Allan Kardec
São Francisco
Xavier e o bonzo japonês
O relato seguinte é extraído da
história de São Francisco Xavier, pelo padre Bouhours. É uma discussão
teológica entre um bonzo japonês, chamado Tucarondono, e São Francisco Xavier,
então missionário no Japão.
− Não sei se me conheces ou, melhor dizendo, se me
reconheces, disse Tucarondono a
Francisco Xavier.
Não me lembro de vos ter visto alguma vez,
respondeu-lhe este.
Então o bonzo, rebentando de riso, e se voltando para
outros bonzos, seus confrades, que trouxera consigo:
− Bem vejo, disse-lhes, que não teria
dificuldade em vencer um homem que tratou comigo mais de cem vezes, e que dá
mostras de jamais me ter visto.
Em seguida, olhando Xavier com um sorriso de desprezo:
− Nada te resta das mercadorias que me vendestes no
porto de Frénasoma?
− Em verdade, replicou Xavier com uma expressão sempre
serena e modesta, em minha vida não fui negociante e jamais estive em
Frénasoma.
Ah! Que esquecimento e que tolice! Replicou o bonzo,
fazendo-se de admirado e continuando suas risadas: Que! É possível que
tenhas esquecido isto?
– Avivai-me a lembrança, prosseguiu docemente o Pai, vós
que tendes mais espírito e mais memória que eu.
Bem que o quero, disse o bonzo, todo orgulhoso do
elogio que Xavier lhe havia feito. Há exatamente mil e quinhentos anos, tu e
eu éramos mercadores, fazíamos o nosso comércio em Frénasoma, e te comprei cem
peças de seda muito barato. Lembras-te agora?
− O santo avaliou até onde queria chegar o bonzo e lhe
perguntou, honestamente, que idade tinha.
Tenho cinquenta e dois anos, disse Tucarondono.
− Como é possível, redarguiu Xavier, que fosses mercador
há quinze séculos, se não estais no mundo senão há meio século, e que
negociássemos naquele tempo, em Frénasoma, se vós e a maioria dos outros bonzos
ensinais que o Japão não passava de um deserto há mil e quinhentos anos?
Escuta-me, disse o bonzo: tu ouvirás os oráculos
e concordarás que temos mais conhecimento das coisas passadas, do que vós
outros o tendes das coisas presentes.
Deves, pois, saber, que o mundo jamais teve começo, e
que as almas, a bem dizer, não morrem. A alma se desprende do corpo onde estava
encerrada; busca outro, novo e vigoroso, onde renascemos, ora com o sexo mais
nobre, ora com o sexo imperfeito, conforme as diversas constelações do céu e os
diferentes aspectos da Lua. Essas mudanças de nascimento fazem que também
mudem as nossas sortes. Ora, é a recompensa dos que viveram santamente ter a
lembrança fresca de todas as vidas que se levou nos séculos passados e de se
representar em si mesmo todo inteiro, tal qual se foi desde a eternidade, sob a
forma de príncipe, de mercador, de homem de letras, de guerreiro e sob outras
figuras. Ao contrário, quem quer que, como tu, saiba tão pouco seus próprios
negócios, ignore o que foi e o que fez durante uma infinidade de séculos,
mostra que seus crimes o tornaram digno da morte tantas vezes, que perdeu a
lembrança das vidas que mudou.
Observação – Não se pode supor que Francisco Xavier
tenha inventado esta história, que não lhe era favorável, nem suspeitar da
boa-fé de seu historiador, o padre Bouhours. Por outro lado, não é menos certo
que era uma armadilha estendida ao missionário pelo bonzo, pois sabemos que a
lembrança das existências anteriores é um caso excepcional e que, em todo o
caso, jamais comporta detalhes tão precisos. Mas o que ressalta do fato é que a
doutrina da reencarnação existia no Japão naquela época, em condições
idênticas, salvo a intervenção das constelações e da Lua, às que hoje são
ensinadas pelos Espíritos. Uma outra similitude não menos notável, é a ideia de
que a precisão da lembrança é um sinal de superioridade; com efeito, os
Espíritos nos dizem que nos mundos superiores à Terra, onde o corpo é menos
material e a alma encontra-se num estado normal de desprendimento, a lembrança
do passado é uma faculdade comum a todos; aí a gente se lembra das existências
anteriores, como nos lembramos dos primeiros anos da nossa infância. É bem
evidente que os japoneses não chegaram a este grau de desmaterialização, que
não existe na Terra, mas o fato prova que dele têm a intuição.
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