Allan Kardec
Reproduzimos sem comentários as
passagens seguintes, de uma carta que, em março último, nos escreveu um dos
nossos correspondentes, capitão do exército na África.
O Espiritismo se espalha no norte da África e ganhará o
centro, se os franceses para ali se dirigirem. Ei-lo que penetra em Laghouat,
nas bordas do Saara, a 33 graus de latitude. Emprestei os vossos livros; alguns
de meus camaradas os leram; discutimos e a força e a razão ficaram com a
doutrina.
Desde alguns anos entrego-me ao estudo da Anatomia, da
Fisiologia e da Psicologia comparadas. A mesma corrente de ideias arrastou-me
para o estudo dos animais. Pude dar-me conta, pela observação, de que todos os
órgãos, todos os aparelhos se simplificam, quando descem para as raças e
espécies inferiores. Como a Natureza é bela para estudar! Como se sente o
espírito espalhado por toda parte! Algumas vezes passo longas horas a seguir os
hábitos e os movimentos da vida dos insetos e dos répteis desta região; assisto
às suas lutas, aos seus esforços, às suas astúcias para assegurarem a sua
existência; contemplo a batalha das espécies. O Saara, em cujas bordas estamos
acampados há mais de um ano, tão deserto para os meus camaradas, parece-me, ao
contrário, muito povoado; onde eles encontram o exílio, eu encontro a
liberdade! É que sei que Deus está em toda parte e que cada um tem a felicidade
em si mesmo. Quer eu esteja no polo ou no equador, meus amigos do espaço me
seguirão e sei que os caros invisíveis podem povoar as mais tristes solidões.
Não que eu desdenhe a sociedade de meus semelhantes, nem que seja indiferente
às afeições que conservei na França, oh não! Porque me tarda rever e abraçar a
minha família e todos os que me são caros; mas é somente para testemunhar que
se pode ser feliz em qualquer ponto do globo em que se encontre, quando se toma
Deus por guia. Para o espírita jamais há isolamento; ele sabe e se sente
constantemente rodeado de seres benevolentes, com os quais está em comunhão de
pensamentos.
Vossa última obra A Gênese, que acabo de reler,
e sobre diversos capítulos da qual me detive particularmente, desvenda-nos os
mistérios da Criação e desfere um terrível golpe nos preconceitos. Essa leitura
fez-me imenso bem e me abriu novos horizontes. Eu já compreendia a nossa origem
e via em meu corpo material o último elo da animalidade na Terra; sabia que o
espírito, durante sua gestação corporal, toma uma parte ativa na construção do
seu ninho e apropria o seu invólucro às suas novas necessidades. Esta teoria da
origem do homem poderá parecer, aos orgulhosos, atentatória à grandeza e à
dignidade humanas, mas será aceita no futuro graças à sua simplicidade e à sua
empolgante amplitude.
Com efeito, a Geologia nos faz ler no grande livro da
Natureza. Por ela, achamos que as espécies de hoje teriam por avós as espécies
cujos restos se encontram nas camadas terrestres; não se pode mais negar que há
uma progressão contínua no desenvolvimento das formas orgânicas, quando vemos
aparecer primeiro os tipos mais simples. Esses tipos foram modificados pelos
instintos dos próprios animais, providos de órgãos apropriados às suas novas
necessidades e ao seu desenvolvimento. Aliás, a Natureza muda os tipos quando a
necessidade se faz sentir; a vida multiplica gradualmente seus órgãos e os
especializa. As espécies saem umas das outras, sem que seja necessária a
intervenção miraculosa. Adão não saiu armado com todas as peças das mãos do
Criador: muito certamente um chimpanzé o deu à luz.
As espécies não são absolutamente independentes umas
das outras; elas se ligam por uma filiação secreta e pode-se mesmo
considerá-las solidárias até a Humanidade. Como dissestes muito judiciosamente,
desde o zoófito até o homem, há uma cadeia na qual todos os elos têm um ponto
de contato com o elo precedente. E assim como o Espírito sobe e não pode ficar
estacionário, assim também o instinto do animal progride, e cada encarnação faz
que transponha um degrau na escala dos seres. As fases dessas metamorfoses se
completam por milhares de elos, e as formas rudimentares, das quais algumas
amostras se encontram nos terrenos silurianos, nos dizem por onde passou a
animalidade.
Não mais deve haver véu entre a Natureza e o homem, e
nada deve ficar oculto. A Terra é o nosso domínio, cabendo a nós estudar as
suas leis; a ignorância e a preguiça é que criaram os mistérios. Quanto Deus
nos parece maior na harmonia e na unidade de suas leis!
Lamento sinceramente as pessoas que se aborrecem,
porque é uma prova de que não pensam em ninguém, e que seu espírito está vazio
como o estômago do indivíduo que tem fome.
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