sexta-feira, 31 de março de 2023

A PROVA DA RIQUEZA[1]

 


Juan Carlos Orozco

 

Pobres e ricos são Espíritos em provação, sendo que a indigência é uma prova dura e a riqueza é uma prova perigosa e muito arriscada, mais perigosa do que a miséria, pelos arrastamentos a que dá causa, pelas tentações que gera e pela fascinação que exerce.

A prova da riqueza não é fácil de ser vencida, pois ela pode estimular a exacerbação das más tendências e o predomínio das paixões inferiores.

O fato de a riqueza tornar difícil a prova de quem a recebe não quer dizer que será impossível superá-la, pois pode servir como meio de salvação àquele que souber dela dar utilidade edificante.

Pelas consequências que ela provoca, a prova da riqueza é um meio concedido por Deus para avaliar a sabedoria e a bondade do ser humano: uma forma de testar-lhe a capacidade moral mediante o uso correto da riqueza na prática do bem e da caridade. Nesse sentido, ela serve de instrumento para impulsionar o progresso espiritual, como tantos outros disponibilizados por Deus.

Em O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, temos alguns esclarecimentos a respeito da prova da riqueza em algumas questões:

 

261. Nas provações por que lhe cumpre passar para atingir a perfeição, tem o Espírito que sofrer tentações de todas as naturezas? Tem que se achar em todas as circunstâncias que possam excitar-lhe o orgulho, a inveja, a avareza, a sensualidade etc.?

Certo que não, pois bem sabeis haver Espíritos que desde o começo tomam um caminho que os exime de muitas provas. Aquele, porém, que se deixa arrastar para o mau caminho, corre todos os perigos que o inçam. Pode um Espírito, por exemplo, pedir a riqueza e ser-lhe esta concedida. Então, conforme o seu caráter, poderá tornar-se avaro ou pródigo, egoísta ou generoso, ou ainda lançar-se a todos os gozos da sensualidade. Daí não se segue, entretanto, que haja de forçosamente passar por todas estas tendências.

 

264. Que é o que dirige o Espírito na escolha das provas que queira sofrer?

Ele escolhe, de acordo com a natureza de suas faltas, as que o levem à expiação destas e a progredir mais depressa. Uns, portanto, impõem a si mesmos uma vida de misérias e privações, objetivando suportá-las com coragem; outros preferem experimentar as tentações da riqueza e do poder, muito mais perigosas, pelos abusos e má aplicação a que podem dar lugar, pelas paixões inferiores que uma e outros desenvolvem; muitos, finalmente, se decidem a experimentar suas forças nas lutas que terão de sustentar em contacto com o vício.

 

814. Por que Deus a uns concedeu as riquezas e o poder, e a outros, a miséria?

Para experimentá-los de modos diferentes. Além disso, como sabeis, essas provas foram escolhidas pelos próprios Espíritos, que nelas, entretanto, sucumbem com frequência.

 

815. Qual das duas provas é mais terrível para o homem, a da desgraça ou a da riqueza?

São-no tanto uma quanto outra. A miséria provoca as queixas contra a Providência, a riqueza incita a todos os excessos.

 

Na questão 816, Kardec comenta:

A riqueza e o poder fazem nascer todas as paixões que nos prendem à matéria e nos afastam da perfeição espiritual. Por isso foi que Jesus disse: ‘Em verdade vos digo que mais fácil é passar um camelo por um fundo de agulha do que entrar um rico no reino dos céus.

 

O apego aos bens materiais

Muitos depositam tudo na posse de bens materiais, apoderando-se deles como se fossem perenes, deixando-se levar pela ambição, pelo desejo insaciável de acumular bens de fortuna, sem edificar a futura morada pelos verdadeiros valores da vida eterna. Quando menos esperar, em meio aos ambiciosos planos, serão arrebatados para prestar contas da utilização dos bens concedidos pelo Pai.

O vínculo que prende o ser humano fortemente aos bens terrenos desvia-lhe os pensamentos do céu. O avarento será algemado às riquezas que amontoou.

Como depositário desses bens, o ser humano não tem o direito de os esbanjar e nem confiscar em seu proveito.

O amor aos bens terrenos constitui um dos mais fortes óbices ao vosso adiantamento moral e espiritual. Pelo apego à posse de tais bens, destruís as vossas faculdades de amar, com as aplicardes todas às coisas materiais. (...)

Nada vos pertence na Terra, nem sequer o vosso pobre corpo: a morte vos despoja dele, como de todos os bens materiais. Sois depositários e não proprietários, não vos iludais. Deus vo-los emprestou, tendes de lhes restituir; e Ele empresta sob a condição de que o supérfluo, pelo menos, caiba aos que carecem do necessário.

(Espírito Lacordaire. Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo XVI. Desprendimento dos bens terrenos.)

Os bens da Terra pertencem a Deus, que os distribui a seu grado, não sendo o homem senão o usufrutuário, o administrador mais ou menos íntegro e inteligente desses bens.

(M., Espírito protetor. Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo XVI. A verdadeira propriedade.)

Se Deus lhe outorgou o poder e a riqueza, considera essas coisas como UM DEPÓSITO, de que lhe cumpre usar para o bem. Delas não se envaidece, por saber que Deus, que lhas deu, também lhas pode retirar.

(Allan Kardec. O Livro dos Espíritos. Comentário à questão 918.)

 

O desapego aos bens terrenos

O desapego aos bens terrenos consiste em apreciá-los no seu justo valor, em saber servir-se deles em benefício dos outros e não apenas em benefício próprio, em não sacrificar por eles os interesses da vida futura, em perdê-los sem murmurar, caso apraza a Deus retirá-los.

(Espírito Lacordaire. Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo XVI. Não se pode servir a Deus e a Mamon: desprendimento dos bens terrenos.)

Deve-se ponderar que há bens infinitamente mais preciosos do que os da Terra e essa ideia ajudará a se desprender deles.

 

Os bens celestiais

Possuir riquezas terrenas não são condições essenciais para a busca da felicidade.

Devemos acumular os tesouros celestiais e aproveitar as oportunidades que Deus nos oferece para fazer bom uso dos bens materiais concedidos temporariamente como meios de impulsionar a nossa evolução intelectual, moral e espiritual.

Jesus nos adverte de que a verdadeira finalidade da vida terrena é obter a riqueza espiritual. Tão logo chegarmos a compreender que a real felicidade não consiste na posse transitória das coisas do mundo, de bom grado passaremos a trabalhar ativamente para entrarmos na posse dos bens espirituais.

Allan Kardec esclarece:

Se a riqueza é causa de muitos males, se exacerba tanto as más paixões, se provoca mesmo tantos crimes, não é a ela que devemos inculpar, mas ao homem, que dela abusa, como de todos os dons de Deus. Pelo abuso, ele torna pernicioso o que lhe poderia ser de maior utilidade. É a consequência do estado de inferioridade do mundo terrestre. Se a riqueza somente males houvesse de produzir, Deus não a teria posto na Terra. Compete ao homem fazê-la produzir o bem. Se não é um elemento direto de progresso moral, é, sem contestação, poderoso elemento de progresso intelectual.

(O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo XVI. Utilidade providencial da riqueza: provas da riqueza e da miséria.)

 

Emprego da riqueza

Sendo o homem o depositário, o administrador dos bens que Deus lhe pôs nas mãos, contas severas lhe serão pedidas do emprego que lhes haja Ele dado, em virtude do seu livre-arbítrio. O mau uso consiste em os aplicar exclusivamente na sua satisfação pessoal; bom é o uso, ao contrário, todas as vezes que deles resulta um bem qualquer para outrem. O merecimento de cada um está na proporção do sacrifício que se impõe a si mesmo. A beneficência é apenas um modo de empregar-se a riqueza; ela dá alívio à miséria presente; aplaca a fome, preserva do frio e proporciona abrigo ao que não o tem. Dever, porém, igualmente imperioso e meritório é o de prevenir a miséria.

(Fenelon. Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo XVI. Não se pode servir a Deus e a Mamon: emprego da riqueza.)

 

Consequências do mau uso da riqueza

Os sofrimentos devidos a causas anteriores à existência presente, como os que se originam de culpas atuais, são muitas vezes a consequência da falta cometida, isto é, o homem, pela ação de uma rigorosa justiça distributiva, sofre o que fez sofrer aos outros. Se foi duro e desumano, poderá ser a seu turno tratado duramente e com desumanidade; se foi orgulhoso, poderá nascer em humilhante condição; se foi avaro, egoísta, ou se fez mau uso de suas riquezas, poderá ver-se privado do necessário; se foi mau filho, poderá sofrer pelo procedimento de seus filhos etc.

(Allan Kardec. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Capítulo V. Bem-aventurados os aflitos: causas anteriores das aflições.)

 

A prova da riqueza de Antônio Luiz Sayão, por discípulo Max

Antônio Luiz Sayão pediu ao nosso Criador a maior e a mais perigosa das provas que pode um Espírito pedir: a riqueza material, comprometendo-se, porém, a adquiri-la à custa de muito trabalho e a fazer-se espírita, para pregar a Doutrina de Jesus, pelos exemplos de toda ordem, notadamente pelo desprendimento dos bens terrestres, que lhe fossem proporcionados pela riqueza adquirida. E, de fato, é a riqueza a prova mais perigosa e o compromisso mais sério que pode um Espírito tomar, pelos embaraços cruéis que lhe opõem os dois grandes inimigos da alma: o orgulho e a vaidade, além das exigências a que todo instante nos obriga uma sociedade, como a nossa, sem crença e sem moral!

(Antônio Luiz Sayão. Elucidações evangélicas. O autor da obra. Discípulo de Max.)

 

 

Mensagem final

O Espírito Joanna de Ângelis, em “Vida feliz”, psicografia de Divaldo Pereira Franco, no capítulo LXI, ensina:

A tua posse em relação aos bens terrestres é relativa.

Num mundo transitório, no qual tudo passa, o que agora te pertence amanhã terá mudado de mãos.

Usa, mas não abusa dos recursos de que disponhas.

Não te escravizes ao que deténs por momentos, evitando-te sofrimentos quando se transfiram para outrem.

Os únicos bens de duração permanente são os tesouros dos sentimentos, da cultura e das virtudes.

Acumula tesouros no céu, ensina o Evangelho.

 

Bibliografia:

§  ÂNGELIS, Joanna de (Espírito); na psicografia de Divaldo Pereira Franco. Vida feliz. 18ª Edição. Salvador/BA: LEAL, 2020.

§  KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

§  KARDEC, Allan; tradução de Guillon Ribeiro. O Livro dos Espíritos. 1ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.

§  SAYÃO, Antônio Luiz. Elucidações evangélicas à luz da Doutrina Espírita. 16ª Edição. Brasília/DF: Federação Espírita Brasileira, 2019.



[1] O CONSOLADOR - Ano 16 - N° 816 - 26 de Março de 2023 - http://www.oconsolador.com.br/ano16/816/especial.html

quinta-feira, 30 de março de 2023

LIMITE DO NECESSÁRIO[1]

 

The superfluous man


Miramez

 

Como pode o homem conhecer o limite do necessário?

Aquele que é ponderado o conhece por intuição. Muitos só chegam a conhecê-lo por experiência e à sua própria custa.

Questão 7l5/O Livro dos Espíritos

 

Conhecer os limites do necessário, abandonando o supérfluo, demanda tempo e espaço nos caminhos percorridos. O homem a quem falta experiência, como pode conhecer?

O Espírito mais ignorante precisa de experiências aliadas com a boa vontade para deduzir o que deve ser feito e os limites do que lhe convém. Entretanto, o Espírito mais evoluído conhece seus limites por intuição; já guarda na consciência todos os direitos e deveres nos seus caminhos a percorrer.

A vida escreve para as almas e ensina para todos os planos o modo pelo qual se pode e deve viver melhor. A Doutrina dos Espíritos vem, através dos seus inúmeros conceitos, para os homens reconhecerem a ponderação e seu valor, e nesse esforço para acertar, a intuição desabrocha pelos canais dos seus dons, indicando-Ihes pelos sentimentos o que devem fazer ou deixar de fazer.

A força poderosa que alinha as criaturas para o equilíbrio é o tempo; ele é luz do progresso para todos os Espíritos, porém, cabe a todos estimular seus dons espirituais e capacitar-se naquilo que for da sua ordem fazer. Deus nos deixou a nossa parte, e somente nós mesmos poderemos realizá-la. Convém ao homem estudar, meditar e trabalhar sem esquecer o exemplo de Jesus. O Mestre dos mestres é o inspirador divino para todas as criaturas do Seu rebanho de amor.

Lembremos o escrito de João, onde Jesus fala, nestes termos, anotados no capítulo nove, versículo cinco:

Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.

Enquanto Jesus Cristo está no mundo da consciência do discípulo, Ele é a luz da alma. Necessário se faz que despertemos o Cristo em nós e asseguremos este estado d'alma permanentemente na nossa intimidade, tendo a luz do mundo irradiando a felicidade pó coração e para os corações.

Busquemos, pois, a harmonia, porque ela nos garante o equilíbrio da vida, não nos deixando passar dos limites daquilo que devemos usar. O desperdício é falta grave que a natureza registra e depois nos cobra, porque ela é justiça em nossas vidas.

O mundo se encontra em desequilíbrio em todas as áreas e o fator principal é o supérfluo. Muitos sentem prazer no desperdício; enquanto muitos vivem dentro do supérfluo, outros passam necessidades daquilo que alguns deixam de usar, mas que retêm por vaidade e usura.

A natureza pode nos cobrar o que não deixamos os outros usarem e a dor pode ser a mensageira da justiça, indo ao nosso encontro. Procuremos na oração pedir a Deus para nos inspirar, no que deve ser feito, porque tudo é de Deus. O que usamos é puramente empréstimo, do qual, a qualquer hora, podem ser pedidas as contas.

O melhor para as almas, em todos os planos de vida, é compreender as leis de Deus na sua essência. O desrespeito à vontade divina nos faz sofrer as consequências. Apeguemo-nos à ponderação, que ela nos levará ao conhecimento mais depressa.

Todo exagero traz consigo sofrimentos, e o "conhece-te a ti mesmo" é o melhor para o Espírito saber usar os bens da vida, vivendo em paz consigo mesmo. Isso é amor, que tem o poder de desdobrar-se em variados caminhos para educar e instruir os filhos de Deus. O supérfluo é o grande desastre de todas as sociedades do mundo atual. Ele esconde o pão, a veste e o teto do carente e acumula onde não se precisa mais. Isso se chama egoísmo e orgulho, a dupla responsável pela miséria em todas as nações conhecidas.



[1] Filosofia Espírita – Volume 15 – João Nunes Maia

quarta-feira, 29 de março de 2023

A EXCELÊNCIA METODOLÓGICA DO ESPIRITISMO[1]

 


Silvio Seno Chibeni

 

1. Introdução

O Espiritismo não pode considerar crítico sério senão aquele que tudo tenha visto, pensado e aprofundado com a paciência e a perseverança de um observador consciencioso; que do assunto saiba tanto quanto o adepto mais esclarecido; que haja, por conseguinte, haurido seus conhecimentos algures, que não nos romances da ciência; aquele a quem não se pode opor fato algum que lhe seja desconhecido, nenhum argumento de que já não tenha cogitado e cuja refutação faça, não por mera negação, mas por meio de outros argumentos mais peremptórios; aquele, finalmente, que pode indicar, para os fatos apurados, causa mais lógica do que a que lhe apontou o Espiritismo. Tal crítico ainda está por aparecer.

Allan Kardec, Le Livre des Médiuns , Parágrafo 14, n. 8[2].

 

Ao procurarmos aplicar esses critérios para a caracterização de um crítico legítimo do Espiritismo a cada um daqueles que o pretendiam ser durante os mais de cento e vinte anos que se passaram desde que Allan Kardec os enumerou, verificamos, facilmente e sem possibilidade de erro, que mesmo hoje tal crítico "ainda está para aparecer", em patente demonstração da excelência metodológica do Espiritismo, da solidez de seus fundamentos, de sua superioridade relativamente aos demais sistemas, doutrinas, teorias que com ele têm em comum o mesmo objeto de estudo, ou seja, a existência e a natureza do elemento espiritual.

Essa tese foi tão lucidamente defendida pelo próprio Kardec em várias de usas obras que consideram redundantes quaisquer argumentações posteriores. Nosso propósito aqui será, portanto, tão unicamente o de relembrar alguns dos aspectos já considerados pelo Codificador da Doutrina Espírita, comentando-os dentro do contexto de algumas dificuldades encontradas por alguns espíritas quando da análise comparativa do Espiritismo com "sistemas" alternativos.

Não é inexpressivo o número de indivíduos e instituições ditos espíritas empenhados na busca de "novidades" que possam, segundo pensam, "atualizar" a Doutrina, dar-lhe "fundamentação científica", "harmonizá-la às conquistas da Ciência". Nesse sentido, procure ressaltar e dar cobertura − inclusive através de jornais espíritas, ciclos de palestras etc. − a pesquisadora das chamadas "ciências psi", notadamente aqueles detentores de títulos acadêmicos. Tentaremos, dentro das limitações de espaço de um artigo, mostrar que tais atitudes decorrem de uma injustificável inversão de valores, prejudicial tanto ao Movimento Espírita como ao próprio desenvolvimento da Doutrina e do conhecimento humano em geral.

 

2. O Espiritismo é científico

O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal.

Allan Kardec, Qu'est-ce que le Spiritisme , Preâmbulo.

 

Evidentemente, o estatuto científico de uma teoria não pode ser decidido através da mera deliberação de se definir como uma "ciência". Esse atributo é inerente à natureza intrínseca da teoria, e não à denominação que se lhe dê.

A tarefa de determinar quais as características de uma teoria são necessárias e suficientes ao seu enquadramento na categoria de ciência cabe à subárea da Filosofia intitulada Filosofia da Ciência . Essa disciplina, assim como outros ramos do saber, vem evoluindo constantemente. Em seu caso específico, progressos essenciais ocorreram no século XX, e , mais acentuadamente, a partir da década de 60. Os trabalhos de vários filósofos, entre os quais Karl Popper, Willard Quine, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend e Imre Lakatos, evidenciaram graves problemas na concepção de ciência que prevaleceu durante séculos, e ainda hoje é muito frequente encontrar-se entre os não filósofos.

A compreensão dessa visão "antiga" de ciência, de suas várias dificuldades, dos argumentos avançados por esses filósofos e das novas concepções que pro exigido requer estudos especializados de muitos anos, não podendo pois ser avançado dentro de um artigo, por maior que seja sua extensão. Em trabalho anterior tivemos ocasião de tentar fornecer uma tosca ideia dessas questões. Procuraremos aqui relembrar algo do que ali foi exposto, a fim de dar substância à nossa presente argumentação[3].

Muito simplificadamente, eu esperava dizer que pelo menos desde o iniciado da ciência moderna, por volta do século XVII, acreditava-se que a Ciência consistia na catalogação neutra de um grande número de "fatos", dos quais então resultariam, de maneira "espontânea" , certo e infalível, as leis gerais que o regem; a reunião de tais leis constituitórias então uma teoria científica.

Conforme mencionamos, essa visão "clássica" de ciência mostrou-se insustentável. Percebeu-se que a descrição, busca e classificação dos fatos necessariamente envolvem pressuposições teóricas de um tipo ou de outro; que nenhuma lei teórica pode resultar lógica e infalivelmente de um conjunto de fatos, qualquer que seja; que uma teoria científica não é um simples amontoado de leis, sendo, antes, uma estrutura dinâmica complexa, na qual participam elementos de diversas naturezas, como resultados observacionais, hipóteses concebidas livremente, regras para o desenvolvimento futuro da teoria, decisões metodológicas, fragmentos de outras teorias etc.

Imre Lakatos sistematizou as novas ideias surgidas na Filosofia da Ciência, propondo que a atividade científica se desenvolva em torno do que denominou "programa científico de pesquisa"[4].  Um tal programa de pesquisa consiste, em termos simplificados, de um "núcleo rígido" de hipóteses teóricas básicas, suplementado por um "cinturão protetor" de hipóteses auxiliares, que servem para ligar e ajustar o núcleo aos fenômenos de que a ciência trata. A cada programa ainda estão associadas duas "heurísticas", uma "negativa", que é a decisão metodológica de se manter inalteradas as hipóteses do núcleo, e outra "positiva", que é um conjunto de sugestões ou ideias de como mudar ou desenvolver o cinturão protetor de modo que o programa dê conta de novos fenômenos e explique os já conhecidos de maneira mais precisa. Um programa de pesquisa é dito "progressivo" caso leve sistematicamente à descoberta de novos fatos, que sejam por ele explicados; caso contrário,

Tomando o exemplo de um dos mais bem sucedidos programas de pesquisa da Física, a Mecânica Newtoniana, vemos que possui um núcleo rígido formado pelas três leis newtonianas do movimento e pela lei da gravitação universal, que a heurística negativa do programa recomenda ser mantida inalterada: as possibilidades discrepâncias com a experiência devem ser eliminadas através de ajustes nas hipóteses auxiliares do cinturão protetor. Esse processo ocorreu várias vezes durante o desenvolvimento do programa, como quando, no século XIX, se provou que as previsões teóricas para a trajetória do planeta Urano conflitavam com os dados da observação astronômica; ao invés de imputar esse desvio a possível falsidade das leis do núcleo rígido, assumiu-se que deveria existir um corpo celeste desconhecido perturbando a trajetória do planeta; mais tarde, foi, de fato, observou a existência desse corpo, o planeta Netuno. Assim como nesse episódio, a conjunção das heurísticas negativa e positiva do programa newtoniano levou à diversos desenvolvimentos: novas teorias óticas, novos aparelhos e técnicas de observação, criação de novos ramos da Matemática etc. o programa tornou-se degenerante, por vários motivos que não cabem expor aqui, vindo a ser substituído pelos programas das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica.

Olhando agora para o Espiritismo, vemos que traz em si todas as características de um programa de pesquisa progressiva, sendo, portanto, genuinamente científico, segundo o lakatosiano necessário.

Possui um núcleo rígido formado pelo princípio da existência de uma "inteligência suprema, causa primária de todas as coisas", dotada da suprema justiça e competência; pela lei de causa e feito; pela imortalidade dos seres vivos; por sua evolução ilimitada; pela existência do livre arbítrio, a partir de determinado estágio evolutivo. Desse núcleo pode-se, com o auxílio da lógica ("raciocínio") e de assunções auxiliares, deduzir ("explicar") a comunicar de fenômenos de que trata o Espiritismo: os fenômenos mediúnicos e anímicos, a evolução dos seres, seus estados psicológicos, sua condição após a morte etc. Todos esses fato, analisados ​​extensivamente e objetivamente pelo Espiritismo, embasam e sancionam o corpo de seus princípios teóricos; este, a seu turno, concatena, torna inteligíveis, explica aqueles fatos.

Allan Kardec ouviu, em admirável antecipação às conquistas recentes da Filosofia da Ciência, a importância fundamental dessa "simbiose" entre fenômeno e teoria, e dispendeu extensos comentários sobre ela em várias de suas obras. Os três capítulos iniciais da primeira parte de O Livro dos Médiuns, por exemplo, são uma obra prima de argumentação filosófica que, embora buscando a elucidação de uma questão satisfaça diferente, contém valiosos elementos relevantes ao assunto que estamos analisando. Comecemos por estas considerações do Parágrafo 19:

É crença geral que, para convencer, basta apresentar fatos. Esse, com efeito, parece o caminho mais lógico. Entretanto, mostra a experiência que nem sempre é o melhor, pois que a cada passo encontra se pessoas que os mais patenteiam fatos absolutamente não convenceram. A que se deve atribuir isso? É o que vamos tentar demonstrar.

No Parágrafo 29 Kardec volta ao ponto:

Podemos dizer que, para a maioria dos que não se preparam pelo raciocínio, os fenômenos materiais quase nenhum peso têm. Quanto mais extraordinários são esses fenômenos, quanto mais se afastam das leis conhecidas, maior oposição encontra e isto por uma razão muito simples: é que todos somos naturalmente a duvidar de uma coisa que não tem sanção racional. Cada um a considerar de seu ponto de vista e explica a seu modo [...].

Essa "sanção racional" é a que advém da explicação dos fatos através da teoria. No Parágrafo 34, após ressaltar a importância dos fatos na fundamentação da teoria, Kardec considera, por outro lado, que de dez pessoas novas que assistem a uma sessão de experimentação espírita "nove sairão sem estar convencidas e algumas mais incrédulas do que antes, por não ter as experiências correspondido ao que esperavam". Prossegue então Kardec:

O inverso se dará com o que poderá compreender os fatos, mediante conhecimento antecipado teórico. Para estas pessoas, a teoria constitui um meio de verificação, sem que alguma coisa as surpreenda, nem mesmo o insucesso, porque sabem em que condições os fenômenos se cumprem e que não se lhes deve pedir o que não podem dar. Assim, pois, a inteligência prévia dos fatos não só como coloca em condições de se aperceberem de todas as anomalias, mas também de apreenderem um sem número de particularidades, de matizes, às vezes muito delicadas, que escapam ao observador ignorante.

Considerações interessantes nesse mesmo sentido encontram-se também em O que é o Espiritismo. No diálogo com o Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo) Kardec pondera, em resposta à solicitação que este lhe faz de permissão para assistir a algumas experiências:

E julgais que é vos baste para poder, ex professo , falar de Espiritismo? Como poderíeis compreender essas experiências e, ainda mais, julgá-las, quando não estudar os princípios em que elas se baseiam? Como apreciaríeis o resultado, forçado ou não, de ensaios metalúrgicos, por exemplo, não conhecendo a fundo a metalurgia?

Mais adiante, no diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Elementos de assinatura") Kardec coloca a questão em termos explícitos:

Há duas coisas no Espiritismo: a parte experimental das manifestações e a doutrina filosófica. Ora, eu sou todos os dias visitado por pessoas que ainda nada viram e acreditam tão firmemente como eu, pelo só estudo que fizeram da parte filosófica; para elas o fenômeno das manifestações é acessório; o fundo é a doutrina, a ciência ; eles a parecem tão grandes, tão racionais, que nela encontram tudo o que podem sentir às suas aspirações interiores, à parte o fato das manifestações; do que concluem que, supondo não existirem as manifestações, a doutrina não deixaria de ser sempre a que melhor resolver uma multidão de problemas reputados insolúveis.

Quantos me disseram que essas ideias estavam em germe no seu cérebro, enquanto em estado de confusão. O Espiritismo veio coordená-las, dar-lhes corpo , e foi para eles como um raio de luz. É o que explica o número de aprovados que a simples leitura de O Livro dos Espíritos produziu. Acreditais que esse número seria o que é hoje, se nunca teve passado das mesas girantes e falantes?

A primeira sentença que destacamos revela uma vez mais que Kardec localizou o caráter científico do Espiritismo na "doutrina", na sua "parte filosófica", que, no contexto de nossa análise, deve ser entendido como aquilo a que vimos denominando "teoria". Os fatos em si não constituem a ciência.

Nosso segundo destaque mostra que Kardec já entendia o papel da teoria como "corpo", ou seja, coerência, inteligibilidade, aos fenômenos, que é a tarefa que Lakatos atribui aos princípios teóricos do programa de pesquisa, notadamente os de seu núcleo rígido.

No decorrer das próximas seções a tese da cientificidade do Espiritismo pela qual vimos argumentando receberam mais elementos de comprovação.

 

3. "O Espiritismo não é da alçada da Ciência"

A frase que serve de título a esta seção foi extraída do Item VII da magnífica peça "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", que Kardec fez figurar como introdução de O Livro dos Espíritos . Esse item trata especificamente das relações entre a Doutrina Espírita e a Ciência, devendo esta ser entendida aqui como o conjunto das leis ordinárias, "oficiais", das academias, tal como a Física, a Química e a Biologia[5].

Apesar da clareza e da robustez argumentativa com que Allan Kardec abordou esse assunto, não somente nessa seção de O Livro dos Espíritos, mas também em outras de suas obras, especialmente em O que é o Espiritismo, O Livro dos Médiuns e A Gênese, Os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, curiosamente observam-se ainda hoje muitos equívocos em sua apresentação, mesmo por parte de espíritas. Destarte, mais uma vez repetimos que não acrescentando nada ao que já disse o preclaro Codificador, mas apenas relembrando seus argumentos[6].

Começaremos notando que a afirmação de Kardec em consideração vem, no texto, precedida pela palavra portanto , o que mostra que, seguindo a regra que invariavelmente adotada, Kardec sugere um argumento à assertiva, que, dado a sua importância, não poderia ser postulado dogmaticamente .

Esse argumento encontra-se no próprio Parágrafo que contém a assertiva em discussão:

As leis ordinárias assentam nas propriedades da matéria, que se podem experimentar e manipular livremente; os fenômenos espíritas repousam na ação de inteligências dotadas de vontade própria e que nos provam a cada instante não se acharão subordinadas aos nossos caprichos. As observações não podem, portanto, ser feitas da mesma forma; condições especiais e outro ponto de partida. Querer submetê-la aos processos comuns de investigar é estabelecer analogias que não existem. A Ciência, propriamente dita, é, pois, como ciência, incompetente para pronunciar na questão do Espiritismo: não tem que se ocupar com isso e qualquer que seja o seu julgamento, aceitar ou não, nenhum peso poderá ter.

É admirável a simplicidade do argumento: o Espiritismo e a Ciência tratam de domínios diferentes de fenômenos: o primeiro dos relativos ao elemento espiritual, a segunda aqueles concernentes ao elemento material. Têm, portanto, métodos específicos e objetivos distintos, não cabendo, pois, julgamentos recíprocos.

Notamos que não se pode confundir o fato de o Espiritismo ser uma ciência − o que procuramos mostrar na seção anterior − com a assunção falsa de que ele pertence ao domínio da Ciência (ou seja, da Física, da Química e da Biologia).

Um pouco adiante, Kardec enfatiza:

Repetimos mais uma vez que, se os fatos a que aludimos se tivessem sido reduzidos ao movimento mecânico dos corpos, a indagação da causa física desse fenômeno caberia no domínio da Ciência; porém, desde que se trata de uma manifestação que se produz com exclusão das leis de Humanidade, ela escapa à competência da ciência material, visto não poder expressar-se nem por algarismos, nem pela força mecânica.

Estudando domínios diferentes e complementares, "O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente" , conforme destacadamente exarou Kardec no Parágrafo 16 do Capítulo I de A Gênese.

Antes de aceitarmos, vejamos como Kardec reapresenta o argumento em estudo em O que é Espiritismo. Ali, o assunto é tratado extensivamente. Na décima quinta resposta ao Crítico (Cap. I, Primeiro Diálogo), Kardec lembra uma vez que

os fenômenos espíritas diferem essencialmente das ciências exatas: não se processam à vontade; é preciso que os colhamos de passagem; é observando muito e por muito tempo que se descobre uma porção de provas que escapam à primeira vista, sobretudo, quando não se está conhecendo com as condições em que se pode encontrá-las, e ainda mais quando se vem com o espírito prevenido.

E, na resposta a seguir, enfatize:

Não se pode fazer um curso de Espiritismo experimental como se faz um de Física ou de Química, visto que nunca se é senhor de produzir os fenômenos espíritas à vontade, e que as inteligências que lhe são o agente fazem, muitas vezes, frustrarem-se todas as nossas previsões.

No diálogo com o Céptico (Cap. I, Segundo Diálogo, seção "Oposição da Ciência") Kardec enfoca outro aspecto da questão, igualmente já tratado no referido Item VII da Introdução de O Livro dos Espíritos. Estabelecida a independência da Ciência e do Espiritismo, resta ver se estariam os cientistas mais autorizados que as demais pessoas a se pronunciar sobre o Espiritismo. Tal questão ainda é atual, já que vemos muitos espíritos na posição em que Kardec situa o Céptico do diálogo: afligem-se por buscar o apoio dos cientistas. "Admito perfeitamente", diz o Céptico, "que eles não são infalíveis; mas não é menos verdade que, em virtude do seu saber, sua opinião vale alguma coisa, e que, se ela estivesse do seu lado, daria grande peso ao seu sistema".

A réplica de Kardec vem, como sempre, vazada no bom senso e na lógica:

Concordai, também, que ninguém pode ser bom juiz considerando que está fora da sua competência.

Se quiserdes edificar uma casa, confiaríeis esse trabalho a um músico?

Se estiverdes enfermo, far-vos-ei tratar por um arquiteto?

Quando estais a braços com um processo, ides consultar um dançarino?

Finalmente, quando se trata de uma questão de teologia, alguém irá pedir uma solução a um químico ou a um astrônomo?

Não, cada um em sua especialidade.

As ciências vulgares repousam sobre as propriedades da matéria, que se podem, à vontade, manipular.; os fenômenos que ela produz têm por agentes forças materiais.

Os do Espiritismo têm, como agentes, inteligências que possuem independência, livre-arbítrio e não estão sujeitos aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos, e, desde então, ficam fora dos domínios da Ciência propriamente dita.

A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedido, como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe; e depois, sem ir mais longo, concluído pela negação, juízo temerário que o tempo se enche de ir emendando diariamente, como já fez com tantos outros [...].

As fisiológicas não devem, nem jamais obrigatórias, pronunciar-se nesta questão; ela está tão fora dos limites do seu domínio como a decretar se Deus existe ou não; é, pois, um erro tomá-las aqui por juiz.

Kardec mostrou que nem o estudo do Espiritismo cabe à Ciência, nem estão os cientistas em posição privilegiada para ele opinar. Foi mesmo além: dada a invasiva que o envolvimento com sua especialidade imposta à sua maneira de apreciar as coisas, suas opiniões podem até mesmo estar mais sujeitas a equívocos. No referido item de O Livro dos Espíritos Kardec considera:

Aquele que se fez especialista prende todas as suas ideias à especialidade que adotou. Tirai-o daí e vereis sempre desarrazoar, por querer submeter tudo ao mesmo cadinho: consequências da fraqueza humana.

Nada obsta, evidentemente, a que os cientistas se interessem, enquanto homens, pelo Espiritismo, e o estudem e avaliam nessa condição. Um pouco abaixo do trecho que acabamos de transcrever, Kardec pronuncia-se nesse sentido:

O Espiritismo é o resultado de uma pessoa designada, que os estudantes, como indivíduos, podem adquirir, abstração feita de sua qualidade de cientistas [...].

Quando as crenças espíritas se houverem difundidas, quando estiverem aceitas pelas massas humanas [...], com elas se farão com o que têm aguardado com todas as ideias novas que hão encontrado oposição: os cientistas se renderão à evidência. Lá chegarão, convidados, pela força das coisas. Até então será intempestivo desviá-los de seus trabalhos especiais, para obrigá-los a se ocupar de um assunto estranho, que não lhes está nem nas atribuições, nem no programa. Enquanto isso não se verifica, os que, sem assunto prévio e aprofundado da matéria, se pronunciam pela negativa e escarnecem de quem não lhes subscrevem o conceito, esquecem que o mesmo se deu com a maior parte das grandes descobertas que fazem honra à Humanidade.

Ainda um último aspecto está envolvido nas relações entre o Espiritismo e a Ciência: uma necessidade que ele tem de não entrar em descompasso com o progresso científico.

O clássico local onde Kardec tratou desse ponto é o Parágrafo 55 do Capítulo I de A Gênese. Começa considerando que "apoiando-se em fatos [a revelação espírita] tem que ser, e não pode deixar de ser, essencialmente progressivo". Esse caráter essencial do Espiritismo resulta de sua natureza genuinamente científica: embora o núcleo de seus princípios básicos mostrados inalterados, complementações e ajustes nas assunções auxiliares do cinturão guarda o funcionamento sempre em concordância com as novas descobertas. É isso que se tem verificado ao longo da história do Espiritismo. O núcleo doutrinário fundamental conteúdo em O Livro dos Espíritos foi, nas mãos equilibradas do próprio Kardec, transcendido e ampliado nos estudos que resultaram nas demais obras da Codificação. Hoje em dia, uma vasta literatura mediúnica legitimamente espírita ampliou, por exemplo, os informes sobre o mundo espiritual. E isso, repetimos, sem confronto com os princípios básicos.

No entanto, é preciso cautela no entendimento da progressividade do Espiritismo.

Primeiro, ela deve ocorrer de acordo com a heurística positiva do próprio programa espírita, sem recurso a elementos estranhos, venham de onde vierem, sob o risco de este perder sua tolerância.

Depois, a harmonia com as conquistas da Ciência não deve ser buscada irrestritamente e a qualquer preço, visto estar ela, em suas proposições abstratas, constantemente sujeita a enganos e retificações. Kardec sentiu isso de maneira clara, mesmo tendo vivido antes das grandes revoluções científicas do início de nosso século. No item de O Livro dos Espíritos de que estamos tratando, encontramos este trecho:

Desde que a Ciência sai da observação material dos fatos, para os apreciar e explicar, o campo está aberto às conjecturas [...]. Não vemos todos os dias como opiniões mais opostas sendo alternadamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades incontestáveis?

Aliás, é interessante notar que se Kardec não tinha imprimido ao programa espírita a independência e autonomia que lhe imprimiu, ajustando-o, ao substituído, de modo irrestrito a graves teorias científicas da época, ele teria, como consequências das aludidas revoluções, soçobrado irremediavelmente.

Aparentemente, os que em nossos dias advogam a tese do "ajuste à Ciência" ainda não se deram conta desse fato, nem perceberam que no referido Parágrafo de A Gênese Kardec deixou clara uma ressalva vital, ao falar desse ajuste:

Entendendo com todos os ramos da economia social, aos quais dá apoio das suas próprias descobertas, [o Espiritismo] assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam alcançado o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia , sem o que ele suicidaria.

Notemos que o "suicídio" do Espiritismo adviria, segundo Kardec, não só de sua estagnação (aspecto esse sempre lembrado), mas também de sua assimilação de doutrinas que não houve alcance do estado de "verdades práticas" (o que em geral passa despercebido , por ter ficado implícito no texto).

Agora é certo que não há nenhum princípio cientificamente estável, nenhuma "verdade prática", que o Espiritismo não tenha ou assimilado, ou mesmo antecipado, sendo, portanto, improcedente os pruridos de reforma e atualização da Doutrina.

 

4. As deficiências das chamadas "ciências psi"

Todas as teorias que pretendem elucidar os fenômenos mediúnicos, alheias à Doutrina Espiritista, pecam pela sua cobertura e falsidade.

Emanuel

 

Essa assertiva de Emmanuel, que abre o Capítulo XIV do primeiro livro que nos legou por via mediúnica ( “Emmanuel”, psicografado por Francisco Cândido Xavier), há mais de cinquenta anos, pode, a alguns, parecer demasiadamente forte. No entanto, assim como tudo o que nos tem dito o iluminado Espírito, decorre de uma análise isenta e racional dos fatos. As conquistas recentes da Filosofia da Ciência, ainda não alcançadas na época, evidenciam inequivocamente a correção desse julgamento. É o que tentaremos mostrar resumidamente nesta seção.

A primeira linha de pesquisa não espírita dos fenômenos espíritas (anímicos e mediúnicos) que chegou a constituir uma "escola" foi a Metapsíquica, que se desenvolveu nas duas primeiras décadas desse século e culminou com a publicação em Paris em 1922 do clássico “Traité de Métapsychique” , de Charles Richet. Logo após, essa escola foi cedendo lugar à Parapsicologia, cujo pioneiro foi o norte-americano J.B. Rhine, que em 1937 publicou seu “New Frontiers of the Mind”. De lá para cá, sob a inspiração dessa disciplina, floresceu e continuou surgindo, em vertiginosa multiplicação, várias outras linhas de investigação dos chamados "fenômenos paranormais". Talvez não seja exagero afirmar que elas são quase tão numerosas quanto os investigadores, cada um com seu "sistema" próprio. Denominaremos aqui, por simplicidade, de ciências psi o conjunto de tais sistemas, muito embora, como veremos, não sejam ciências genuínas.

Entre os traços comuns dessas disciplinas, destacaríamos a pretensão à cientificidade, a suposição de que aderem ao "método científico", o emprego de métodos quantitativos e de aparelhos, uma certa aversão a "teorias" etc.

Ocorreu que à época do nascimento da Parapsicologia, ou seja, nas décadas de 20 e 30, a Filosofia da Ciência vivia o apogeu do Positivismo Lógico. Essa doutrina filosófica representou, por assim dizer, a tentativa suprema de articulação da visão clássica de ciência, que mencionamos anteriormente. Em que pese o empenho dos maiores filósofos da época, porém, tal programa malogrou de forma espetacular e definitiva, diante dos argumentos contra ele levantados, principalmente pelos filósofos que citamos na seção 2 (“Reformador”, novembro de 1988, págs. 328-331) .

Apesar disso, tal foi a intensidade desse movimento filosófico, que exerceu uma influência sem precedentes sobre os cientistas, a qual sobreviveu ao seu fracasso, perdurando até nossos dias, com consequências funestas para a Ciência.

Inevitavelmente, a Parapsicologia, que nasceu na época com pretensões à cientificidade, procurou seguir a forma estrita dos cânones preconizados pelo Positivismo Lógico para a caracterização de uma ciência. (Esse fenômeno ocorreu também com a Sociologia e com a Psicologia, que também andavam à procura de cientificidade. A propósito, é significativo o fato de Rhine e outros pioneiros da Parapsicologia terem sido psicólogos).

A consequência não poderia ser outra: essa nova disciplina carregou consigo, desde a sua concepção, as deficiências graves da visão lógico-positivista de ciência, vindo a adotar métodos incompatíveis com os fins a que se propõe, perseguindo um ideal de cientificidade completamente ilusório. E atrás dela veio as demais, a despeito da louvável boa intenção da maioria de seus profitentes.

Para ilustrar essa situação, consideremos agora alguns exemplos concretos dos equívocos em que incorretas essas pretensas ciências.

a) Seguindo a velha "receita", buscar coletar fatos sobre fatos, sem o auxílio de um corpo teórico ordenador. Vimos acima quão inócuo e anticientífico é esse procedimento, e quão bem Kardec compreendeu tal realidade.

b) Quando forçados são dados, são-no fragmentariamente, cada fato sendo "explicado" por uma hipótese hipotética. Desse modo, mesmo se agruparmos artificialmente essas hipóteses, não formaremos senão um todo inconsistente, o que viola a própria Lógica. A filosofia moderna nem mesmo considera as emoções genuínas "explicações" básicas dos fatos.

c) As tensões são, via de regra, ainda mais fantásticas do que os fatos a que se propõem explicar. Nas admiráveis ​​refutações aos contraditores do Espiritismo contidos em várias de suas obras, notadamente em O que é o Espiritismo (Cap. I), O Livro dos Médiuns (Primeira Parte, Cap. IV), O Céu e o Inferno (Primeira Parte) e O Livro dos Espíritos (Introdução, Item XVI), Allan Kardec, com a agudeza de espírito que o caracterizava, já apontava esse tipo de problema. Na seção "Falsas animadas dos fenômenos", do primeiro desses livros, Kardec pergunta:

Como podem fingir dar conta dos fenômenos espíritas [através da hipótese da alucinação] sem serem capazes de explicar sua explicação?

E mais adiante acrescenta:

É realmente curioso observar os contraditores empenhando-se na busca de causas cem vezes mais extraordinárias e difíceis de compreender do que aqueles que lhes apresentam o Espiritismo.

Outro tipo de pseudo-explicação comumente encontrada são as motivações puramente nominais: carecem de qualquer substância, consistindo exclusivamente do emprego de fraseologia excêntrica na descrição dos fenômenos. Emmanuel profliga semelhante vício filosófico no Parágrafo que segue imediatamente ao que abre esta seção:

Em vão, procura-se complicar a questão com termos rebuscados, apresentando-se as hipóteses mais descabidas e absurdas [...].

d) Quando "teorias" são fornecidas, não dá conta de todos os fatos. Aqui também Kardec já alertou ( O Livro dos Médiuns , Parágrafo 42):

O que caracteriza uma teoria verdadeira é poder dar razão de tudo. Se, porém, um só fato que seja a contradiz, é que ela é falsa, incompleta, ou por demais absoluta.

e) Muitos fatos relevantes simplesmente não são reconhecidos. Isso pode resultar:

                                i.            de ideias preconcebidas, como no caso daqueles que negam a priori a possibilidade de sobrevivência do ser, e portanto não investigam uma vasta quantidade de fenômenos relativos a ela. (Esse problema atinge as raias do absurdo no horror que alguns investigadores têm pelos médiuns - exatamente o manancial mais abundante de fenômenos de que se dispõe!); ou

                              ii.            da falta de uma teoria que guie na busca e análise dos fatos. Vimos acima com Kardec quão longe está o Espiritismo de incorrer em enganos semelhantes.

f) Emprego de técnicas de investigação especializadas. O caso típico e mais importante é o recurso ao "método quantitativo". Como se sabe, tal método constitui uma das maiores bandeiras da Parapsicologia e demais "ciências psi", que julgam estar seguindo os afortunados caminhos da Física e da Química. Ora, se indubitavelmente a análise das funções desempenhadas nessas ciências um papel importante (embora não exclusivo!), não se segue daí que deva ser igualmente frutífero no estudo de uma ordem de fenômenos completamente diferente. De fato, são, neste caso, de todo dispensáveis ​​(para dizermos pouco). É até mesmo ridículo querer substituir a prova cabal fornecida por uma manifestação inteligente (como por exemplo uma carta que contém informações secundárias de episódios e coisas desconhecidas) por medidas de desvios estatísticos em experimentos de identificação de cartas de baralho, ou semelhantes. Não que estas últimas sejam irrelevantes; mas a evidência que pode dar é imensamente mais fraca e duvidosa do que a que resulta das manifestações espirituais, e mesmo de efeitos físicos extraordinários produzidos através de um médium possante. (Parece estarmos aqui na situação de guerreiro que, dispondo de um moderno canhão, prefira servir-se de um tosco estilingue...)

Essa situação foi, como sempre, percebida e combatida por Allan Kardec, que não só enfatizou repetidamente a importância crucial e a superioridade dos fenômenos mediúnicos de efeitos inteligentes, como também se referiu explicitamente à inadequação dos métodos quantitativos, conforme se observa nas traduções que foram feitas na seção 3, em especial neste trecho de O que é o Espiritismo (destacamos):

[Os fenômenos espíritas] têm, como agentes, inteligências que têm independência, livre-arbítrio e não estão sujeitos aos nossos caprichos; por isso eles escapam aos nossos processos de laboratório e aos nossos cálculos [...]. A Ciência enganou-se quando quis experimentar os Espíritos, como o faz com uma pilha voltaica; foi mal sucedido como devia ser, porque agiu pressupondo uma analogia que não existe.

Também no Item de O Livro dos Espíritos que vimos analisando Kardec alerta (destacamos):

[As manifestações espíritas] escapam à competência da ciência material, visto não poder expressar-se por algarismos, nem pela força mecânica.

g) Recurso necessário e perigoso para aparelhos sofisticados. Não obstante de valor inegável nas pesquisas da matéria, como mostrar os notáveis ​​avanços da Física e da Química, a prescindibilidade de aparelhos no estudo dos fenômenos espíritas ficou evidenciada pelas considerações gastas no item anterior. Além disso, há os mesmos riscos em sua utilização. Primeiro, tal uso pode encobrir deficiências metodológicas profundas, produzindo uma impressão ilusória de rigor, de cientificidade. Depois, e mais importante, do ponto de vista epistemológico (ou seja, da teoria do conhecimento), as observações por meio de aparelhos ocupam um nível bem mais baixo na escala da confiabilidade do que podem ser alcançados de modo imediato. Assim,

Essas considerações epistemológicas explicam, por sinal, a grande estabilidade do núcleo de princípios fundamentais do Espiritismo, quando comparadas aos das teorias científicas, pois repousam em fenômenos extremamente básicos do ponto de vista epistêmico, com o mesmo grau de certeza, quanto, por exemplo, as proposições de que temos agora uma folha de papel diante de nós, de que há nela algo escrito, de que nos achamos sentados etc. Medeia vasta distância conceitual entre proposições desse tipo e, por exemplo, aquela sobre a estrutura dos átomos, dos buracos negros, sobre o mecanismo das genéticas etc.

h) Referência a conceitos e teorias científicas obsoletos. A Física deste século mudou, como já dissemos, mudanças radicais em suas teorias, e consequentemente em nossa visão do mundo. Conceitos que fizeram parte da Física Clássica, como os de espaço e tempo absolutos, ínfimos, campos etc., foram ou totalmente abandonados, ou revistos profundamente, por não mais servirem às novas teorias, não dando conta dos fenômenos observados. Assim, é inacreditável que haja pesquisador das "ciências psi" tentando elaborar "teorias" e "modelos" para o Espírito baseado em noções de partículas e campos, e ainda mais, com a pretensão de estar seguindo a Ciência! Vemos aqui uma vez mais a lucidez de Kardec e dos Espíritos que o auxiliavam, ao não vincularem os princípios centrais do Espiritismo a nenhuma dessas noções.

i) Desprezo pelo passado: cada pesquisador em geral recomeçou a pensar a partir do "nada", como se outros já não tivessem conseguido constatações dignas de confiança. Se a dúvida equilibrada representa prudência, quando se torna irrestrita e irrefletida, aliando-se à presunção e ao orgulho, inviabiliza o conhecimento. Se na Ciência se tivesse adotado atitude semelhante, não se teria saído de sua pré-história.

j) Ignorância da cultura dos fatores "morais" na produção de certos fenômenos. Kardec não tardou a reconhecer, em seus estudos, as influências por vezes cruciais de fatores ligados à harmonia de pensamento dos médiuns, experimentadores e assistentes, aos objetivos a que se propõem, à sua condição moral etc. no Capítulo XXI de O Livro dos Médiuns , onde Kardec ressalta a "enorme influência do meio sobre a natureza das manifestações inteligentes" Parágrafo 233). Essa influência vem sendo também ilustrada e enfatizada na boa literatura mediúnica, que nos mostra em detalhe a complexidade do trabalho dos Espíritos na produção dos fenômenos. Assim, apenas para tomar um dos vários exemplos, lembremos a descrição que André Luiz dá em Missionários da Luz (Cap. X) da profunda perturbação causada nos trabalhos de materialização a que presenciava pelo simples ingresso no recinto de um homem interiormente desequilibrado, e, depois, pelos pensamentos descontrolados dos participantes da reunião. Diante da surpresa, o Instrutor Alexandre elucida (destacamos):

Nestes fenômenos, André, os fatores morais constituem elementos decisivos de organização. Não estamos diante de depressão de menor esforço e, sim, ante manifestações sagradas da vida, em que não se pode prescindir dos elementos superiores e da sintonia vibratória.

Também Emmanuel gasta considerações desse mesmo teor no Capítulo XIII de seu já citado livro “Emmanuel” (destacamos):

Não são poucos os estudiosos que procuram investigar os domínios da ciência psíquica, na sede de encontrar o lado verdadeiro da vida; porém, se muitas vezes acho apenas o malogro das suas expectativas, o soçobro dos seus ideais, é que se entregam a estudos arriscados sem preparação prévia para resolver tão altas questões, errando voluntariamente com espírito de criticismo, muitas vezes injustificável, já que não é filho do pensamento acurado, profundo. O êxito no estudo de problemas tão transcendentais exige a utilização de fatores morais, encontrados; daí a improdutividade de entusiasmos e desejos que podem ser ardentes e sinceros.

 

5. O Espiritismo é religioso.

[...] o Espiritismo é, assim, uma religião? Sim, sem dúvida, senhores: No sentido filosófico o Espiritismo é uma religião, e disso nos honramos, pois que é a doutrina que funda os laços da fraternidade e da comunhão de pensamentos não em uma simples comunicação, mas sobre a mais sólida das bases: as próprias leis da Natureza.

Por que então declaramos que o Espiritismo não era uma religião? Pela razão de que há apenas uma palavra para expressar duas ideias diferentes, e que, segundo a opinião geral, o termo religião é inseparável da noção de culto, e evoca exclusivamente uma ideia de forma, com o que o Espiritismo não guarda qualquer relação. Se público tivesse proclamado uma religião, o nele não veria senão uma nova edição, ou uma variante, se quiséssemos, dos princípios absolutos em matéria de fé, uma casta sacerdotal com seu cortejo de superiores, cerimônias e privilégios; não o distinguiria das ideias de misticismo e dos enganos contra os quais se estão bem instruídos.

Não apresentando nenhuma das características de uma religião, na acepção usual da palavra, o Espiritismo não poderia nem deveria ornar-se de um título sobre cujo significado inevitavelmente haveria mal-entendidos. Eis porque ele se diz simplesmente uma doutrina filosófica e moral.

Allan Kardec[7]

Do mesmo modo como tem havido falta de compreensão acerca do caráter científico do Espiritismo e de suas relações com as ciências, seu caráter religioso e suas relações com as religiões também têm um ponto característico de confusões frequentes.

Assim como se pode mostrar ser o Espiritismo científico, embora não se inclua entre as ciências ordinárias, por estudar um domínio diverso de fenômenos, pode-se, conforme o fez o próprio Kardec, mostrar que o Espiritismo é religioso, embora não se confunda com como leis ordinárias.

Se no estabelecimento da primeira dessas teses tivemos que identificar corretamente que características de uma teoria a tornam científica, temos, para justificar a segunda, que estabelece critérios adequados para a classificação de uma doutrina no âmbito religioso.

Essa tarefa deve começar pela análise etimológica da palavra religião. Ela vem do Latim religione, derivado de religare, que naturalmente significa "religar", permanecendo, neste caso, subentendido que "religação" é da criatura ao Criador.

Surge aqui a primeira diferença entre o Espiritismo e as religiões ordinárias.

Estas usualmente entendem por Deus um ser supremo, criador de tudo o que existe, porém com características notoriamente antropomórficas.

Já o Espiritismo define-o como "a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"( O Livro dos Espíritos, Questão nº 1), dando-lhe por atributos exclusivamente a eternidade, a imutabilidade, a imaterialidade, a unicidade, a onipotência e a soberana justiça e atração ( ibidem, Questão 13), o que evidentemente exclui qualquer caráter antropomórfico.

A segunda diferença fundamental está na maneira pela qual o Espiritismo entende que a religação entre uma criatura e Deus pode e deve ser promovida.

Segundo as religiões ordinárias, ela se dá através do ajuste da criatura a certas regras morais (éticas) e/ou da satisfação de providências formais e externas de vária ordem, dependendo da religião: batismo, crisma, comunhão, confissão; participação em cultos, rituais, cerimônias; realização de certos gestos; recitação de fórmulas e rezas; tratamento de imagens e objetos diversos; promessas, penitências, jejuns; trazer em si como "marcas de Deus" etc.

Já o Espiritismo propõe que a religação da criatura ao Criador se faz exclusivamente pela adaptação de sua conduta a certos preceitos morais, como medidas de ordem exterior sendo tidas não somente como supérfluas, como também de todas as desaconselhadas e combatidas.

A terceira diferença reside em quais são as regras morais em questão.

O Espiritismo toma-as como exclusivamente aquelas propostas por Jesus, e que se resumem no preceito do amor ao próximo.

Já as leis ordinárias podem, dependendo do caso, incluir ou não as normativas evangélicas, ou inclui-las parcialmente, ou acrescentar-lhes outras, ou alterar-lhes a interpretação original etc.

Por fim, a diferença crucial surge no modo pelo qual essas regras éticas são justificadas .

As leis ordinárias "justificam" as normas morais que propõem recorrer à autoridade desse ou daquele indivíduo ou instituição; são dogmas, portanto artigos de fé a serem aceitos sem exame.

Já o Espiritismo fundamenta o corpo de seus preceitos éticos no conhecimento que cientificamente alcança das consequências das ações humanas ao longo da existência ilimitada dos seres, conjugado à cláusula teleológica de que todos almejam a felicidade. Não há aqui lugar para dogmas e imposições, mas exclusivamente investigação livre e racional dos fatos. Aliás esse já era o modo pelo qual o Apóstolo Paulo entendia a moral, pois em sua primeira carta aos Coríntios (10:23) asseverou: “Todas as coisas são lícitas, mas nem todas convêm; todas são lícitas, porém nem todas edificam ".

No artigo anterior ("Os fundamentos da ética espírita"; ver Referência Bibliográfica.) expusemos com certa extensão esse processo de fundamentação da moral espírita. Dada a clara do tema, percorremos aqui algumas citações de Kardec, a fim de ilustrar o ponto e deixar sua posição.

Nos comentários às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que tratam do materialismo, Kardec refere-se à hipótese da aniquilação do ser com a morte corporal:

Triste consequências, se fora real, porque então o bem e o mal não conseguiram objetivo, o homem estaria justificado em só pensar em si e em colocar acima de tudo a satisfação de seus prazeres materiais; os laços sociais se romperiam, e as mais santas afeições se quebrariam irremediavelmente.

Passemos agora à Questão 222 do mesmo livro, onde encontramos:

Ora, pois: se credes num futuro qualquer, certo não admite que ele seja idêntico para todos, por enquanto, de outro modo, qual a utilidade do bem? Por que haveria o homem de estranhar-se? Por que deixaria de experimentar a todas as suas paixões, a todos os seus desejos, ainda que à custa de outrem, uma vez que isso não lhe alteraria a condição futura?

No Item IV da Conclusão dessa obra Kardec é ainda mais explícito (destacamos):

O progresso da Humanidade tem seu princípio na aplicação da lei de justiça, de amor e de caridade. Tal lei se funda na certeza do futuro ; tirai-lhe essa certeza e lhe tirareis a pedra fundamental. Dessa lei derivam todas as outras, porque ela encerra todas as condições da felicidade do homem.

No Item VIII Kardec reitera:

Razão, portanto, tínhamos para dizer que o Espiritismo, com os fatos, matou o materialismo. Fosse é o único resultado por ele produzido e já muita gratidão lhe deveria a ordem social. Ele, porém, faz mais: mostra os inevitáveis ​​efeitos do mal e, consequentemente, a necessidade do bem.

O Capítulo I de A Gênese está repleto de considerações sobre essa fundamentação experimental-racional da ética espírita. Recomendamos vivamente a leitura, pelo menos, dos Parágrafos 31, 32, 35, 37, 42, 56 e 62. Do Parágrafo 37 extraímos esta assertiva (destacamos):

Tirai ao homem o espírito livre e independente, sobrevivente à matéria, e farei dele uma máquina simples organizada, sem finalidade, nem responsabilidade [...].

No Parágrafo 42 encontramos:

Demais, se considera o poder moralizador do Espiritismo, pela finalidade que assina a todas as ações da vida, por tornar tangíveis as consequências do bem e do mal [...].

No Parágrafo 56 Kardec volta ao assunto, desta vez analisando as relações entre a moral evangélica e o espírita, que, conforme observamos, coincidem quanto às normas morais (destacamos):

O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral do Cristo é o conhecimento dos princípios que regem as relações entre os mortos e os vivos, princípios que completam as noções vagas que forneceram da alma, de seu passado e de seu futuro, e que não por sanção à doutrina cristã como próprias leis da Natureza . Com o auxílio das novas luzes que o Espiritismo e os Espíritos espargem, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade se tornam uma necessidade social; ele faz por afetado o que fazia somente por dever, e o faz melhor.

Encerrando essas notáveis ​​citações de Kardec, que aliás poderia estender-se ainda muito, adentrando, por exemplo, O Céu e o Inferno, obra completa dedicada ao estudo teórico e experimental das explicações das ações humanas, voltamos ao comentário às Questões 147 e 148 de O Livro dos Espíritos, que fecha com chave de nosso ouro estas nossas reflexões:

[...] uma missão do Espiritismo consiste precisamente em nos esclarecer acerca desse futuro, em fazer com que, até certo ponto, o toquemos com o dedo e penetraremos com o olhar, não mais pelo raciocínio somente, porém, pelos fatos. Graças às comunicações espíritas, não se trata mais de uma simples suposição, de uma probabilidade sobre a qual cada uma conjetura à vontade, que os poetas embelezem com suas ficções, ou cumulem de enganadoras imagens alegóricas. É a realidade que nos aparece, pois são os próprios seres de além-túmulo que nos vêm descrever a situação em que se acham, relatam o que fazem, facultando-nos assistir, por assim dizer, a todas as peripécias da nova vida que lá vive e mostrando-nos, por esse meio, a sorte inevitável que nos está reservada, de acordo com os nossos méritos e deméritos, isso é alguma coisa de antirreligioso? Muito ao contrário, por enquanto os incrédulos encontram aí a fé e os tíbios a renovação do fervor e da confiança. O Espiritismo é, pois, o mais poderoso auxiliar da religião. Se ele aí está, é porque Deus o permite e o permite para que as nossas esperanças vacilantes se revigorem e para que sejamos reconduzidos à senda do bem pela perspectiva do futuro.

 

Referências Bibliográficas

ANDRÉ LUIZ. Missionários da Luz. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 6 a ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd

BORGES DE SOUZA, J. "Pesquisas e Métodos", Reformador , abril de 1986, pp. 99-101.

CHALMERS, AF O que é essa coisa chamada ciência? Santa Lúcia, University of Queensland Press, 1976.

CHIBENI, SS "Espiritismo e Ciência". Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência". Reformador , maio de 1984, pp. 144-7 e 157-9.

-----. "Os fundamentos da ética espírita". Reformador , junho de 1985, pp. 166-9.

EMANUEL. Emanuel . Dissertações mediúnicas sobre questões importantes que preocupam a Humanidade. (Psicografia de Francisco Cândido Xavier.) 5ª ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd

KARDEC, A. Le Livre des Esprits . Paris, Dervy-Livres, sd ( O Livro dos Espíritos. Trad. de Guillon Ribeiro. 43ª. ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd)

-----. Qu'est-ce que le Spiritisme . Paris, Dervy-Livres, 1975. ( O que é o Espiritismo . s. trad. 25ª. ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd)

-----. Le Livre des Médiums . Paris, Dervy-Livres, 1972. ( O Livro dos Médiuns . Trad. Guillon Ribeiro, 46ª. ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd)

-----. La Genèse, les Miracle et les Predictions selon le Spiritisme. Paris, La Diffusion Scientifique, sd ( A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro, 23ª.ed., Rio de Janeiro, Federação Espírita Brasileira, sd)

-----. L'Obsession. Extraits textuels des Revues Spirites de 1858 a 1868. Farciennes, Bélgica, Éditions de l'Union Spirite, 1950.

LAKATOS, I. "Falsificação e metodologia dos programas de investigação científica". In: LAKATOS, I. & Musgrave, A. eds. A crítica e o crescimento do conhecimento. Cambridge, Cambridge University Press, 1970. pp. 91-195.



[2] Em nossas traduções das obras de Allan Kardec utilizamos os originais franceses, aproveitando amplamente as traduções editadas pela Federação Espírita Brasileira; ver Referências Bibliográficas, no final deste artigo.

[3] . "Espiritismo e Ciência. Esboço de uma análise do Espiritismo à luz da moderna Filosofia da Ciência"; ver Referências Bibliográficas. O leitor interessado em filosofia da ciência poderá consultar o livro de Alan Chalmers “What is this thing called science”, que é razoavelmente acessível e contém abundantes referências às fontes primárias.

[4] Veja, por exemplo, seu famoso artigo "Falsificação e a metodologia dos programas de pesquisa científica", citado nas Referências Bibliográficas.

[5] A inclusão da Psicologia e da Sociologia é problemática, já que não parece, em sua atual fase de desenvolvimento, cumprir os requisitos mínimos de uma verdadeira ciência. Nós espíritas temos razões adicionais para essa dúvida, dado que tais disciplinas, pretendendo estudar o ser humano, ignoram precisamente o que lhe é mais essencial, ou seja, o Espírito.

[6] Esse tema foi também lucidamente tratado no artigo recente de Juvanir Borges de Souza, "Pesquisas e Métodos", publicado no número de abril de 1986 de Reformador , cuja leitura recomendamos vivamente.

[7] "Le Spiritisme est-il une religion?", Revue Spirite , 1868, p. 357. Transcrito em L'Obsession , pp. 279-92 (ver Referências Bibliográficas). Uma tradução desse artigo, por Ismael Gomes Braga, apareceu em Reformador , de março de 1976. Os destaques na citação acima são nossos.