sexta-feira, 26 de maio de 2023

DORIAN GRAY E O REFLEXO DE NOSSOS ATOS[1]

 


Marcelo Anátocles Ferreira - maio/2023

 

O escritor inglês Oscar Wilde criou um intrigante personagem: Dorian Gray[2], que vive uma dualidade angustiante. Por um processo misterioso, ele consegue um quadro pintado com o seu próprio rosto e com a seguinte característica: na pintura ele envelhece, enquanto permanece jovem na vida real. Tinha Dorian Gray uma expressão pura, quase angelical, que é retratada na pintura inicial.

Ao longo da história, ele sofre ao perceber que seu rosto no quadro vai perdendo a pureza na medida em que pratica atos reprováveis.  As marcas dos seus equívocos deformam seu rosto na pintura e as características da vileza vão marcando negativamente o retrato, apesar de, fisicamente, ele permanecer com a expressão original. Aí surge a angústia do personagem: por que não manteve sua beleza original? Seria possível recuperá-la também no quadro? Vale a pena conhecer a obra para saber como isso termina.

Devemos refletir como nossos atos, positivos ou não, marcam a nossa existência e como podemos buscar o caminho do embelezamento da alma, mesmo não dispondo de um retrato como o do personagem de Oscar Wilde.

Aprendemos, na Doutrina Espírita, que fomos criados por Deus, simples e ignorantes e que, através de múltiplos renascimentos, vamos evoluindo. Assim ampliamos o conceito de nós mesmos para entender que somos imortais, com muitas vidas pretéritas, com uma excelente oportunidade no presente e com muitas vidas futuras que estamos a desenhar. Somos viajantes do tempo.

Aprendemos que a Lei da Evolução, que nos impulsiona para frente, está associada à Lei da Justiça, com a qual aprenderemos a andar corretamente. É a luta reencarnatória, cujo objetivo é a nossa evolução.

A ideia de justiça é dar a cada um o que lhe pertence, ou seja, dar a cada um segundo suas obras.

Tudo que ocorre em nossas vidas, de bom e de ruim, está vinculado a esse mecanismo de evolução e de causa e efeito, um processo pedagógico criado para o nosso aprendizado. Acertos e erros fazem parte de nosso crescimento.

Na atual fase evolutiva, temos o sofrimento muito presente em nossas vidas. Allan Kardec estuda esse tema em vários tópicos de sua obra. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo[3], nos apresenta as causas atuais e anteriores das nossas aflições e sua justiça. Parte de um pressuposto lógico básico. Deus é soberanamente justo e bom. Portanto, toda aflição tem que ter uma causa justa, atual ou remota.

Assim, vamos entendendo que tudo se encadeia e que todos os nossos atos têm consequências. As marcas de nossas ações não ficam em um retrato externo, como o de Dorian Gray, mas em nossa intimidade.

Em O Livro dos Espíritos[4], Allan Kardec indaga aos benfeitores onde está escrita a Lei de Deus, e a resposta é clara e objetiva: na consciência. É, portanto, também dentro de nós que fica arquivado o conjunto de nossos atos.

Quando agimos corretamente, temos reações positivas que nos estimulam a prosseguir fazendo o bem. Quando agimos em desacordo com a Lei de Deus, as consequências nos farão sofrer.

Nosso primeiro dever é despertar essa consciência.

Torres Pastorino[5], fala sobre esse despertar da consciência:

Somos como lâmpadas poderosíssimas e acesas, mas revestidas de grossa lama, que não deixa transparecer a luz que existe internamente.

Como retirar essa lama e deixar essa luz brilhar? Como despertar essa consciência e compreender melhor a Lei de Deus?

O benfeitor Camilo, através da abençoada mediunidade de Raul Teixeira, nos ensina[6]:

Representando o cerne da personalidade, a consciência se perpetua ao longo das diversas transformações por que passa a criatura. Mais adiante, acrescenta: Estando as leis de Deus na consciência, o espírito terá sempre a possibilidade de escolher, mensurar e avaliar suas ações, muito embora essa possibilidade esteja atrelada ao nível de progresso alcançado pelo ser espiritual.

Camilo prossegue ensinando que a Justiça Divina é perfeita justamente porque as avaliações de nossos atos são individuais e de acordo com nossa evolução, sendo apreciados todos os aspectos, quer da vontade, quer dos mais íntimos pensamentos.

Será na obra O Céu e o Inferno[7], que Allan Kardec aprofundará esse tema em  Código Penal da Vida Futura.

Logo no primeiro item, esclarece o Codificador que todo sofrimento está ligado a uma imperfeição. Por consequência, toda imperfeição leva ao sofrimento. Ao contrário, a perfeição, ou seja, os atos corretos, nos levam à felicidade e atenuam nosso sofrimento.

Quanto mais imperfeições, maiores os sofrimentos. Por outro lado, corrigidas as imperfeições e semeados atos nobres, minoramos os sofrimentos e caminhamos para a felicidade. O futuro feliz está nas mãos de cada um e a felicidade pode ser construída desde agora. Percebemos aí uma Pedagogia Divina, que nos educa através da perfeita Lei de Causa e Efeito.

O autoconhecimento provoca o almejado despertar da consciência. Fundamental o mergulho interior para entender se o sofrimento tem causa nesta ou em outra vida. E precisamos buscar a causa, a imperfeição, a falha de origem que causa o sofrimento. Corrigida a imperfeição, cessará o sofrimento.

O poeta Castro Alves, pelas mãos de Francisco Cândido Xavier, escreve[8]:

É a dor que através dos anos,

Dos algozes, dos tiranos,

Anjos puríssimos faz,

Transmutando os Neros rudes

Em arautos de virtudes,

Em mensageiros de Paz.

 

Aprendemos que[9]:

Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos esforços que faz para domar suas más inclinações.

Dessa forma, nesse mergulho interior e nessa transformação moral, transmutamos dor em aprendizado, despertando a consciência e embelezando a alma.

Kardec prossegue, apresentando um mapa para nossa felicidade. Ele nos fala do caminho da correção e de suas três fases: o arrependimento, a expiação e a reparação.

O arrependimento é a primeira etapa. É quando nos damos conta do equívoco, vemos que erramos e começamos a sofrer. Esse sofrimento é o início da expiação. A expiação, ensina Kardec, consiste nos sofrimentos físicos e morais consequentes do equívoco.

Aí vem a necessária reparação, que consiste em fazer o bem àqueles a quem havíamos feito mal. Como nem todas as faltas acarretam prejuízo direto e efetivo, a reparação se opera fazendo-se o que deveria ser feito e foi descurado, cumprindo os deveres desprezados, as missões não preenchidas.

O benfeitor Camilo[10] é claro:

[…] quando se agride a uma pessoa, em qualquer nível, ou por qualquer razão, é à lei divina que se está desatendendo. Mais adiante, prossegue: […]caberá ao ofensor dar conta do seu desequilíbrio ante a Consciência Cósmica, contra a qual agiu.

A nossa ação desequilibrada atinge a Lei de Deus, o que o benfeitor intitula Consciência Cósmica. Temos que reparar nossa ação perante essa Lei. Com relação aos nossos atos, preceitua Camilo6:

Um sistema perfeito de autoimpressão, à base de sutilíssimas energias, deixa registrado na viva tela perispiritual se o indivíduo deixou de agir consoante as leis sábias do Criador por imaturidade do senso moral, por falta de mais profunda percepção da consciência, ou por negligência, má vontade ou mesmo por maldade.

A reparação é o reequilíbrio perante essa Lei, com o apagar dessa marca.

De acordo com os ensinamentos de Kardec, o objetivo da dor é nos alertar para a imperfeição. Temos que reparar o equívoco justamente para que, através de atos positivos, seja possível atingir a perfeição, o correto.

O premiado filme Gandhi[11], mostra que Mahatma Gandhi fez greve de fome visando o cessar das agressões entre hindus e muçulmanos, provocadas por conflitos entre a Índia e o Paquistão. Várias pessoas se aproximavam do líder pacifista indiano e depunham as armas pedindo que ele parasse com a greve de fome. Em determinado momento, um hindu joga um pedaço de pão no rosto de Gandhi exigindo que ele o coma, porque não queria levar a morte dele para o inferno. Gandhi, com a voz muito fraca, pergunta porque ele iria para o inferno. O homem, expressando sofrimento, responde que, para vingar a morte de sua família pelos muçulmanos, tinha matado uma criança muçulmana. Gandhi lhe pergunta se ele queria a chave do céu, e, ante o silêncio, disse que procurasse e adotasse uma criança, da mesma idade da que tinha sido morta por ele. Mas que escolhesse uma criança muçulmana e a criasse com hábitos e cultura muçulmanos.

Vejamos a beleza do ensinamento: ao adotar uma criança, ele estaria equilibrando o ato de matar. Mas, como odiava os muçulmanos, ao criar uma criança muçulmana com hábitos e cultura muçulmanos, aprenderia a admirar aquele povo, o ódio terminaria e ele resolveria seu problema com a Lei de Deus. Seria feliz.

Kardec ensina que, nesse processo de aprendizado, quando buscamos corrigir a imperfeição e reparar o mal, devemos, preferencialmente, fazer o bem que tenha relação com o mal praticado, compensando-se e aprendendo de forma mais rápida e eficaz. Exatamente a fórmula apresentada por Gandhi ao homem em desespero.

Lembramos a máxima trazida por Pedro[12]:

Acima de tudo, tende amor intenso uns para com os outros porque o amor cobre a multidão dos pecados.

Será o aprendizado provocado pelo sofrimento somado, abreviado ou substituído pelo aprendizado trazido pelo amor que levará ao equilíbrio, ao reajuste com a Lei Divina e com a Consciência.

Para concluir, as palavras do Codificador[13], que resumem essas reflexões e apontam para o embelezamento pretendido por Dorian Gray e por todos nós:

O caminho da felicidade a todos se abre amplo, como a todos as mesmas condições para atingi-la. A lei, gravada em todas as consciências, a todos é ensinada. “Deus faz da felicidade o prêmio do trabalho e não do favoritismo, para que cada qual tivesse o seu mérito”.

Assim Allan Kardec encerra seu Código Penal da Vida Futura13:

A cada um segundo suas obras, no Céu como na Terra: – tal é a lei da Justiça Divina.



[1] MUNDO ESPÍRITA - Maio de 2023 Número 1666 Ano 91 - http://www.mundoespirita.com.br/?materia=dorian-gray-e-o-reflexo-de-nossos-atos

[2] WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril, 1981.

[3] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. V.

[4] ______. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB, 2013. pt. 3, cap. I, q. 621.

[5] PASTORINO, Carlos Torres. Sabedoria do Evangelho. Rio de Janeiro: Sabedoria, 1964. v. 1. Esquema eterno da missão de Jesus.

[6] TEIXEIRA, J. Raul. Justiça e Amor. Pelo espírito Camilo. Niterói: Fráter, 1996. cap. II, item 4.

[7] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, ou, A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. VII, item Código penal da vida futura.

[8] XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de Além-Túmulo. Por Diversos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1978. Marchemos!

[9] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. XVII, item 4.

[10] TEIXEIRA, J. Raul. Justiça e Amor. Pelo Espírito Camilo. Niterói: Fráter, 1996. cap. V, item 4.

[11] Gandhi. Filme. Dirigido por Richard Attenborough, 1982.

[12] BÍBLIA, N. T. I Pedro. Português. O novo testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1966. cap. 4, vers. 8.

[13] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, ou, A Justiça Divina Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. VII, item Código penal da vida futura.

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