hélice do DNA, em 1953, por James
Watson e Francis Crick[7].
Em tempos de novos
conhecimentos, de rápidas e profundas inovações tecnológicas no âmbito do
genoma humano, surge, agora, o enigmático Crispr-Cas9, que promete revolucionar
a área da genômica. Defrontamo-nos novamente, por um lado, com o entusiasmo dos
pesquisadores e, por outro, com as inquietações éticas decorrentes das inúmeras
possibilidades de manipulação da dignidade do ser humano[8].
O que ocorreu em relação à ovelha Dolly acontece novamente agora em relação a
essa descoberta, ou seja, as esperanças e os temores caminham lado a lado, o
que evidencia, como afirma Hans Jonas, o forte caráter ambivalente da técnica
moderna[9].
Essas possibilidades
biotecnológicas fazem com que se multipliquem os eventos e as publicações
científicas a respeito do tema, bem como suas implicações culturais, sociais e
éticas. É preciso ter discernimento e sabedoria ética para não condenar
precocemente uma descoberta científica que pode trazer um enorme potencial de
benefícios à humanidade, embora tal descoberta não esteja isenta de comprometer
a vida do ser humano no futuro. Em relação a essa perspectiva entre os avanços
tecnocientíficos e a ética, Potter, que é considerado um dos ‘pais da bioética’,
afirma:
a humanidade necessita urgentemente de uma nova
sabedoria que forneça o ‘conhecimento de como usar o conhecimento’ para a
sobrevivência humana e para o melhoramento da qualidade de vida[10].
Dessa forma, analisar a ética
científica em torno da técnica do Crispr-Cas9 e a necessidade de fazer ciência
com consciência, prudência e responsabilidade é o objetivo desta reflexão.
A película ‘Gattaca’ e edição de embriões humanos na
China
Ao entrarmos no campo da
genética e genômica, imediatamente nos deparamos com uma série de filmes
explorados pela ficção científica, que povoam o imaginário popular, por vezes
amedrontando, outras denunciando um futuro drástico para a humanidade. O perigo
da eugenia, entre tantas outras perspectivas, geralmente mais apocalípticas do
que portadoras de esperanças, tem ganhado destaque.
Entre os filmes de ficção
científica, temos ‘Gattaca’ (1997), cujo nome foi criado a partir das iniciais
das quatro letras G, A, T e C que identificam quatro tipos de bases
nitrogenadas: Guanina (G), Adenina (A), Timina (T) e Citosina
(C), com que se codificam os genes da dupla hélice da molécula do DNA. Trata-se
de um filme sobre discriminação genética, mas, felizmente, ainda estamos longe
daquela distopia anunciada por essa película. Na sociedade de ‘Gattaca’, a
população está dividida entre os geneticamente válidos (que têm bons genes,
escolhidos a dedo) e os inválidos (fruto do acaso reprodutivo), e, por isso,
considerados como seres inferiores[11].
Não é nenhuma surpresa que os
primeiros nascimentos de bebês com DNA editado pelo Crispr-Cas9 tenham
acontecido na China. Com referenciais éticos e bioéticos praticamente
inexistentes para guiar procedimentos científicos, e muito mais permissivos do
que a maioria dos países desenvolvidos, esse contexto torna-se um paraíso
natural para esse tipo de ousadia ou temeridade científica.
Em 26 de novembro de 2018, o pesquisador
chinês, o biofísico He Jiankui, inquietou e chocou a comunidade científica
mundial ao anunciar, via vídeo pelo YouTube, que tinha criado os primeiros
bebês geneticamente modificados do mundo, implantados em uma mulher que deu à
luz meninas gêmeas chamadas Lulu e Nana, nascidas, segundo o pesquisador, em
novembro de 2018. Para Jiankui, o procedimento denominado ‘cirurgia genética’,
utilizando-se da técnica do Crispr-Cas9, teria ocorrido de forma ‘segura’, e as
gêmeas seriam ‘saudáveis como qualquer outro bebê’. Em entrevista a Associated
press[12],
Jiankui, após o anúncio, afirma: “sinto a forte responsabilidade de não só
chegar primeiro, mas também estabelecer um exemplo. A sociedade decidirá o que
fazer a seguir”, em termos de permitir ou proibir essa técnica científica. E
acrescenta: “eu entendo que meu trabalho é controverso, mas acredito que as
famílias precisam dessa tecnologia”, explica Jiankui.
Jiankui é visto pela comunidade
científica como um franco atirador e um obcecado caçador de glórias[13].
Estudou na Universidade de Rice e na Universidade de Stanford, ambas nos
Estados Unidos da América (EUA). De volta ao seu país natal, ele abriu um
laboratório na Universidade do Sul, de Ciência e Tecnologia, em Shenzhen. Ele
também tem duas empresas de genética.
Durante a ‘Conferência
internacional sobre edição de genes’, em Hong Kong (27 de novembro de 2018),
Jiankui explicou que seu objetivo não é curar ou prevenir doenças hereditárias,
mas tentar criar uma característica que poucas pessoas têm: a habilidade de
resistir a possíveis infecções pelo vírus HIV, o vírus da Aids. Os experimentos
que levaram a geração de bebês com genoma ‘customizado’ pelo Crispr-Cas9 não
constam em publicação oficial revisada criticamente por outros cientistas, o
padrão-ouro de confiabilidade e veracidade para a ciência moderna, o que
redobra o olhar crítico sobre o que foi anunciado.
Imediatamente após a divulgação
por Jiankui, as principais instituições mundiais de ciência e de medicina
reagiram fortemente condenando esse feito ‘científico’, chamando a atenção para
a urgente necessidade de criar proteções éticas e legais para impedir que
experimentos não supervisionados como esse se repitam[14].
O temor provocado por Jiankui
não se limita à possibilidade de os bebês desenvolverem problemas de saúde
inesperados -
e, possivelmente, hereditários - nem às tentativas de produção de
bebês alterados geneticamente com determinadas características físicas,
intelectuais ou atléticas. Os cientistas temem que ocorra uma reação negativa
por parte da sociedade à pesquisa com a edição genética que não envolve
embriões e que representa um grande potencial de tratamento ou prevenção de
doenças.
Uma das descobridoras da técnica
Crispr-Cas9, Jennifer Doudna, bioquímica da Universidade da Califórnia, em
Berkeley, em entrevista a Associated press11, afirmou que
ficou simplesmente horrorizada. Senti uma espécie de
mal-estar físico. Foi fundamental que esse trabalho perigoso e gratuito tenha
sido oficialmente reconhecido e considerado ilegal.
Continua Jennifer Doudna
afirmando que esse anúncio confirma a existência de um limite internacional
para a conduta ética e científica para ajudar a garantir que esse tipo de
trabalho -
radical e desnecessário do ponto de visto médico e negligente - não
volte a ocorrer.
O próprio governo chinês, em uma
investigação preliminar do feito de Jiankui, afirma que este ‘violou
gravemente’ as regulamentações éticas chinesas dessa área da genética.
Existem acusações sérias,
segundo as quais o pesquisador chinês teria forjado documentos éticos de
aprovação, utilizado métodos de edição genética pouco seguros e eficazes e
evitado deliberadamente a supervisão. A Universidade de Ciência e Tecnologia do
Sul, de Henzhen, rescindiu o contrato de trabalho com Jiankui e começou uma
investigação em relação ao que foi anunciado. Considerou que a edição de
embriões humanos pelo pesquisador violou seriamente a ética acadêmica e os
códigos de conduta. A universidade declarou que está em profundo choque e tomou
as medidas imediatas em busca de esclarecimento por parte de He Jiankui.
Mais de 120 cientistas chineses
também assinaram um documento opondo-se aos experimentos do jovem pesquisador
chinês. Esses cientistas declaram que ‘qualquer tentativa’ de fazer mudanças em
embriões humanos implantados é ‘uma loucura’ e que dar à luz um bebê nessas
condições é um ‘alto risco’. Em vários países do mundo, bioeticistas também
classificaram o experimento como ‘monstruoso’, e que, sendo verdade o que foi
comunicado, trata-se de uma grande irresponsabilidade, antiética e perigosa[15].
Pela reação frontalmente
negativa tanto dos cientistas chineses como dos bioeticistas pelo mundo, e da
comunidade científica internacional, ao que tudo indica, Jiankui agiu nas
brechas do sistema regulatório relativamente permissivo da China. Os
experimentos de Jiankui também devem ser lidos no contexto de um crescimento
expressivo e rápido dos investimentos em pesquisa e do objetivo das autoridades
políticas chineses de transformar o país em uma superpotência científica e
tecnológica.
Certamente, trata-se de uma
questão muito complexa. Se levarmos em conta apenas as questões
tecnocientíficas, a imaginação é simplesmente o limite. No entanto, se levarmos
em consideração o bem-estar humano, a dignidade da pessoa, a sobrevivência e o
futuro da humanidade, o limite que se impõe a ser honrado como um imperativo, é
a implementação de valores éticos que direcionem os experimentos nessa área
científica.
A ciência é o estudo de como o
mundo funciona, e a ética é o estudo do que devemos fazer para salvaguardar a
vida em sua totalidade. As duas instâncias hoje se necessitam reciprocamente
para assegurar a dignidade humana e um futuro digno para a humanidade.
Em que consiste a descoberta do Crispr-Cas9 e quais
seriam as implicações éticas?
Após essas considerações
iniciais, vejamos a grande novidade genética desta segunda década do século
XXI. Trata-se do Crispr-Cas9, uma nova técnica revolucionária de edição do DNA
que promete mudar profundamente o nosso mundo da vida. Estamos diante de uma
sigla da expressão em língua inglesa clustered regularly interspaced short
palindromic repeats. Trata-se de um acrônimo, cuja tradução em português é
de difícil compreensão para os não especialistas: “repetições palindrômicas
curtas agrupadas e regularmente interespaçadas”[16].
Ela funciona com uma proteína associada, a chamada Cas. Resumidamente,
pode-se dizer que, por meio dessa técnica do Crispr-Cas9, é possível atuar
diretamente no gene defeituoso, como um míssil teleguiado, atingindo as
células-alvo. Nessa técnica, a enzima Cas9, uma nucleasse, corta as duas fitas
da dupla hélice do DNA, abrindo o espaço para a inserção de um novo trecho. Já
é possível uma edição ‘sem corte’ do DNA, muito útil para alterar uma única
‘letra’ do genoma[17].
Trata-se de uma sequência de DNA
bacteriano muito particular, com trechos curtos que se repetem a intervalos
regulares, e que podem ser lidos da mesma maneira, mesmo que o sentido de
leitura seja invertido (ou seja, como palíndromos), mas na linguagem do DNA.
Essa nova tecnologia de edição de genes Crispr-Cas9 é descrita como uma
‘tesoura molecular’ por sua capacidade de tornar feitos antes improváveis na
engenharia genética em simples exercícios de cortar e colar.
Pela primeira vez na história,
coloca-se ao alcance do ser humano a possibilidade de reescrever o código
genético humano tanto nas células doentes do corpo quanto nos óvulos e
espermatozoides que determinam o futuro de nossos filhos, dos filhos de nossos
filhos e de toda a linhagem que emergirá deles. Ou seja, trata-se de um
passaporte da humanidade existir no futuro.
A finalidade do uso dessa
técnica seria de curar doenças genéticas na linha germinativa, quer dizer, não
do próprio doente, e, sim, em seus filhos e em todos de sua descendência
futura. O método foi testado com sucesso em ratos e macacos, por isso, os
cientistas acreditam que seria a hora de estudar se tem utilidade médica em
humanos. Por enquanto, essa técnica ainda é ilegal em todos os países que
regulamentaram a embriologia humana e que têm a capacidade técnica necessária.
Existe atualmente uma grande
batalha jurídica que envolve milhões de dólares em torno de quem descobriu e a
quem pertence a patente do Crispr-Cas9. De um lado, temos as pesquisadoras
Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier da Universidade de Berkeley, na
Califórnia, EUA; de outro, Junjiu Huang, da Universidade de Sun Sat-Sem, em
Guangzhou, China. Nesta última universidade, a técnica do Crispr-Cas9 foi
utilizada para a edição de um embrião humano para reparar um gene responsável
pela beta-talassemia (uma doença sanguínea potencialmente ameaçadora de vida),
utilizando-se embriões não viáveis, isto é, que não resultariam em nascimentos,
pois tinham sido fecundados por dois espermatozoides.
Nesse experimento, publicado no
periódico científico ‘Protein & Cell’, Huang et al.[18]
relatam que só conseguiram atingir seu objetivo em 4 dos 81 embriões
utilizados. Diante desse resultado, o próprio Huang, como líder da equipe de
cientistas, reconheceu que o experimento foi um fracasso, mesmo assim, defendeu
a realização de novas experiências para melhorar a precisão da técnica de
edição genética conhecida como Crispr-Cas9. Diante de tantas iniciativas de
pesquisa que começam a mexer com embriões humanos, com o uso das ferramentas
biotecnológicas que têm o potencial de alterar o genoma humano, reacende-se o
debate a respeito dos limites da ciência; e, nesse sentido, a bioética, com sua
essência interdisciplinar, torna-se uma ferramenta indispensável na promoção do
diálogo entre os diferentes atores.
Tal experimentação atualmente
está sob moratória voluntária nos EUA e fortemente regulada na Europa. A
geneticista Jennifer Doudna13, com prudência ética, afirma que, na
prática, será necessário ainda muito tempo para podermos editar com segurança o
DNA de um embrião humano, mas que essa potencialidade está no coração da
técnica do Crispr-Cas9.
Alguns pesquisadores, em março
de 2015, três anos antes da divulgação do ‘experimento científico’ de He
Jiankui, publicaram um alerta na prestigiosa revista científica ‘Nature’,
solicitando uma moratória total nos estudos que envolvam a manipulação genética
de espermatozoides, óvulos e embriões humanos. Edward Lanphier, Presidente da
Aliança para a Medicina Regenerativa’ é um dos cientistas que assinaram o artigo
da revista. Afirma ele:
[...] não somos ratos de laboratórios, muito menos algo
como um milho transgênico. Somos uma espécie única na natureza, com
características próprias que nos trouxeram onde estamos. Quando discutimos a
modificação de embriões, estamos refletindo sobre a alteração permanente da
espécie. Por décadas, os países desenvolvidos debateram a modificação de genes
em células reprodutivas e se posicionaram contra isso[19].
Um novo pedido de moratória foi
feito em março de 2019 por um grupo de especialistas de sete países, com a
participação de 18 cientistas e eticistas20. Tal pedido, também
publicado na revista científica ‘Nature’, reforça a necessidade de adotar uma
moratória sobre a edição do genoma humano. Tal proibição, no entanto, não deve
ser aplicada para a edição de linhas germinativas para fins de pesquisa, desde
que não haja a transferência do embrião para o útero, bem como para a edição do
genoma em células somáticas humanas não reprodutivas para fins de tratar
doenças. Afirma o documento:
nós clamamos por uma moratória global em todos os usos
clínicos da edição da linhagem germinativa humana, isto é, mudança do DNA
hereditário para criar crianças geneticamente modificadas[20].
E acrescenta que a ‘moratória
global’ não deve ser entendida como uma proibição permanente, mas sim o
[...] estabelecimento de uma estrutura internacional na
qual as nações, embora retenham o direito de tomar suas próprias decisões,
comprometam-se voluntariamente a não aprovar qualquer uso da edição clínica
germinal, a menos que certas condições sejam atendidas19.
O documento também pede para que
se estabeleça um período em que não será permitido nenhum uso clínico de edição
da linha germinativa, de modo a favorecer a reflexão das questões técnicas,
científicas, médicas, sociais, éticas e morais envolvidas, em vista de definir
uma estrutura internacional. Passado esse período, embora as nações possam
adotar caminhos diferentes, todas elas concordariam em proceder de modo aberto,
respeitando os desejos de toda a humanidade, visto que tal prática irá
influenciar toda a vida no planeta.
Em um painel da Organização
Mundial da Saúde, que tratou da técnica do Crispr-cas9 para a edição de
genética, propõe-se que se faça um registro global de estudos que envolvam a
edição do genoma humano e que os financiadores e editores de pesquisas exijam
com que os cientistas nele participem[21].
Entretanto, apesar dos esforços e dos apelos, na prática, nenhum mecanismo para
assegurar o diálogo internacional a respeito da edição genética na linha
germinativa, até o momento, foi criado; e, embora muitos cientistas estivessem
cientes do perigo da utilização da técnica, eles também não se empenharam em
tomar medidas necessárias para impedir a sua efetivação.
A edição do DNA nas primeiras
fases da vida humana tem a potencialidade de nos livrar de doenças
devastadoras, o que nos enche de otimismo em relação à continuação da pesquisa
na área. No entanto, tal possibilidade também levanta muitas inquietações
éticas ante a capacidade de criar sub ou super-humanos, formas sofisticadas de
novas eugenias, além de possíveis doenças e desvios genéticos ainda não
conhecidos que podem comprometer a vida humana no futuro[22].
A alteração o DNA humano cria
uma zona cinzenta que inquieta a humanidade em relação ao seu futuro. De um
lado, temos centenas de milhares de pessoas que hoje sofrem de doenças de
origem genética, que se beneficiariam com as pesquisas e aplicação dessa nova
técnica do Crispr-Cas9 para a cura destas doenças. Por outro, trata-se de um
empreendimento altamente arriscado quando ainda não temos um conhecimento
profundo de como o DNA realmente funciona. Existem muitas pesquisas em curso
que procuram entender como as diferentes peças do genoma humano funcionam
juntas. Dos 20 mil genes do genoma humano, sabemos um pouco a respeito de
apenas de 6 mil. Precisamos ainda progredir no conhecimento do nosso genoma,
temos ainda muita coisa desconhecida. Considerando as regiões codificadas,
temos apenas 2% do genoma conhecido[23].
Estamos diante de uma realidade
em que podem surgir cenários sombrios. Imaginemos a possibilidade de um
cientista, muito bem-intencionado, desenvolver a cura para uma doença e aplicar
essa nova técnica em centenas de milhares de doentes, sem antes saber que os
efeitos colaterais podem ser devastadores e mesmo mortais. Ou seja, trata-se do
caso em que a busca da cura é muito pior do que a doença em si mesma. Esse
cenário poderia ocorrer perante um cientista com boas intenções. Agora, podemos
nos perguntar e imaginemos essas poderosas ferramentas nas mãos de bio-hackers
sem escrúpulos, podendo agir como verdadeiros terroristas genéticos. Eles
poderiam alterar o genoma da gripe, por exemplo, tornando-a mais potente e
desencadeando uma epidemia que certamente colocaria em risco a vida de muita
gente.
Existem grandes inquietações e
preocupações quanto às questões éticas e de segurança em relação a essas
técnicas de manipulação genética. A edição de genomas em embriões humanos
usando tecnologias atuais pode ter consequências imprevisíveis e indesejáveis
sobre as gerações futuras. Eticamente é inaceitável[24].
Entre os bioeticistas que
refletem sobre essas novas técnicas de edição gênica em embriões, enfatiza-se
que elas têm um grande potencial promissor, porque poderiam erradicar doenças
genéticas devastadoras e incuráveis antes do bebê nascer. Outros mais
cautelosos dizem que essa técnica ultrapassa uma linha ética de grande perigo,
pois mudanças da linha germinal são hereditárias e poderiam ter um efeito
imprevisível sobre as gerações futuras, além da ameaça sempre presente da
prática da eugenia e da criação de ‘super-raças’. Os processos científicos que
interferem no genoma humano devem ser feitos com segurança, prudência, ética,
transparência e controle social da sociedade. Além disso, os cientistas nunca
devem perder a capacidade de se perguntar se o que estão desenvolvendo é
realmente necessário de ser realizado e de ser implementado.
Nem tudo o que é tecnicamente
possível de ser realizado é eticamente desejável, principalmente quando se
coloca em risco questões de biossegurança identificadas com a própria genômica
das gerações futuras. Não se trata de precaução exagerada, mas de
responsabilidade ética em relação a procedimentos cujos resultados ainda não
são seguros, e que podem colocar em risco a vida futura da espécie no nosso
planeta. Falamos mais de prudência e precaução do que em temor, em uma
perspectiva bioética. O problema é que, pelo conhecimento que temos hoje, ainda
que precário em várias áreas, já sabemos que certas modificações radicais
inseridas no genoma humano poderão tornar-se irreversíveis, inviabilizando a
reprodução da espécie. Ademais, diante de uma catástrofe dessas proporções, de
quem seria a responsabilidade?
É por isso que necessitamos de
uma ética de proteção. A ‘Declaração universal sobre o genoma humano e os
direitos humanos’ da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco), ainda nos anos 1990, deixa claro que todas as pesquisas com
o genoma humano devem levar em conta suas implicações éticas e sociais. Em um
dos seus artigos, essa importante declaração internacional expõe algumas
condições fundamentais para o exercício da atividade científica:
[...] incluindo o cuidado, a cautela, a honestidade
intelectual e a integridade na realização de suas pesquisas, e, também na
apresentação e na utilização de suas descobertas, devem ser objeto de atenção
especial no quadro das pesquisas com o genoma humano, devido a suas implicações
éticas e sociais. Os responsáveis pelas políticas científicas, em âmbito
público e privado, também incorrem em responsabilidades especiais a esse
respeito[25].
É importante lembrar que, em uma
perspectiva histórica evolutiva em medicina, nem todos os procedimentos
realizados têm 100% de segurança ou eficiência. A evolução dos conhecimentos e
tecnologias, aos poucos, faz com que essas intervenções sejam menos perigosas
ou danosas para o ser humano, a exemplo da cesariana no início do século XVIII.
Essa prática médica causava inicialmente a morte de quase todas as mulheres que
eram a ela submetidas. Na atualidade, no entanto, tornou-se uma prática médica
corriqueira e segura que salva a vida de mães e bebês. O mesmo ocorre em
relação aos transplantes de coração, que, no início dessa inovação, há 30 anos,
somente 25% dos transplantados sobreviviam. Atualmente, essa percentagem está
acima de 85%, e o transplantado pode continuar a viver uma vida de qualidade
com o novo órgão.
Uma regra clara é que quando uma
determinada intervenção provoca mais benefícios que riscos ou danos potenciais,
vale a pena ir adiante. Quanto à edição dos embriões, os riscos ainda são de
tal monta que nem sequer podemos falar em benefícios, afirmam muitos
pesquisadores da área, por isso do apelo à moratória internacional. Embora a
moratória possa dar a impressão de censura ou limites ao progresso científico,
com ela também podemos evitar a prática de aventureiros. É como se disséssemos
que, no momento, somos livres para pensar, mas ainda não temos a liberdade para
realizar. Esse processo, Jonas classifica-o como “freio voluntário”[26].
A pesquisa científica a respeito do gene editing
ainda precisa evoluir
Algumas notícias dos cientistas
e pesquisadores dessa área genética que chegam ao público a respeito da técnica
do Crispr-Cas9 informam-nos que ocorreram centenas de mutações genéticas
inesperadas. É o êxito de um pequeno estudo publicado na ‘Nature Methods’, cujo
título do artigo já denuncia o problema encontrado: Unespected mutations
after Crispr-Cas9 editing in vivo (mutações inesperadas após a edição do
Crispr-Cas9 in vivo)[27].
O experimento em discussão
possibilitou a correção de um gene defeituoso responsável pela cegueira de dois
ratos. Ao mesmo tempo, o seu DNA modificado apresentou mutações genéticas off
target (inesperadas) em números muito superiores do quanto se esperava. Os
ratos, não obstante as mutações constatadas, aparentam ser sãos e normais, mas
isso não exclui possíveis consequências no futuro, por exemplo, que algumas
dessas mutações induzidas se desenvolvam em formas tumorais.
Estão começando os primeiros
protocolos de pesquisa em seres humanos, prestes a acontecer na China e nos
EUA. Em 2016, no Reino Unido, foi dada permissão para um grupo de pesquisadores
utilizar o Crispr-Cas9 em embriões humanos. Aguardemos, pois os resultados
publicados devem ser replicados e confirmados para serem partilhados com a
comunidade científica.
A técnica de gene editing
já foi aplicada em embriões humanos para torná-los mais resistentes ao vírus
HIV, como vimos no início com o caso chinês de Hen Jiankui no final de 2018. Os
resultados, até o momento, mostraram que o procedimento foi totalmente
ineficaz. O próximo passo poderia ser a modificação da linha germinal, ovócitos
e espermatozoides, como se todos os outros passos já estivessem sido realizados
com sucesso, o que não é o caso. Sendo assim, isso nos faz pensar que talvez
estaríamos mais próximos de uma previsão de horóscopo que de um anúncio com uma
fundamentação científica credível.
Enfim, o debate a respeito da
ética de seres humanos geneticamente engenheirados reacendeu-se novamente,
assim, defrontam-nos com sérios questionamentos, tais como: devemos desenhar
geneticamente nossos descendentes? Se for sim, como seria isso? Quais são os
limites éticos claros desse novo poder e quais são os fins em direção aos quais
deveríamos direcioná-lo? Quais são as nossas obrigações e deveres em relação às
futuras gerações? Não deveríamos ter o controle sobre a evolução, de forma que
nossos descendentes pudessem transcender a natureza humana, ou deveríamos
considerar a natureza humana como um dom de nossos antepassados para a geração
do presente, que devemos cuidá-la para o bem das gerações futuras?
Princípios gerais para a governança das técnicas de
edição do genoma humano
A edição do genoma é uma nova
ferramenta poderosa capaz de realizar alterações precisas no material de um
organismo genético. Avanços científicos mais recentes tornaram a edição do
genoma ainda mais eficiente, precisa e flexível como nunca. Esses avanços
causaram uma explosão de interesse em todo o mundo a respeito de caminhos
possíveis em que a edição do genoma pode aprimorar a saúde do ser humano. A
velocidade com que essas tecnologias avançam e são aplicadas tem gerado
preocupações éticas e dúvidas em relação a quem deve governar essas
tecnologias, bem como quando o público deveria ser engajado em tais decisões,
entre outras[28].
A obra ‘Editando o genoma
humano: ciência, ética e governança’, um importante documento da Academia
Nacional de Ciências (ANC) e da Academia Nacional de Medicina (ANM) (EUA),
lançado em 14 de fevereiro de 2017, é resultado de um intenso trabalho de mais
de dois anos de um comitê ad hoc de peritos, no âmbito da biologia
molecular e genética, examinando em profundidade as implicações clínicas,
sociais, éticas e legais das tecnologias da edição de genes humanos[29].
Entre as conclusões e recomendações desse documento, assinala-se que é
importante levantar as questões do processo de edição do genoma humano;
equilibrar os benefícios potenciais com os riscos não previstos; governar o uso
da edição do genoma; incorporar valores da sociedade nas aplicações clínicas e
decisões em relação às políticas públicas; respeitar as inevitáveis diferenças
culturais entre as nações e culturas que estarão decidindo sobre o uso dessas
novas tecnologias.
O comitê define também critérios
que devem ser respeitados antes da permissão de pesquisa clínica de edição com
células-tronco que recebemos como herança e apresenta algumas conclusões sobre
a necessidade crucial para educação e engajamento do público, apresentando sete
princípios gerais que se traduzem em uma série de responsabilidades que os
pesquisadores necessitam considerar no processo de edição e governança do
genoma humano.
Os princípios éticos gerais, bem
como as responsabilidades decorrentes da observação desses sinalizadores de
valores a serem respeitados, identificados nesse documento, são os seguintes:
1º - O princípio do
bem-estar: busca apoiar e prover benefícios e prevenção de danos àqueles que
são afetados pela pesquisa. Esse princípio, com frequência, na literatura
bioética, identifica-se com os princípios da beneficência e o princípio da não
maleficência. Em decorrência desses princípios, seguem as seguintes
responsabilidades: a) procurar aplicações da edição do genoma humano que
promovam a saúde e o bem-estar dos indivíduos, tais como tratar ou prevenir
doenças, enquanto se busca minimizar os riscos às pessoas, nas aplicações
iniciais com alto grau de incerteza; e b) assegurar um razoável equilíbrio
entre riscos e benefícios para qualquer aplicação da edição no genoma humano.
2º - O princípio da
transparência: exige abertura e partilha da informação de uma forma acessível e
compreensível para com todos os envolvidos. As responsabilidades que seguem da
aderência a esse princípio incluem: a) um compromisso com a revelação completa
e adequada da informação; e b) participação pública no processo de elaboração
de diretrizes relacionadas com a edição do genoma humano, bem como de outras
tecnologias novas e que causam rupturas.
3º - O princípio do cuidado
devido: diz respeito aos pacientes participantes em estudos de pesquisa ou que
estejam recebendo cuidados clínicos. Traz como exigência que esses
procedimentos sejam cuidadosos e deliberativos, e somente aplicados quando
comprovados com evidências suficientes e robustas. As responsabilidades que
decorrem desse princípio incluem um proceder cauteloso e a incrementação, sob
apropriada supervisão, de modo que permita frequentes reavaliações à luz dos
avanços futuros e opiniões culturais.
4º - O princípio da ciência
responsável: procura sustentar os standards mais altos da pesquisa, desde a
banca do laboratório até o leito do doente, em sintonia com as normas
profissionais e internacionais. As responsabilidades que decorrem desse princípio
incluem um compromisso com: a) alta qualidade de análise e do protocolo de
pesquisa; b) revisão adequada e avaliação dos protocolos e resultados da
pesquisa; c) transparência; e d) correção da análise e dos dados falsos ou
enganosos.
5º - O princípio do
respeito pelas pessoas: exige o reconhecimento da dignidade pessoal de todas as
pessoas, reconhecimento da centralidade da escolha da pessoa e respeito pelas
decisões individuais. Todas as pessoas têm igual valor moral, independentemente
de suas qualidades genéticas. As responsabilidades que decorrem desse princípio
incluem: a) o compromisso com o valor igual de todas as pessoas; b) o respeito
e a promoção do protagonismo pessoal no processo de decidir; c) um compromisso
para prevenir a recorrência de formas abusivas de eugenia praticadas no
passado; e d) um compromisso em eliminar os estigmas e preconceitos ligados à
deficiência.
6º - O princípio da
equidade: exige que casos iguais sejam tratados igualmente e que os riscos e
benefícios sejam equitativamente distribuídos (justiça distributiva). As
responsabilidades que decorrem desse princípio incluem: a) a distribuição
equitativa dos ônus e benefícios da pesquisa; e b) o acesso amplo e equitativo
aos benefícios resultantes das aplicações clínicas da edição do genoma humano.
7º - O princípio da
cooperação internacional: apoia o compromisso de abordagens colaborativas em
pesquisa e governança que respeite os diferentes contextos culturais. As
responsabilidades decorrentes desse princípio incluem: a) o respeito pelas
políticas públicas nacionais; b) a coordenação de procedimentos e standards
regulatórios onde seja possível; e c) a colaboração transnacional e a partilha
de dados entre diferentes comunidades científicas e autoridades responsáveis
pela regulação.
O surgimento do Crispr-Cas9
provocou um aumento de pesquisa nas novas aplicações biomédicas para o
tratamento e prevenção de doenças. Juntamente com tal desdobramento, essa nova
onda de tecnologia de edição de genes trouxe também uma nova série de novas
questões éticas que precisam ser enfrentadas, de modo que as possíveis
conquistas da tecnociência não se tornam verdadeiras ameaças à dignidade da
vida humana nem da humanidade futura.
Para concluir: perspectivas de esperança em vista do
futuro
Ao chegarmos ao término desta
reflexão que buscou tratar da ética científica em torno da técnica do
Crispr-Cas9, optamos por seguir a orientação do editorial da revista ‘The
Lancet’[30]
ao publicar o relatório da ANC e da ANM.
Uma primeira observação a ser
feita é que o report coloca uma grande ênfase na importante distinção a
respeito do objetivo-alvo em relação às células somáticas ou germinativas. A
grande maioria das pesquisas biomédicas básicas é feita com células somáticas,
não reprodutivas, como tais, e os riscos e preocupações éticas estão
delimitados somente ao indivíduo. Uma vez que o sistema Crispr-Cas9 partilha
muitas características com outros tipos de terapia gênica, a segurança e a
infraestrutura reguladoras que já existem podem fornecer uma fundamentação
suficiente para rapidamente mover a tecnologia no âmbito clínico.
De outro lado, a edição de
células germinativas abre um quadro completamente diferente e desconhecido, bem
como dilemas e perplexidades éticas. A edição de células germinativas tem um
grande apelo em termos de habilidade de ‘corrigir’ mutações genéticas presentes
nos genes das pessoas antes que estes genes sejam transmitidos à prole, com a
promessa de erradicar condições ou doenças hereditárias. Ocorre que essa
promessa é marcada por complexas questões éticas, entre elas: não é possível
saber alguns dos caminhos que a geração de descendentes viáveis poderia ser
afetada; como proceder quando o processo de edição não for bem-sucedido; bem
como as características ou qualidades presentes no próprio conceito de
enhancement como oposto a corrigir uma mutação prejudicial.
Embora o enhancement somático
possa ter um valor terapêutico para uma pessoa, o aprimoramento de
características ou capacidades por meio da edição de células germinativas levanta
questões sobre eugenia e torna visível uma série indesejável de repercussões,
tais como o tratamento que a sociedade daria aos indivíduos com deficiências,
que teriam um acesso injusto a tais tecnologias, na base do status
socioeconômico.
O documento da ANC e da ANM dos
EUA apresenta também recomendações para ir adiante com a edição do genoma
humano. Para tanto, deve-se buscar a promoção do bem-estar, o respeito, a
equidade, além de respeitar os princípios da transparência, do cuidado devido e
da ciência responsável para preservar o uso clínico e a pesquisa ética.
A cooperação internacional
exigirá um diálogo franco entre os países envolvidos, agências reguladoras e
comunidades científicas. Essas recomendações do report chegam em um momento
crucial, pois a corrida por resultados está em curso, a exemplo do primeiro
ensaio clínico usando a tecnologia Crispr-Cas9 para atingir células cancerosas
aprovado nos EUA e do primeiro gene injetado num paciente editado por esta
tecnologia na China.
A imediata aplicação clínica de
edição do genoma será em células somáticas humanas para o tratamento ou
prevenção de doenças e deficiências. De fato, tal pesquisa já está em testes
clínicos nos EUA. Quanto à edição de células germinativas (óvulos e
espermatozoides), não é o que se prevê neste momento. Os autores do report da
ANC e da ANM são cautelosos ao afirmar esse procedimento:
[...] não seria atualmente aprovado, devido à incerteza
a respeito da segurança e eficácia, a tecnologia está avançando rapidamente, e
a edição de células germinativas, pode, num futuro não muito distante,
tornar-se uma possibilidade realista que mereça serias considerações [...]
existem circunstancias em que a edição de células germinativas ou embriões,
podem ser a única e a opção mais aceitável para os pais que desejam ter uma
criança ao minimizar os riscos de transmitir uma séria doença ou deficiência.
Existe uma história de debate em torno da possibilidade de tornar as mudanças
hereditárias para o genoma humano. Por causa dos efeitos de tais mudanças serem
multigeracionais, quer sejam os benefícios potenciais, bem como os riscos podem
ser multiplicados28.
Não é à toa que mesmo os
cientistas mais entusiasmados envolvidos nessas pesquisas, ao se darem conta de
tamanho perigo, com essa alta possibilidade de riscos e danos potenciais serem
multiplicados hereditariamente, tornaram-se os primeiros a levantar a bandeira
de que precisamos de mais prudência, precaução e de um consenso de uma
moratória internacional. Nesse sentido, a edição genética torna-se também uma
questão de saúde e de política pública.
A humanidade necessita de uma
tecnociência responsável, respeitadora e protetora da vida, desde o âmbito
individual até o cósmico ecológico, e não de uma tecnociência manipuladora,
interessada unicamente na glória individual e nos interesses econômicos. Edgard
Morin, notável pensador e educador francês, diria que, com urgência, neste
momento, necessitamos de uma ciência com consciência[31].
Ou seja, os avanços da tecnociência, a respeito da edição genética, não podem
ocorrer sem um amplo consenso da sociedade, sem um engajamento equitativo das
diferentes vozes, pois o que está em jogo é a alteração da natureza humana e da
humanidade. Esse diálogo, portanto, deve levar em conta os saberes da técnica,
da ciência, da medicina, mas também as questões sociais, ambientais, éticas e
morais, o que compõe o que se classifica como bioética global.
A engenharia genética tem
provocado esperança e temor, de tecnofobia e de tecnoutopia na humanidade.
Contudo, uma abordagem prudente, que leve em conta as lições da história,
ajudará a mitigar tanto o alarmismo apocalíptico de um lado quanto o utopismo
ingênuo do outro, que caracterizam os debates hoje em torno das invocações
tecnologias genéticas.
[2] Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) -
Curitiba (PR), Brasil. anor.sganzerla@gmail.com
[3] Pontifícia Universidade Lateranense (PUL) - Roma,
Itália. (in memoriam)
[5] Pereira LV. Há 20 anos, nascia a ovelha Dolly,
primeiro mamífero clonado. A ovelha Dolly, 1º. Clone obtido a partir de célula
de animal adulto [internet]. A Folha de São Paulo. 2016 jun 5. [acesso em 2019
jul 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/07/1788716-ha-20-anos-nascia-a-ovelha-dolly-primeiro-mamifero-clonado.shtml
[6] Asimov I. O começo do fim. São Paulo: Círculo do
livro; 1977.
[7] Sampedro J. O homem decide seu destino biológico.
Começa o debate sobre a alteração do genoma humano [internet]. El Pais. 2005
mar 20. [acesso em 2019 jul 10]. Disponível em: http://brasil.elpais.com/2015/03/20/ciencia
[8] Brendan PF. Gene Editing: New Technology, Old Moral
Questions. The New Atlantis [internet]. 2016 [acesso em 2019 jul 12]; 3-15. Disponível
em: https://www.thenewatlantis.com/publications/gene-editing-new-technology-old-moral-questions
[9] Jonas H. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do
princípio responsabilidade. São Paulo: Paulus; 2013.
[10] Potter VR. Bioética ponte para o futuro. São Paulo:
Loyola; 2016.
[11] Leite M. Vinte anos de 'Gattaca' e os dilemas éticos
da era dos bebês transgênicos [internet]. A Folha de São Paulo. 2017 nov 26.
[acesso em 2019 jul 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/Lilustrissima/2017/11/1937931-vinte-anos-depois-de-gattaca-genes-perfeitos-seguem-longe-da-realidade.shtml
[12] Marchione M. China seems to confirm scientist's
gene-edited babies claim [internet]. The Associated Press. 2019 jan 21. [acesso
em 2019 jul 15]. Disponível em: https://www.ctvnews.ca/health/china-seems-to-confirm-scientist-s-gene-edited-babies-claim-1.4261767
[13] Liy MV. He Jiankui, um obcecado caçador de glórias
[internet]. El Pais. 2018 nov 28. [acesso em 2019 jul 1]. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/28/ciencia/1543426962_870111.html
[14] Belluck P. Cientistas criticam falta de regulamentação
para edição genética [internet]. O Estado de São Paulo. 2019 fev 10. [acesso em
2019 jul 10]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2018/11/cientista-chines-diz-ter-feito-os-primeiros-bebes-editados-geneticamente.shtml
[15] Shepherd C, Ruwitch J. Cientistas chineses repudiam
suposta edição genética feita por pesquisador local [internet]. Reuters. 2018
nov 27. [acesso em 2019 jul 15]. Disponível em: https://br.reuters.com/article/worldNews/idBRKCN1NW188-OBRWD
[16] Pluvinage JF, Fonseca O, Velho R. Tecnologia inova na
edição de genes e desafia limites éticos. Ciênc. cult. (São Paulo). [internet].
2018 [acesso em 2019 jul 14]; 70(1). Disponível em:
http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252018000100007
[17] Alves G. Conheça o Crispr: técnica de edição do DNA
que promete mudar o mundo [internet]. A Folha de São Paulo. 2016 abr 15.
[acesso em 2019 jul 14]. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2016/04/1764258-conheca-o-crispr-tecnica-de-edicao-do-dna-que-promete-mudar-o-mundo.shtml
[18] Liang P, Xu Y, Zhang X, et al. Crispr/Cas9: mediated
gene editing in human tripronuclear zygotes. Protein Cell (Online). [internet].
2015 [acesso em 2019 jul 13]; 6(5):363-372. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s13238-015-0153-5
[19] Lanphier E, Urnov F, Haecker SE, et al. Do not edit
the human germ line. Nature [internet]. 2015 [acesso em 2019 jul 11];
519(7544):410-411. Disponível em: https://www.nature.com/news/don-t-edit-the-human-germ-line-1.17111
[20] Lander E, Baylis F, Zhang F, et al. Adopt a moratorium
on heritable genome editing. Nature [internet]. 2019 [acesso em 2019 jul 13];
567:165-168. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-019-00726-5
[21] Reardon S. World Health Organization penel weighs in
on CRISPR-babies debate. Nature [internet]. 2019 [acesso em 2019 jul 13].
Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-019-00942-z
[22] Guimaraes M. Uma ferramenta para editar o DNA. Sistema
copiado de bactérias, CRISPR-Cas9 pode catalisar descobertas em biologia e
medicina e suscita temores éticos. Pesquisa Fapesp [internet]. 2016 [acesso em
2019 jul 11]; 240:38-41. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/2016/02/19/uma-ferramenta-para-editar-o-dna/
[23] Shendure J, Balasubramanian S, Church GM, et al. DNA
sequencing at 40: past, present and future. Nature [internet]. 2017 [acesso em
2019 jul 10]; 550:345-353. Disponível em: https://www.nature.com/articles/nature24286
[24] Sganzerla A, Rohregger R. Prudência: a virtude da
bioética na civilização tecnológica. Thaumazein [internet]. 2017 [acesso em
2019 jul 13]; 10(19):67-74. Disponível em: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/thaumazein/article/view/1981/pdf_1
[25] Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura. Universal Declaration on the Human Genome and Human
Rights: from theory to practice [internet]. Paris: Unesco; 1997. [acesso em
2019 jul 12]. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000122990
[26] Jonas H. O princípio responsabilidade: ensaios de uma
ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio;
2006.
[27] Schaffer KA, Wu WH, Colgan DF, et al. Unexpected
mutations after CRISPR-Cas9 editing in vivo. Nat. methods. [internet]. 2017
[acesso em 2019 jul 12]. 14:457-548. Disponível em: https://www.nature.com/articles/nmeth.4293
[28] George QB, Robin LB, Steffan J. After the Storm: a
Responsible Path for Genome Editing. N. Engl. j. med. [internet]. 2019 [acesso
em 2019 jul 13]; 380:1-10. Disponível em: https://www.nejm.org/doi/full/10.1056/NEJMp1900504
[29] National Academy of Sciences & National Academy of
Medicine. Human Genome Editing: Science, Ethics and Governance Washington.
Washington: National Academies Press; 2017.
[30] Safeguarding the future of human gene editing
[editorial]. Lancet [internet]. 2017 [acesso em 2019 jul 10]; 389(10070):671.
Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)30389-6/fulltext
[31] Morin E. Ciência com consciência. 15. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil; 2013.
Nenhum comentário:
Postar um comentário