Marcelo Anátocles Ferreira - maio/2023
O escritor inglês Oscar Wilde
criou um intrigante personagem: Dorian Gray[2],
que vive uma dualidade angustiante. Por um processo misterioso, ele consegue um
quadro pintado com o seu próprio rosto e com a seguinte característica: na
pintura ele envelhece, enquanto permanece jovem na vida real. Tinha Dorian Gray
uma expressão pura, quase angelical, que é retratada na pintura inicial.
Ao longo da história, ele sofre
ao perceber que seu rosto no quadro vai perdendo a pureza na medida em que
pratica atos reprováveis. As marcas dos
seus equívocos deformam seu rosto na pintura e as características da vileza vão
marcando negativamente o retrato, apesar de, fisicamente, ele permanecer com a
expressão original. Aí surge a angústia do personagem: por que não manteve sua
beleza original? Seria possível recuperá-la também no quadro? Vale a pena
conhecer a obra para saber como isso termina.
Devemos refletir como nossos
atos, positivos ou não, marcam a nossa existência e como podemos buscar o
caminho do embelezamento da alma, mesmo não dispondo de um retrato como o do
personagem de Oscar Wilde.
Aprendemos, na Doutrina
Espírita, que fomos criados por Deus, simples e ignorantes e que, através de
múltiplos renascimentos, vamos evoluindo. Assim ampliamos o conceito de nós
mesmos para entender que somos imortais, com muitas vidas pretéritas, com uma
excelente oportunidade no presente e com muitas vidas futuras que estamos a
desenhar. Somos viajantes do tempo.
Aprendemos que a Lei da
Evolução, que nos impulsiona para frente, está associada à Lei da Justiça, com
a qual aprenderemos a andar corretamente. É a luta reencarnatória, cujo
objetivo é a nossa evolução.
A ideia de justiça é dar a cada
um o que lhe pertence, ou seja, dar a cada um segundo suas obras.
Tudo que ocorre em nossas vidas,
de bom e de ruim, está vinculado a esse mecanismo de evolução e de causa e
efeito, um processo pedagógico criado para o nosso aprendizado. Acertos
e erros fazem parte de nosso crescimento.
Na atual fase evolutiva, temos o
sofrimento muito presente em nossas vidas. Allan Kardec estuda esse tema em
vários tópicos de sua obra. Em O Evangelho Segundo o Espiritismo[3],
nos apresenta as causas atuais e anteriores das nossas aflições e sua justiça.
Parte de um pressuposto lógico básico. Deus é soberanamente justo e bom.
Portanto, toda aflição tem que ter uma causa justa, atual ou remota.
Assim, vamos entendendo que tudo
se encadeia e que todos os nossos atos têm consequências. As marcas de nossas
ações não ficam em um retrato externo, como o de Dorian Gray, mas em nossa
intimidade.
Em O Livro dos Espíritos[4],
Allan Kardec indaga aos benfeitores onde está escrita a Lei de Deus, e a
resposta é clara e objetiva: na consciência. É, portanto, também dentro
de nós que fica arquivado o conjunto de nossos atos.
Quando agimos corretamente,
temos reações positivas que nos estimulam a prosseguir fazendo o bem. Quando
agimos em desacordo com a Lei de Deus, as consequências nos farão sofrer.
Nosso primeiro dever é despertar
essa consciência.
Torres Pastorino[5],
fala sobre esse despertar da consciência:
Somos como lâmpadas poderosíssimas e acesas, mas
revestidas de grossa lama, que não deixa transparecer a luz que existe
internamente.
Como retirar essa lama e deixar
essa luz brilhar? Como despertar essa consciência e compreender melhor a Lei de
Deus?
O benfeitor Camilo, através da
abençoada mediunidade de Raul Teixeira, nos ensina[6]:
Representando o cerne da personalidade, a consciência
se perpetua ao longo das diversas transformações por que passa a criatura. Mais
adiante, acrescenta: Estando as leis de Deus na consciência, o espírito terá
sempre a possibilidade de escolher, mensurar e avaliar suas ações, muito embora
essa possibilidade esteja atrelada ao nível de progresso alcançado pelo ser
espiritual.
Camilo prossegue ensinando que a
Justiça Divina é perfeita justamente porque as avaliações de nossos atos são
individuais e de acordo com nossa evolução, sendo apreciados todos os aspectos,
quer da vontade, quer dos mais íntimos pensamentos.
Será na obra O Céu e o
Inferno[7],
que Allan Kardec aprofundará esse tema em
Código Penal da Vida Futura.
Logo no primeiro item, esclarece
o Codificador que todo sofrimento está ligado a uma imperfeição. Por
consequência, toda imperfeição leva ao sofrimento. Ao contrário, a perfeição,
ou seja, os atos corretos, nos levam à felicidade e atenuam nosso sofrimento.
Quanto mais imperfeições,
maiores os sofrimentos. Por outro lado, corrigidas as imperfeições e semeados
atos nobres, minoramos os sofrimentos e caminhamos para a felicidade. O futuro
feliz está nas mãos de cada um e a felicidade pode ser construída desde agora.
Percebemos aí uma Pedagogia Divina, que nos educa através da perfeita
Lei de Causa e Efeito.
O autoconhecimento provoca o
almejado despertar da consciência. Fundamental o mergulho interior para
entender se o sofrimento tem causa nesta ou em outra vida. E precisamos buscar
a causa, a imperfeição, a falha de origem que causa o sofrimento. Corrigida a
imperfeição, cessará o sofrimento.
O poeta Castro Alves, pelas mãos
de Francisco Cândido Xavier, escreve[8]:
É a dor
que através dos anos,
Dos
algozes, dos tiranos,
Anjos
puríssimos faz,
Transmutando
os Neros rudes
Em
arautos de virtudes,
Em
mensageiros de Paz.
Aprendemos que[9]:
Reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua
transformação moral e pelos esforços que faz para domar suas más inclinações.
Dessa forma, nesse mergulho
interior e nessa transformação moral, transmutamos dor em aprendizado,
despertando a consciência e embelezando a alma.
Kardec prossegue, apresentando
um mapa para nossa felicidade. Ele nos fala do caminho da correção e de suas
três fases: o arrependimento, a expiação e a reparação.
O arrependimento é a primeira
etapa. É quando nos damos conta do equívoco, vemos que erramos e começamos a
sofrer. Esse sofrimento é o início da expiação. A expiação, ensina Kardec,
consiste nos sofrimentos físicos e morais consequentes do equívoco.
Aí vem a necessária reparação,
que consiste em fazer o bem àqueles a quem havíamos feito mal. Como nem todas
as faltas acarretam prejuízo direto e efetivo, a reparação se opera fazendo-se
o que deveria ser feito e foi descurado, cumprindo os deveres desprezados, as
missões não preenchidas.
O benfeitor Camilo[10]
é claro:
[…] quando se agride a uma pessoa, em qualquer nível,
ou por qualquer razão, é à lei divina que se está desatendendo. Mais adiante,
prossegue: […]caberá ao ofensor dar conta do seu desequilíbrio ante a
Consciência Cósmica, contra a qual agiu.
A nossa ação desequilibrada
atinge a Lei de Deus, o que o benfeitor intitula Consciência Cósmica.
Temos que reparar nossa ação perante essa Lei. Com relação aos nossos atos,
preceitua Camilo6:
Um sistema perfeito de autoimpressão, à base de
sutilíssimas energias, deixa registrado na viva tela perispiritual se o
indivíduo deixou de agir consoante as leis sábias do Criador por imaturidade do
senso moral, por falta de mais profunda percepção da consciência, ou por
negligência, má vontade ou mesmo por maldade.
A reparação é o reequilíbrio
perante essa Lei, com o apagar dessa marca.
De acordo com os ensinamentos de
Kardec, o objetivo da dor é nos alertar para a imperfeição. Temos que reparar o
equívoco justamente para que, através de atos positivos, seja possível atingir
a perfeição, o correto.
O premiado filme Gandhi[11],
mostra que Mahatma Gandhi fez greve de fome visando o cessar das agressões
entre hindus e muçulmanos, provocadas por conflitos entre a Índia e o
Paquistão. Várias pessoas se aproximavam do líder pacifista indiano e depunham
as armas pedindo que ele parasse com a greve de fome. Em determinado momento,
um hindu joga um pedaço de pão no rosto de Gandhi exigindo que ele o coma,
porque não queria levar a morte dele para o inferno. Gandhi, com a voz muito
fraca, pergunta porque ele iria para o inferno. O homem, expressando
sofrimento, responde que, para vingar a morte de sua família pelos muçulmanos,
tinha matado uma criança muçulmana. Gandhi lhe pergunta se ele queria a chave
do céu, e, ante o silêncio, disse que procurasse e adotasse uma criança, da
mesma idade da que tinha sido morta por ele. Mas que escolhesse uma criança
muçulmana e a criasse com hábitos e cultura muçulmanos.
Vejamos a beleza do ensinamento:
ao adotar uma criança, ele estaria equilibrando o ato de matar. Mas, como
odiava os muçulmanos, ao criar uma criança muçulmana com hábitos e cultura
muçulmanos, aprenderia a admirar aquele povo, o ódio terminaria e ele
resolveria seu problema com a Lei de Deus. Seria feliz.
Kardec ensina que, nesse
processo de aprendizado, quando buscamos corrigir a imperfeição e reparar o
mal, devemos, preferencialmente, fazer o bem que tenha relação com o mal
praticado, compensando-se e aprendendo de forma mais rápida e eficaz.
Exatamente a fórmula apresentada por Gandhi ao homem em desespero.
Lembramos a máxima trazida por
Pedro[12]:
Acima de tudo, tende amor intenso uns para com os
outros porque o amor cobre a multidão dos pecados.
Será o aprendizado provocado
pelo sofrimento somado, abreviado ou substituído pelo aprendizado trazido pelo
amor que levará ao equilíbrio, ao reajuste com a Lei Divina e com a
Consciência.
Para concluir, as palavras do
Codificador[13],
que resumem essas reflexões e apontam para o embelezamento pretendido por
Dorian Gray e por todos nós:
O caminho da felicidade a todos se abre amplo, como a
todos as mesmas condições para atingi-la. A lei, gravada em todas as
consciências, a todos é ensinada. “Deus faz da felicidade o prêmio do trabalho
e não do favoritismo, para que cada qual tivesse o seu mérito”.
Assim Allan Kardec encerra seu
Código Penal da Vida Futura13:
A cada um segundo suas obras,
no Céu como na Terra: – tal é a lei da Justiça Divina.
[1] MUNDO ESPÍRITA - Maio de 2023 Número 1666 Ano
91 - http://www.mundoespirita.com.br/?materia=dorian-gray-e-o-reflexo-de-nossos-atos
[2] WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. São Paulo:
Abril, 1981.
[3] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Brasília: FEB, 2013. cap. V.
[4] ______. O Livro dos Espíritos. Brasília: FEB,
2013. pt. 3, cap. I, q. 621.
[5] PASTORINO, Carlos Torres. Sabedoria do Evangelho. Rio
de Janeiro: Sabedoria, 1964. v. 1. Esquema eterno da missão de Jesus.
[6] TEIXEIRA, J. Raul. Justiça e Amor. Pelo espírito
Camilo. Niterói: Fráter, 1996. cap. II, item 4.
[7] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, ou, A Justiça Divina
Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. VII, item Código penal da
vida futura.
[8] XAVIER, Francisco Cândido. Parnaso de Além-Túmulo. Por
Diversos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1978. Marchemos!
[9] KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Brasília: FEB, 2013. cap. XVII, item 4.
[10] TEIXEIRA, J. Raul. Justiça e Amor. Pelo Espírito
Camilo. Niterói: Fráter, 1996. cap. V, item 4.
[11] Gandhi. Filme. Dirigido por Richard Attenborough,
1982.
[12] BÍBLIA, N. T. I Pedro. Português. O novo testamento. Tradução
de João Ferreira de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1966.
cap. 4, vers. 8.
[13] KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno, ou, A Justiça
Divina Segundo o Espiritismo. Brasília: FEB, 2013. cap. VII, item Código
penal da vida futura.
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