terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

OS LAZERES DE UM ESPÍRITA NO DESERTO[1]

 


Allan Kardec

 

Reproduzimos sem comentários as passagens seguintes, de uma carta que, em março último, nos escreveu um dos nossos correspondentes, capitão do exército na África.

 

O Espiritismo se espalha no norte da África e ganhará o centro, se os franceses para ali se dirigirem. Ei-lo que penetra em Laghouat, nas bordas do Saara, a 33 graus de latitude. Emprestei os vossos livros; alguns de meus camaradas os leram; discutimos e a força e a razão ficaram com a doutrina.

Desde alguns anos entrego-me ao estudo da Anatomia, da Fisiologia e da Psicologia comparadas. A mesma corrente de ideias arrastou-me para o estudo dos animais. Pude dar-me conta, pela observação, de que todos os órgãos, todos os aparelhos se simplificam, quando descem para as raças e espécies inferiores. Como a Natureza é bela para estudar! Como se sente o espírito espalhado por toda parte! Algumas vezes passo longas horas a seguir os hábitos e os movimentos da vida dos insetos e dos répteis desta região; assisto às suas lutas, aos seus esforços, às suas astúcias para assegurarem a sua existência; contemplo a batalha das espécies. O Saara, em cujas bordas estamos acampados há mais de um ano, tão deserto para os meus camaradas, parece-me, ao contrário, muito povoado; onde eles encontram o exílio, eu encontro a liberdade! É que sei que Deus está em toda parte e que cada um tem a felicidade em si mesmo. Quer eu esteja no polo ou no equador, meus amigos do espaço me seguirão e sei que os caros invisíveis podem povoar as mais tristes solidões. Não que eu desdenhe a sociedade de meus semelhantes, nem que seja indiferente às afeições que conservei na França, oh não! Porque me tarda rever e abraçar a minha família e todos os que me são caros; mas é somente para testemunhar que se pode ser feliz em qualquer ponto do globo em que se encontre, quando se toma Deus por guia. Para o espírita jamais há isolamento; ele sabe e se sente constantemente rodeado de seres benevolentes, com os quais está em comunhão de pensamentos.

Vossa última obra A Gênese, que acabo de reler, e sobre diversos capítulos da qual me detive particularmente, desvenda-nos os mistérios da Criação e desfere um terrível golpe nos preconceitos. Essa leitura fez-me imenso bem e me abriu novos horizontes. Eu já compreendia a nossa origem e via em meu corpo material o último elo da animalidade na Terra; sabia que o espírito, durante sua gestação corporal, toma uma parte ativa na construção do seu ninho e apropria o seu invólucro às suas novas necessidades. Esta teoria da origem do homem poderá parecer, aos orgulhosos, atentatória à grandeza e à dignidade humanas, mas será aceita no futuro graças à sua simplicidade e à sua empolgante amplitude.

Com efeito, a Geologia nos faz ler no grande livro da Natureza. Por ela, achamos que as espécies de hoje teriam por avós as espécies cujos restos se encontram nas camadas terrestres; não se pode mais negar que há uma progressão contínua no desenvolvimento das formas orgânicas, quando vemos aparecer primeiro os tipos mais simples. Esses tipos foram modificados pelos instintos dos próprios animais, providos de órgãos apropriados às suas novas necessidades e ao seu desenvolvimento. Aliás, a Natureza muda os tipos quando a necessidade se faz sentir; a vida multiplica gradualmente seus órgãos e os especializa. As espécies saem umas das outras, sem que seja necessária a intervenção miraculosa. Adão não saiu armado com todas as peças das mãos do Criador: muito certamente um chimpanzé o deu à luz.

As espécies não são absolutamente independentes umas das outras; elas se ligam por uma filiação secreta e pode-se mesmo considerá-las solidárias até a Humanidade. Como dissestes muito judiciosamente, desde o zoófito até o homem, há uma cadeia na qual todos os elos têm um ponto de contato com o elo precedente. E assim como o Espírito sobe e não pode ficar estacionário, assim também o instinto do animal progride, e cada encarnação faz que transponha um degrau na escala dos seres. As fases dessas metamorfoses se completam por milhares de elos, e as formas rudimentares, das quais algumas amostras se encontram nos terrenos silurianos, nos dizem por onde passou a animalidade.

Não mais deve haver véu entre a Natureza e o homem, e nada deve ficar oculto. A Terra é o nosso domínio, cabendo a nós estudar as suas leis; a ignorância e a preguiça é que criaram os mistérios. Quanto Deus nos parece maior na harmonia e na unidade de suas leis!

Lamento sinceramente as pessoas que se aborrecem, porque é uma prova de que não pensam em ninguém, e que seu espírito está vazio como o estômago do indivíduo que tem fome.



[1] Revista Espírita – Novembro/1868 – Allan Kardec

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