Silvio Seno Chibeni
1. Introdução
O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão
aquele que tudo tenha visto, pensado e aprofundado com a paciência e a
perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto
o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus
conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se
pode opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não
tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de
outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que pode indicar, para
os fatos apurados, causa mais lógica do que a que lhe apontou o Espiritismo.
Tal crítico ainda está por aparecer.
Allan Kardec, Le Livre des Médiuns , Parágrafo
14, n. 8.
Ao procurarmos aplicar esses
critérios para a caracterização de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um
daqueles que o pretendiam ser durante os mais de cento e vinte anos que se
passaram desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem
possibilidade de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda está para
aparecer", em patente demonstração da excelência metodológica do
Espiritismo, da solidez de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente
aos demais sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo objeto
de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento espiritual.
Essa tese foi tão lucidamente
defendida pelo próprio Kardec em várias de usas obras que consideram
redundantes quaisquer argumentações posteriores. Nosso propósito aqui será,
portanto, tão unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados
pelo Codificador da Doutrina Espírita, comentando-os dentro do contexto de
algumas dificuldades encontradas por alguns espíritas quando da análise
comparativa do Espiritismo com "sistemas" alternativos.
Não é inexpressivo o número de
indivíduos e instituições ditos espíritas empenhados na busca de
"novidades" que possam, segundo pensam, "atualizar" a
Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la às
conquistas da Ciência". Nesse sentido, procure ressaltar e dar cobertura −
inclusive através de jornais espíritas, ciclos de palestras etc. − a
pesquisadora das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles
detentores de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço
de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão
de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio
desenvolvimento da Doutrina e do conhecimento humano em geral.
2. O Espiritismo é científico
O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza,
origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.
Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme ,
Preâmbulo.
Evidentemente, o estatuto
científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de
se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza
intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.
A tarefa de determinar quais as
características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu
enquadramento na categoria de ciência cabe à subárea da Filosofia intitulada
Filosofia da Ciência . Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem
evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais
ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os
trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine,
Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na
concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito
frequente encontrar-se entre os não filósofos.
A compreensão dessa visão
"antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos
avançados por esses filósofos e das novas concepções que pro exigido requer
estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançado dentro de
um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos
ocasião de tentar fornecer uma tosca ideia dessas questões. Procuraremos aqui
relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente
argumentação.
Muito simplificadamente, eu
esperava dizer que pelo menos desde o iniciado da ciência moderna, por volta do
século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um
grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira
"espontânea" , certo e infalível, as leis gerais que o regem; a
reunião de tais leis constituitórias então uma teoria científica.
Conforme mencionamos, essa visão
"clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a
descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolvem
pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode
resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que seja;
que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma
estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas
naturezas, como resultados observacionais, hipóteses concebidas livremente,
regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas,
fragmentos de outras teorias etc.
Imre Lakatos sistematizou as
novas ideias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade
científica se desenvolva em torno do que denominou "programa científico de
pesquisa". Um tal programa de pesquisa consiste, em
termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas
básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses
auxiliares, que servem para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a
ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas
"heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica
de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva",
que é um conjunto de sugestões ou ideias de como mudar ou desenvolver o
cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique
os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito
"progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos,
que sejam por ele explicados; caso contrário,
Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos
programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um
núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da
gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda ser
mantida inalterada: as possibilidades discrepâncias com a experiência devem ser
eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor.
Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como
quando, no século XIX, se provou que as previsões teóricas para a trajetória do
planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de
imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se
que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do
planeta; mais tarde, foi, de fato, observou a existência desse corpo, o planeta
Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e
positiva do programa newtoniano levou à diversos desenvolvimentos: novas
teorias óticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos
ramos da Matemática etc. o programa tornou-se degenerante, por vários motivos
que não cabem expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias
da Relatividade e da Mecânica Quântica.
Olhando agora para o
Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de
pesquisa progressiva, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o
lakatosiano necessário.
Possui um núcleo rígido formado
pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária
de todas as coisas", dotada da suprema justiça e competência; pela lei de
causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada;
pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo.
Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de
assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a comunicar de fenômenos
de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos
seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses
fato, analisados extensivamente e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e
sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena,
torna inteligíveis, explica aqueles fatos.
Allan Kardec ouviu, em admirável
antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância
fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e dispendeu
extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos
iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma
obra prima de argumentação filosófica que, embora buscando a elucidação de uma
questão satisfaça diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto
que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:
É crença geral que, para convencer, basta apresentar
fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a
experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo encontra se
pessoas que os mais patenteiam fatos absolutamente não convenceram. A que se
deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.
No Parágrafo 29 Kardec volta ao
ponto:
Podemos dizer que, para a maioria dos que não se
preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto
mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis
conhecidas, maior oposição encontra e isto por uma razão muito simples: é que
todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional.
Cada um a considerar de seu ponto de vista e explica a seu modo [...].
Essa "sanção racional"
é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após
ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera,
por outro lado, que de dez pessoas novas que assistem a uma sessão de
experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais
incrédulas do que antes, por não ter as experiências correspondido ao que
esperavam". Prossegue então Kardec:
O inverso se dará com o que poderá compreender os
fatos, mediante conhecimento antecipado teórico. Para estas pessoas, a teoria
constitui um meio de verificação, sem que alguma coisa as surpreenda, nem mesmo
o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se cumprem e que não se
lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos
fatos não só como coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias,
mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às
vezes muito delicadas, que escapam ao observador ignorante.
Considerações interessantes
nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No
diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à
solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:
E julgais que é vos baste para poder, ex professo ,
falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda
mais, julgá-las, quando não estudar os princípios em que elas se baseiam? Como
apreciaríeis o resultado, forçado ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo,
não conhecendo a fundo a metalurgia?
Mais adiante, no diálogo com o
Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de assinatura")
Kardec coloca a questão em termos explícitos:
Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das
manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por
pessoas que ainda nada viram e acreditam tão firmemente como eu, pelo só estudo
que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é
acessório; o fundo é a doutrina, a ciência ; eles a parecem tão grandes, tão
racionais, que nela encontram tudo o que podem sentir às suas aspirações
interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não
existirem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor
resolver uma multidão de problemas reputados insolúveis.
Quantos me disseram que essas ideias estavam em germe
no seu cérebro, enquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio
coordená-las, dar-lhes corpo , e foi para eles como um raio de luz. É o que
explica o número de aprovados que a simples leitura de O Livro dos Espíritos
produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca teve passado
das mesas girantes e falantes?
A primeira sentença que
destacamos revela uma vez mais que Kardec localizou o caráter científico do
Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que,
no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos
denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.
Nosso segundo destaque mostra
que Kardec já entendia o papel da teoria como "corpo", ou seja,
coerência, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui
aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo
rígido.
No decorrer das próximas seções
a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberam
mais elementos de comprovação.
3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"
A frase que serve de título a
esta seção foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução ao
Estudo da Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar como introdução de O
Livro dos Espíritos . Esse item trata especificamente das relações entre a
Doutrina Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui como o conjunto
das leis ordinárias, "oficiais", das academias, tal como a Física, a
Química e a Biologia.
Apesar da clareza e da robustez
argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto, não somente nessa
seção de O Livro dos Espíritos, mas também em outras de suas obras,
especialmente em O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A
Gênese, Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente
observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação, mesmo por parte de
espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos que não acrescentando nada ao que
já disse o preclaro Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos.
Começaremos notando que a
afirmação de Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela palavra
portanto , o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente adotada,
Kardec sugere um argumento à assertiva, que, dado a sua importância, não
poderia ser postulado dogmaticamente .
Esse argumento encontra-se no
próprio Parágrafo que contém a assertiva em discussão:
As leis ordinárias assentam nas propriedades da
matéria, que se podem experimentar e manipular livremente; os fenômenos
espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que
nos provam a cada instante não se acharão subordinadas aos nossos caprichos. As
observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; condições especiais
e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos processos comuns de investigar
é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois,
como ciência, incompetente para pronunciar na questão do Espiritismo: não tem
que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, aceitar ou não,
nenhum peso poderá ter.
É admirável a simplicidade do
argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios diferentes de
fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento espiritual, a segunda aqueles
concernentes ao elemento material. Têm, portanto, métodos específicos e
objetivos distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.
Notamos que não se pode
confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência − o que procuramos mostrar na
seção anterior − com a assunção falsa de que ele pertence ao domínio da Ciência
(ou seja, da Física, da Química e da Biologia).
Um pouco adiante, Kardec
enfatiza:
Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos
se tivessem sido reduzidos ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da
causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém, desde que se
trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis de Humanidade,
ela escapa à competência da ciência material, visto não poder expressar-se nem
por algarismos, nem pela força mecânica.
Estudando domínios diferentes e
complementares, "O Espiritismo e a Ciência se completam
reciprocamente" , conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do
Capítulo I de A Gênese.
Antes de aceitarmos, vejamos
como Kardec reapresenta o argumento em estudo em O que é Espiritismo.
Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta resposta ao Crítico
(Cap. I, Primeiro Diálogo), Kardec lembra uma vez que
os fenômenos espíritas diferem essencialmente das
ciências exatas: não se processam à vontade; é preciso que os colhamos de
passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre uma porção de
provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando não se está conhecendo
com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o
espírito prevenido.
E, na resposta a seguir,
enfatize:
Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental
como se faz um de Física ou de Química, visto que nunca se é senhor de produzir
os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências que lhe são o agente
fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões.
No diálogo com o Céptico (Cap.
I, Segundo Diálogo, seção "Oposição da Ciência") Kardec enfoca outro
aspecto da questão, igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução de
O Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência da Ciência e do
Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas mais autorizados que as demais
pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo. Tal questão ainda é atual, já que
vemos muitos espíritos na posição em que Kardec situa o Céptico do diálogo:
afligem-se por buscar o apoio dos cientistas. "Admito perfeitamente",
diz o Céptico, "que eles não são infalíveis; mas não é menos verdade que,
em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa, e que, se ela estivesse
do seu lado, daria grande peso ao seu sistema".
A réplica de Kardec vem, como
sempre, vazada no bom senso e na lógica:
Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz
considerando que está fora da sua competência.
Se quiserdes edificar uma casa, confiaríeis esse
trabalho a um músico?
Se estiverdes enfermo, far-vos-ei tratar por um
arquiteto?
Quando estais a braços com um processo, ides consultar
um dançarino?
Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia,
alguém irá pedir uma solução a um químico ou a um astrônomo?
Não, cada um em sua especialidade.
As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da
matéria, que se podem, à vontade, manipular.; os fenômenos que ela produz têm
por agentes forças materiais.
Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que
possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitos aos nossos
caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos
nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência
propriamente dita.
A Ciência enganou-se quando quis experimentar os
Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedido, como devia ser,
porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais
longo, concluído pela negação, juízo temerário que o tempo se enche de ir
emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].
As fisiológicas não devem, nem jamais obrigatórias,
pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como
a decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.
Kardec mostrou que nem o estudo
do Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas em posição privilegiada
para ele opinar. Foi mesmo além: dada a invasiva que o envolvimento com sua
especialidade imposta à sua maneira de apreciar as coisas, suas opiniões podem
até mesmo estar mais sujeitas a equívocos. No referido item de O Livro dos
Espíritos Kardec considera:
Aquele que se fez especialista prende todas as suas ideias
à especialidade que adotou. Tirai-o daí e vereis sempre desarrazoar, por querer
submeter tudo ao mesmo cadinho: consequências da fraqueza humana.
Nada obsta, evidentemente, a que
os cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem e
avaliam nessa condição. Um pouco abaixo do trecho que acabamos de transcrever,
Kardec pronuncia-se nesse sentido:
O Espiritismo é o resultado de uma pessoa designada,
que os estudantes, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua
qualidade de cientistas [...].
Quando as crenças espíritas se houverem difundidas,
quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se farão com o
que têm aguardado com todas as ideias novas que hão encontrado oposição: os
cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, convidados, pela força das
coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais,
para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas
atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem
assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e
escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu
com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.
Ainda um último aspecto está
envolvido nas relações entre o Espiritismo e a Ciência: uma necessidade que ele
tem de não entrar em descompasso com o progresso científico.
O clássico local onde Kardec
tratou desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese. Começa
considerando que "apoiando-se em fatos [a revelação espírita] tem que ser,
e não pode deixar de ser, essencialmente progressivo". Esse caráter
essencial do Espiritismo resulta de sua natureza genuinamente científica:
embora o núcleo de seus princípios básicos mostrados inalterados,
complementações e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão guarda o
funcionamento sempre em concordância com as novas descobertas. É isso que se
tem verificado ao longo da história do Espiritismo. O núcleo doutrinário
fundamental conteúdo em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas
do próprio Kardec, transcendido e ampliado nos estudos que resultaram nas
demais obras da Codificação. Hoje em dia, uma vasta literatura mediúnica
legitimamente espírita ampliou, por exemplo, os informes sobre o mundo
espiritual. E isso, repetimos, sem confronto com os princípios básicos.
No entanto, é preciso cautela no
entendimento da progressividade do Espiritismo.
Primeiro, ela deve ocorrer de
acordo com a heurística positiva do próprio programa espírita, sem recurso a
elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua
tolerância.
Depois, a harmonia com as
conquistas da Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer preço,
visto estar ela, em suas proposições abstratas, constantemente sujeita a
enganos e retificações. Kardec sentiu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido
antes das grandes revoluções científicas do início de nosso século. No item de O
Livro dos Espíritos de que estamos tratando, encontramos este trecho:
Desde que a Ciência sai da observação material dos
fatos, para os apreciar e explicar, o campo está aberto às conjecturas [...].
Não vemos todos os dias como opiniões mais opostas sendo alternadamente preconizadas
e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos, para logo depois aparecerem
proclamadas como verdades incontestáveis?
Aliás, é interessante notar que
se Kardec não tinha imprimido ao programa espírita a independência e autonomia
que lhe imprimiu, ajustando-o, ao substituído, de modo irrestrito a graves
teorias científicas da época, ele teria, como consequências das aludidas
revoluções, soçobrado irremediavelmente.
Aparentemente, os que em nossos
dias advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda não se deram conta
desse fato, nem perceberam que no referido Parágrafo de A Gênese Kardec
deixou clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:
Entendendo com todos os ramos da economia social, aos
quais dá apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre
todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam
alcançado o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia , sem
o que ele suicidaria.
Notemos que o
"suicídio" do Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua
estagnação (aspecto esse sempre lembrado), mas também de sua assimilação de
doutrinas que não houve alcance do estado de "verdades práticas" (o
que em geral passa despercebido , por ter ficado implícito no texto).
Agora é certo que não há nenhum
princípio cientificamente estável, nenhuma "verdade prática", que o
Espiritismo não tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto,
improcedente os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.
4. As deficiências das chamadas "ciências psi"
Todas as teorias que pretendem elucidar os fenômenos
mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua cobertura e
falsidade.
Emanuel
Essa assertiva de Emmanuel, que
abre o Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica ( “Emmanuel”,
psicografado por Francisco Cândido Xavier), há mais de cinquenta anos, pode, a
alguns, parecer demasiadamente forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem
dito o iluminado Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos fatos.
As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda não alcançadas na época,
evidenciam inequivocamente a correção desse julgamento. É o que tentaremos
mostrar resumidamente nesta seção.
A primeira linha de pesquisa não
espírita dos fenômenos espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a
constituir uma "escola" foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas
duas primeiras décadas desse século e culminou com a publicação em Paris em
1922 do clássico “Traité de Métapsychique” , de Charles
Richet. Logo após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo
pioneiro foi o norte-americano J.B.
Rhine, que em 1937 publicou seu “New Frontiers of the Mind”. De lá para cá,
sob a inspiração dessa disciplina, floresceu e continuou surgindo, em
vertiginosa multiplicação, várias outras linhas de investigação dos chamados
"fenômenos paranormais". Talvez não seja exagero afirmar que elas são
quase tão numerosas quanto os investigadores, cada um com seu
"sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade, de ciências psi
o conjunto de tais sistemas, muito embora, como veremos, não sejam ciências
genuínas.
Entre os traços comuns dessas
disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade, a suposição de que
aderem ao "método científico", o emprego de métodos quantitativos e
de aparelhos, uma certa aversão a "teorias" etc.
Ocorreu que à época do
nascimento da Parapsicologia, ou seja, nas décadas de 20 e 30, a Filosofia da
Ciência vivia o apogeu do Positivismo Lógico. Essa doutrina filosófica
representou, por assim dizer, a tentativa suprema de articulação da visão
clássica de ciência, que mencionamos anteriormente. Em que pese o empenho dos
maiores filósofos da época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular e
definitiva, diante dos argumentos contra ele levantados, principalmente pelos
filósofos que citamos na seção 2 (“Reformador”, novembro de 1988, págs.
328-331) .
Apesar disso, tal foi a
intensidade desse movimento filosófico, que exerceu uma influência sem
precedentes sobre os cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso, perdurando
até nossos dias, com consequências funestas para a Ciência.
Inevitavelmente, a
Parapsicologia, que nasceu na época com pretensões à cientificidade, procurou
seguir a forma estrita dos cânones preconizados pelo Positivismo Lógico para a
caracterização de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com a Sociologia e
com a Psicologia, que também andavam à procura de cientificidade. A propósito,
é significativo o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido
psicólogos).
A consequência não poderia ser
outra: essa nova disciplina carregou consigo, desde a sua concepção, as
deficiências graves da visão lógico-positivista de ciência, vindo a adotar
métodos incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo um ideal de
cientificidade completamente ilusório. E atrás dela veio as demais, a despeito
da louvável boa intenção da maioria de seus profitentes.
Para ilustrar essa situação,
consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos em que incorretas
essas pretensas ciências.
a) Seguindo a velha
"receita", buscar coletar fatos sobre fatos, sem o auxílio de um
corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo e anticientífico é esse
procedimento, e quão bem Kardec compreendeu tal realidade.
b) Quando forçados são
dados, são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado" por uma
hipótese hipotética. Desse modo, mesmo se agruparmos artificialmente essas
hipóteses, não formaremos senão um todo inconsistente, o que viola a própria Lógica.
A filosofia moderna nem mesmo considera as emoções genuínas
"explicações" básicas dos fatos.
c) As tensões são, via de
regra, ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem explicar. Nas
admiráveis refutações aos contraditores do Espiritismo contidos em várias de
suas obras, notadamente em O que é o Espiritismo (Cap. I), O Livro
dos Médiuns (Primeira Parte, Cap. IV), O Céu e o Inferno (Primeira
Parte) e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI), Allan Kardec, com
a agudeza de espírito que o caracterizava, já apontava esse tipo de problema.
Na seção "Falsas animadas dos fenômenos", do primeiro desses livros,
Kardec pergunta:
Como podem fingir dar conta dos fenômenos espíritas
[através da hipótese da alucinação] sem serem capazes de explicar sua
explicação?
E mais adiante acrescenta:
É realmente curioso observar os contraditores empenhando-se
na busca de causas cem vezes mais extraordinárias e difíceis de compreender do
que aqueles que lhes apresentam o Espiritismo.
Outro tipo de pseudo-explicação
comumente encontrada são as motivações puramente nominais: carecem de qualquer
substância, consistindo exclusivamente do emprego de fraseologia excêntrica na
descrição dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no Parágrafo
que segue imediatamente ao que abre esta seção:
Em vão, procura-se complicar a questão com termos
rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas [...].
d) Quando
"teorias" são fornecidas, não dá conta de todos os fatos. Aqui também
Kardec já alertou ( O Livro dos Médiuns , Parágrafo 42):
O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder dar
razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela é falsa,
incompleta, ou por demais absoluta.
e) Muitos fatos
relevantes simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar:
i.
de ideias preconcebidas, como no caso
daqueles que negam a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto
não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse
problema atinge as raias do absurdo no horror que alguns investigadores têm
pelos médiuns - exatamente o manancial mais abundante de fenômenos de que se
dispõe!); ou
ii.
da falta de uma teoria que guie na busca
e análise dos fatos. Vimos acima com Kardec quão longe está o Espiritismo de
incorrer em enganos semelhantes.
f) Emprego de técnicas de
investigação especializadas. O caso típico e mais importante é o recurso ao
"método quantitativo". Como se sabe, tal método constitui uma das
maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências psi",
que julgam estar seguindo os afortunados caminhos da Física e da Química. Ora,
se indubitavelmente a análise das funções desempenhadas nessas ciências um
papel importante (embora não exclusivo!), não se segue daí que deva ser
igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos completamente
diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis (para dizermos
pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma
manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações
secundárias de episódios e coisas desconhecidas) por medidas de desvios
estatísticos em experimentos de identificação de cartas de baralho, ou semelhantes.
Não que estas últimas sejam irrelevantes; mas a evidência que pode dar é
imensamente mais fraca e duvidosa do que a que resulta das manifestações
espirituais, e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos através de
um médium possante. (Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que,
dispondo de um moderno canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)
Essa situação foi, como sempre,
percebida e combatida por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente a
importância crucial e a superioridade dos fenômenos mediúnicos de efeitos
inteligentes, como também se referiu explicitamente à inadequação dos métodos
quantitativos, conforme se observa nas traduções que foram feitas na seção 3,
em especial neste trecho de O que é o Espiritismo (destacamos):
[Os fenômenos espíritas] têm, como agentes,
inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitos aos
nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e
aos nossos cálculos [...]. A Ciência enganou-se quando quis experimentar os
Espíritos, como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedido como devia ser,
porque agiu pressupondo uma analogia que não existe.
Também no Item de O Livro dos
Espíritos que vimos analisando Kardec alerta (destacamos):
[As manifestações espíritas] escapam à competência da
ciência material, visto não poder expressar-se por algarismos, nem pela força
mecânica.
g) Recurso necessário e
perigoso para aparelhos sofisticados. Não obstante de valor inegável nas
pesquisas da matéria, como mostrar os notáveis avanços da Física e da
Química, a prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas
ficou evidenciada pelas considerações gastas no item anterior. Além disso, há
os mesmos riscos em sua utilização. Primeiro, tal uso pode encobrir
deficiências metodológicas profundas, produzindo uma impressão ilusória de
rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de vista
epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de
aparelhos ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que
podem ser alcançados de modo imediato. Assim,
Essas considerações epistemológicas explicam, por
sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais do
Espiritismo, quando comparadas aos das teorias científicas, pois repousam em
fenômenos extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau
de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de
papel diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados
etc. Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por
exemplo, aquela sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o
mecanismo das genéticas etc.
h) Referência a conceitos
e teorias científicas obsoletos. A Física deste século mudou, como já dissemos,
mudanças radicais em suas teorias, e consequentemente em nossa visão do mundo.
Conceitos que fizeram parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo
absolutos, ínfimos, campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos
profundamente, por não mais servirem às novas teorias, não dando conta dos
fenômenos observados. Assim, é inacreditável que haja pesquisador das
"ciências psi" tentando elaborar "teorias" e
"modelos" para o Espírito baseado em noções de partículas e campos, e
ainda mais, com a pretensão de estar seguindo a Ciência! Vemos aqui uma vez
mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao não vincularem os
princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções.
i) Desprezo pelo passado:
cada pesquisador em geral recomeçou a pensar a partir do "nada", como
se outros já não tivessem conseguido constatações dignas de confiança. Se a
dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida,
aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência
se tivesse adotado atitude semelhante, não se teria saído de sua pré-história.
j) Ignorância da cultura
dos fatores "morais" na produção de certos fenômenos. Kardec não
tardou a reconhecer, em seus estudos, as influências por vezes cruciais de
fatores ligados à harmonia de pensamento dos médiuns, experimentadores e
assistentes, aos objetivos a que se propõem, à sua condição moral etc. no
Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns , onde Kardec ressalta a
"enorme influência do meio sobre a natureza das manifestações
inteligentes" Parágrafo 233). Essa influência vem sendo também ilustrada e
enfatizada na boa literatura mediúnica, que nos mostra em detalhe a
complexidade do trabalho dos Espíritos na produção dos fenômenos. Assim, apenas
para tomar um dos vários exemplos, lembremos a descrição que André Luiz dá em Missionários
da Luz (Cap. X) da profunda perturbação causada nos trabalhos de
materialização a que presenciava pelo simples ingresso no recinto de um homem
interiormente desequilibrado, e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos
participantes da reunião. Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida
(destacamos):
Nestes fenômenos, André, os fatores morais constituem
elementos decisivos de organização. Não estamos diante de depressão de menor
esforço e, sim, ante manifestações sagradas da vida, em que não se pode
prescindir dos elementos superiores e da sintonia vibratória.
Também Emmanuel gasta
considerações desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro “Emmanuel”
(destacamos):
Não são poucos os estudiosos que procuram investigar os
domínios da ciência psíquica, na sede de encontrar o lado verdadeiro da vida;
porém, se muitas vezes acho apenas o malogro das suas expectativas, o soçobro
dos seus ideais, é que se entregam a estudos arriscados sem preparação prévia
para resolver tão altas questões, errando voluntariamente com espírito de
criticismo, muitas vezes injustificável, já que não é filho do pensamento
acurado, profundo. O êxito no estudo de problemas tão transcendentais exige a
utilização de fatores morais, encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos
e desejos que podem ser ardentes e sinceros.
5. O Espiritismo é religioso.
[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem
dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso
nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da
comunhão de pensamentos não em uma simples comunicação, mas sobre a mais sólida
das bases: as próprias leis da Natureza.
Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma
religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para expressar duas ideias
diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da
noção de culto, e evoca exclusivamente uma ideia de forma, com o que o
Espiritismo não guarda qualquer relação. Se público tivesse proclamado uma
religião, o nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se
quiséssemos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal
com seu cortejo de superiores, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das
ideias de misticismo e dos enganos contra os quais se estão bem instruídos.
Não apresentando nenhuma das características de uma
religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria
ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria
mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e
moral.
Allan Kardec
Do mesmo modo como tem havido
falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas
relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as
religiões também têm um ponto característico de confusões frequentes.
Assim como se pode mostrar ser o
Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por
estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio
Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com como
leis ordinárias.
Se no estabelecimento da
primeira dessas teses tivemos que identificar corretamente que características
de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que
estabelece critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito
religioso.
Essa tarefa deve começar pela
análise etimológica da palavra religião. Ela vem do Latim religione,
derivado de religare, que naturalmente significa "religar",
permanecendo, neste caso, subentendido que "religação" é da criatura
ao Criador.
Surge aqui a primeira diferença
entre o Espiritismo e as religiões ordinárias.
Estas usualmente entendem por
Deus um ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características
notoriamente antropomórficas.
Já o Espiritismo define-o como
"a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"( O
Livro dos Espíritos, Questão nº 1), dando-lhe por atributos exclusivamente
a eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência e a
soberana justiça e atração ( ibidem, Questão 13), o que evidentemente exclui
qualquer caráter antropomórfico.
A segunda diferença fundamental
está na maneira pela qual o Espiritismo entende que a religação entre uma
criatura e Deus pode e deve ser promovida.
Segundo as religiões ordinárias,
ela se dá através do ajuste da criatura a certas regras morais (éticas) e/ou da
satisfação de providências formais e externas de vária ordem, dependendo da
religião: batismo, crisma, comunhão, confissão; participação em cultos, rituais,
cerimônias; realização de certos gestos; recitação de fórmulas e rezas;
tratamento de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns;
trazer em si como "marcas de Deus" etc.
Já o Espiritismo propõe que a
religação da criatura ao Criador se faz exclusivamente pela adaptação de sua
conduta a certos preceitos morais, como medidas de ordem exterior sendo tidas
não somente como supérfluas, como também de todas as desaconselhadas e
combatidas.
A terceira diferença reside em
quais são as regras morais em questão.
O Espiritismo toma-as como
exclusivamente aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do
amor ao próximo.
Já as leis ordinárias podem,
dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas, ou inclui-las
parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou alterar-lhes a interpretação
original etc.
Por fim, a diferença crucial
surge no modo pelo qual essas regras éticas são justificadas .
As leis ordinárias
"justificam" as normas morais que propõem recorrer à autoridade desse
ou daquele indivíduo ou instituição; são dogmas, portanto artigos de fé a serem
aceitos sem exame.
Já o Espiritismo fundamenta o
corpo de seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente alcança das
consequências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres,
conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui
lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e
racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia
a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as
coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas
edificam ".
No artigo anterior ("Os
fundamentos da ética espírita"; ver Referência Bibliográfica.) expusemos
com certa extensão esse processo de fundamentação da moral espírita. Dada a
clara do tema, percorremos aqui algumas citações de Kardec, a fim de ilustrar o
ponto e deixar sua posição.
Nos comentários às Questões 147
e 148 de O Livro dos Espíritos, que tratam do materialismo, Kardec
refere-se à hipótese da aniquilação do ser com a morte corporal:
Triste consequências, se fora real, porque então o bem
e o mal não conseguiram objetivo, o homem estaria justificado em só pensar em
si e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres materiais; os laços
sociais se romperiam, e as mais santas afeições se quebrariam
irremediavelmente.
Passemos agora à Questão 222 do
mesmo livro, onde encontramos:
Ora, pois: se credes num futuro
qualquer, certo não admite que ele seja idêntico para todos, por enquanto, de
outro modo, qual a utilidade do bem? Por que haveria o homem de estranhar-se?
Por que deixaria de experimentar a todas as suas paixões, a todos os seus
desejos, ainda que à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria a
condição futura?
No Item IV da Conclusão dessa
obra Kardec é ainda mais explícito (destacamos):
O progresso da Humanidade tem seu princípio na
aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade. Tal lei se funda na certeza
do futuro ; tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa
lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas as condições da
felicidade do homem.
No Item VIII Kardec reitera:
Razão, portanto, tínhamos para dizer que o Espiritismo,
com os fatos, matou o materialismo. Fosse é o único resultado por ele produzido
e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém, faz mais: mostra os
inevitáveis efeitos do mal e, consequentemente, a necessidade do bem.
O Capítulo I de A Gênese
está repleto de considerações sobre essa fundamentação experimental-racional da
ética espírita. Recomendamos vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos 31,
32, 35, 37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva (destacamos):
Tirai ao homem o espírito livre e independente,
sobrevivente à matéria, e farei dele uma máquina simples organizada, sem
finalidade, nem responsabilidade [...].
No Parágrafo 42 encontramos:
Demais, se considera o poder moralizador do
Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as ações da vida, por tornar
tangíveis as consequências do bem e do mal [...].
No Parágrafo 56 Kardec volta ao
assunto, desta vez analisando as relações entre a moral evangélica e o
espírita, que, conforme observamos, coincidem quanto às normas morais
(destacamos):
O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do
Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e
os vivos, princípios que completam as noções vagas que forneceram da alma, de seu
passado e de seu futuro, e que não por sanção à doutrina cristã como próprias
leis da Natureza . Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os
Espíritos espargem, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres;
a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por
afetado o que fazia somente por dever, e o faz melhor.
Encerrando essas notáveis
citações de Kardec, que aliás poderia estender-se ainda muito, adentrando,
por exemplo, O Céu e o Inferno, obra completa dedicada ao estudo teórico
e experimental das explicações das ações humanas, voltamos ao comentário às
Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de
nosso ouro estas nossas reflexões:
[...] uma missão do Espiritismo consiste precisamente
em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o
toquemos com o dedo e penetraremos com o olhar, não mais pelo raciocínio
somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata
mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada uma
conjetura à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de
enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois são os
próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham,
relatam o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as
peripécias da nova vida que lá vive e mostrando-nos, por esse meio, a sorte
inevitável que nos está reservada, de acordo com os nossos méritos e deméritos,
isso é alguma coisa de antirreligioso? Muito ao contrário, por enquanto os
incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança.
O Espiritismo é, pois, o mais poderoso auxiliar da religião. Se ele aí está, é
porque Deus o permite e o permite para que as nossas esperanças vacilantes se
revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do
futuro.
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