Allan Kardec
Antes de entrar em detalhes nas
revelações que nos fizeram os Espíritos sobre o estado dos diferentes mundos,
vejamos a que consequência lógica podemos chegar por nós mesmos e unicamente
pelo raciocínio. Reportando-nos à escala
espírita que demos no número anterior, rogamos às pessoas desejosas de se
aprofundarem seriamente nessa nova ciência, que estudem cuidadosamente esse
quadro e dele se compenetrem: aí encontrarão a chave de mais de um mistério.
O mundo dos Espíritos compõe-se
das almas de todos os humanos desta Terra e de outras esferas, despojadas dos
liames corporais; do mesmo modo, todos os humanos são animados por Espíritos
neles encarnados. Há, pois, solidariedade entre esses dois mundos: os homens
terão as qualidades e as imperfeições dos Espíritos aos quais estão unidos. Os
Espíritos serão mais ou menos bons ou maus, conforme os progressos que hajam
feito durante sua existência corporal. Estas poucas palavras resumem toda a
doutrina.
Como os atos dos homens são o
produto de seu livre-arbítrio, carregam a marca da perfeição ou da imperfeição
do Espírito que os provoca.
Ser-nos-á, pois, muito fácil
fazer uma ideia do estado moral de um mundo qualquer, conforme a natureza dos
Espíritos que o habitam; de algum modo poderíamos descrever sua legislação,
traçar o quadro de seus costumes, de seus usos e de suas relações sociais.
Suponhamos, então, um globo
habitado exclusivamente por Espíritos da nona classe (Terceira Ordem), por
Espíritos impuros, e para lá nos transportemos pelo pensamento. Nele veremos
todas as paixões liberadas e sem freio; o estado moral no mais baixo grau de
embrutecimento; a vida animal em toda a sua brutalidade; nada de laços sociais,
porquanto cada um só vive e age por si e para satisfazer seus grosseiros
apetites; o egoísmo ali reina como soberano absoluto, arrastando no seu cortejo
o ódio, a inveja, o ciúme, a cupidez e o assassínio.
Passemos agora a uma outra
esfera, onde se encontram Espíritos de todas as classes da Terceira Ordem:
Espíritos impuros, levianos, pseudossábios,
neutros. Sabemos que o mal predomina em todas as classes dessa ordem; porém,
sem ter o pensamento do bem, o do mal decresce à medida que se afastam da
última classe.
O egoísmo é sempre o móvel
principal das ações, mas os costumes são mais suaves, a inteligência mais
desenvolvida; o mal aí está um pouco disfarçado, enfeitado, dissimulado. Essas
próprias qualidades dão origem a outro defeito: o orgulho, pois as classes mais
elevadas são suficientemente esclarecidas para terem consciência de sua
superioridade, mas não o bastante para compreenderem aquilo que lhes falta; daí
sua tendência à escravização das classes inferiores ou das raças mais fracas,
que mantêm sob o seu jugo. Não possuindo o sentimento do bem, só têm o instinto
do eu, pondo a inteligência em proveito da satisfação das paixões. Se numa tal
sociedade dominar o elemento impuro, este aniquilará o outro; caso contrário,
os menos maus procurarão destruir seus adversários; em todos os casos haverá
luta, luta sangrenta, de extermínio, porque são dois elementos que têm
interesses opostos. Para proteger os bens e as pessoas, serão necessárias leis;
mas essas leis serão ditadas pelo interesse pessoal e não pela justiça; é o
forte que as fará, em detrimento do fraco.
Suponhamos agora um mundo onde,
entre os elementos maus que acabamos de ver, se encontrem alguns da segunda
ordem; no meio da perversidade veremos aparecer, então, algumas virtudes.
Se estiverem em minoria, os bons
serão vítimas dos maus; porém, à medida que aumente a sua preponderância, a
legislação será mais humana, mais equitativa e, para todos, a caridade cristã
deixa de ser letra morta. Desse mesmo bem nascerá outro vício. A despeito da
guerra incessante que os maus declarem aos bons, não podem evitar que se
estimem em seu foro íntimo; percebendo o ascendente da virtude sobre o vício, e
não tendo força nem vontade de praticá-la, procuram parodiá-la; tomam-lhe a
máscara; daí os hipócritas, tão numerosos em toda sociedade onde a civilização
é imperfeita.
Continuemos nosso passeio
através dos mundos e paremos neste que nos dará um pouco de repouso do triste
espetáculo que acabamos de ver. É habitado somente por Espíritos de Segunda Ordem.
Que diferença! O grau de depuração ao qual chegaram exclui entre eles todo
pensamento do mal e apenas essa palavra nos dá uma ideia do estado moral dessa
terra feliz. A legislação aí é bem simples, porquanto os homens não têm necessidade
de defender-se uns contra os outros; ninguém deseja o mal ao próximo, ninguém
se apropria do que não lhe pertence, ninguém procura viver em detrimento de seu
vizinho. Tudo respira benevolência e amor; os homens não se procuram
prejudicar, não há ódio; o egoísmo é desconhecido e a hipocrisia não teria
finalidade.
Aí, entretanto, não reina a igualdade
absoluta, porquanto tal igualdade supõe uma identidade perfeita no
desenvolvimento intelectual e moral. Ora, pela escala espiritual vemos que a Segunda
Ordem compreende vários graus de desenvolvimento; haverá, pois, desigualdade
nesse mundo, porque muitos encarnados serão mais avançados que outros; mas,
como entre eles só há o pensamento do bem, os mais elevados não conceberão o
orgulho nem os outros a inveja. O inferior compreende a ascendência do superior
e a ela se submete, visto ser puramente moral essa ascendência e ninguém se serve
dela para oprimir os outros.
As consequências que tiramos
desses quadros, embora apresentados de maneira hipotética, não são menos
racionais, podendo cada um deduzir o estado social de um mundo qualquer de acordo
com a proporção dos elementos morais que o constituem.
Já vimos, abstração feita da
revelação dos Espíritos, que todas as probabilidades apontam para a pluralidade
dos mundos; ora, não é menos racional pensar que nem todos estejam no mesmo
grau de perfeição e que, por isso mesmo, nossas suposições bem possam ser
realidades. Não conhecemos, de maneira positiva, senão o nosso mundo. Que
posição ocuparia ele nessa hierarquia? Ah! É preciso considerar o que aqui se
passa para ver que está longe de merecer a primeira classe; e estamos
convencidos de que, ao ler estas linhas, já se lhe terá marcado a posição.
Quando os Espíritos afirmam que a Terra, se não está na última classe, está
numa das últimas, infelizmente o simples bom-senso nos diz que não se enganam; temos
ainda muito a fazer para elevá-la à categoria do mundo que descrevemos por
último e muita necessidade de que o Cristo nos venha mostrar novamente o
caminho.
Quanto à aplicação que podemos
fazer de nosso raciocínio aos diferentes globos de nosso turbilhão planetário,
só temos o ensino dos Espíritos; ora, para os que só admitem provas palpáveis é
positivo que sua assertiva, a esse respeito, não tenha a certeza da
experimentação direta. Entretanto, diariamente não aceitamos, confiantes, as
descrições que os viajantes nos fazem de países que jamais vimos? Se só
devêssemos crer no que vemos, creríamos em pouca coisa. O que aqui dá certo
valor ao que dizem os Espíritos é a correlação existente entre eles, pelo menos
quanto aos pontos principais. Para nós, que temos testemunhado essas comunicações
centenas de vezes, que as temos apreciado em seus mínimos detalhes, que lhes
investigamos os pontos fracos e fortes, que observamos as similitudes e as
contradições, nelas encontramos todos os caracteres da probabilidade; contudo,
não as damos senão como inventário e a título de ensinamentos, de que cada um
será livre para dar a importância que julgar conveniente.
Segundo os Espíritos, o planeta
Marte seria ainda menos adiantado que a Terra[2].
Os Espíritos ali encarnados parecem pertencer quase que exclusivamente à nona
classe, a dos Espíritos impuros, de sorte que o primeiro quadro, que demos
acima, seria a imagem desse mundo. Vários outros pequenos globos estão, com alguns
matizes, na mesma categoria. A Terra viria em seguida; a maioria de seus
habitantes pertence incontestavelmente a todas as classes da Terceira Ordem, e
uma parte bem menor às últimas classes da Segunda Ordem. Os Espíritos
superiores, os da segunda e da terceira classes, aqui cumprem, algumas vezes,
missões de civilização e de progresso, mas constituem exceções. Mercúrio e Saturno
vêm depois da Terra. A superioridade numérica dos Espíritos bons dá-lhes
preponderância sobre os Espíritos inferiores, do que resulta uma ordem social
mais perfeita, relações menos egoístas e, consequentemente, condições de
existência mais felizes. A Lua e Vênus encontram-se mais ou menos no mesmo grau
e, sob todos os aspectos, mais adiantados que Mercúrio e Saturno. Juno[3]
e Urano seriam ainda superiores a estes últimos. Pode supor-se que os elementos
morais desses dois planetas são formados das primeiras classes da Terceira Ordem
e, em sua grande maioria, de Espíritos da Segunda Ordem. Os homens são ali
infinitamente mais felizes que na Terra, em razão de não terem de sustentar as
mesmas lutas, nem sofrer as mesmas tribulações, assim como não se acham
expostos às mesmas vicissitudes físicas e morais.
De todos os planetas, o mais
adiantado sob todos os aspectos é Júpiter. É o reino exclusivo do bem e da
justiça, porquanto só tem Espíritos bons. Pode fazer-se uma ideia do estado
feliz de seus habitantes pelo quadro que demos de um mundo habitado apenas por
Espíritos da Segunda Ordem.
A superioridade de Júpiter não
está somente no estado moral de seus habitantes; está também na sua
constituição física. Eis a descrição que nos foi dada desse mundo privilegiado,
onde encontramos a maior parte dos homens de bem que honraram nossa Terra por
suas virtudes e talentos.
A conformação do corpo é mais ou
menos a mesma daqui, porém é menos material, menos denso e de uma maior leveza específica.
Enquanto rastejamos penosamente na Terra, o habitante de Júpiter transporta-se
de um a outro lugar, deslizando sobre a superfície do solo, quase sem fadiga,
como o pássaro no ar ou o peixe na água. Sendo mais depurada a matéria de que é
formado o corpo, dispersa-se após a morte sem ser submetida à decomposição pútrida.
Ali não se conhece a maioria das moléstias que nos afligem, sobretudo as que se
originam dos excessos de todo gênero e da devastação das paixões. A alimentação
está em relação com essa organização etérea; não seria suficientemente
substancial para os nossos estômagos grosseiros, sendo a nossa por demais
pesada para eles; compõe-se de frutos e plantas; de alguma sorte, aliás, a maior
parte eles a haurem no meio ambiente, cujas emanações nutritivas aspiram. A
duração da vida é, proporcionalmente, muito maior que na Terra; a média equivale
a cerca de cinco dos nossos séculos; o desenvolvimento é também muito mais
rápido e a infância dura apenas alguns de nossos meses.
Sob esse leve envoltório, os
Espíritos se desprendem facilmente e entram em comunicação recíproca apenas
pelo pensamento, sem, todavia, excluir a linguagem articulada; para a maior parte
deles, também, a segunda vista é uma faculdade permanente; seu estado normal
pode ser comparado ao de nossos sonâmbulos lúcidos; eis por que se nos
manifestam mais facilmente do que os encarnados nos mundos mais grosseiros e
mais materiais. A intuição que têm do seu futuro, a segurança dada por uma
consciência isenta de remorsos fazem que a morte não lhes cause nenhuma
apreensão; veem-na chegar sem temor e como simples transformação.
Os animais não estão excluídos
desse estado progressivo, sem se aproximarem, contudo, daquele do homem; seu corpo,
mais material, prende-se à terra, como os nossos. Sua inteligência é mais
desenvolvida que a dos nossos animais; a estrutura de seus membros presta-se a
todas as exigências do trabalho; são encarregados da execução de obras manuais:
são os serviçais e os operários; as ocupações dos homens são puramente intelectuais.
Para os animais o homem é uma divindade tutelar que jamais abusa do poder para
os oprimir.
Quando se comunicam conosco, os
Espíritos que habitam Júpiter geralmente sentem prazer em descrever o seu
planeta; ao se lhes pedir a razão, respondem que o fazem com o fito de nos
inspirarem o amor do bem, com a esperança de lá chegarmos um dia. Foi com essa
intenção que um deles, que viveu na Terra com o nome de Bernard Palissy,
célebre oleiro do século XVI, ofereceu-se espontaneamente, sem que ninguém lhe
pedisse, para elaborar uma série de desenhos, tão notáveis por sua
singularidade quanto pelo talento de execução, destinados a dar-nos a conhecer,
até nos menores detalhes, esse mundo tão estranho e tão novo para nós. Alguns
retratam personagens, animais, cenas da vida privada; os mais impressionantes, porém,
são os que representam habitações, verdadeiras obras-primas de que coisa alguma
na Terra nos poderia dar uma ideia, porque em nada se assemelham ao que
conhecemos; é um gênero de arquitetura indescritível, tão original e,
entretanto, tão harmoniosa, de uma ornamentação tão rica e tão graciosa que
desafia a mais fecunda imaginação. O Sr. Victorien Sardou, jovem literato de
nossas relações, cheio de talento e de futuro, mas de forma alguma desenhista,
serviu lhe de intermediário. Palissy prometeu-nos uma série de desenhos que, de
certo modo, será a monografia ilustrada desse mundo maravilhoso. Esperamos que
essa curiosa e interessante coletânea, sobre a qual voltaremos em artigo
especial consagrado aos médiuns desenhistas, possa um dia ser liberada ao
público.
O planeta Júpiter, apesar do
quadro sedutor que nos foi dado, não é, absolutamente, o mais perfeito dos
mundos. Outros há, desconhecidos para nós, que lhe são muito superiores, do
ponto de vista físico e moral, e cujos habitantes gozam de felicidade ainda mais
perfeita; são a morada dos Espíritos mais elevados, cujo etéreo envoltório nada
mais tem das propriedades conhecidas da matéria.
Já nos perguntaram diversas
vezes se pensamos que a condição do homem terreno seria um obstáculo absoluto à
sua passagem, sem intermediário, da Terra para Júpiter. A todas as perguntas
que dizem respeito à Doutrina Espírita, jamais respondemos conforme nossas
próprias ideias, contra as quais estamos sempre em guarda. Limitamo-nos a
transmitir o ensino que nos é dado pelos Espíritos, não os aceitando de forma
leviana e com irrefletido entusiasmo. À pergunta acima respondemos claramente,
porque tal é o sentido formal de nossas instruções e o resultado de nossas
próprias observações: Sim; deixando a Terra, pode o homem ir imediatamente a
Júpiter, ou a outro mundo análogo, pois que não é o único dessa categoria.
Pode-se ter certeza disso? Não. Contudo poderá ele ir, visto haver na Terra,
embora em pequeno número, Espíritos muito bons e suficientemente
desmaterializados para não se sentirem deslocados num mundo onde o mal não tem
acesso. Não há certeza, porque o homem pode iludir-se sobre o seu mérito
pessoal ou tem que cumprir, alhures, outra missão. Seguramente, os que podem
esperar esse favor não são os egoístas, nem os ambiciosos, nem os avarentos,
nem os ingratos, nem os ciumentos, nem os orgulhosos, nem os vaidosos, nem os
hipócritas, nem os sensuais ou qualquer daqueles que se deixaram dominar pelo
apego aos bens terrestres; a esses, serão necessárias, talvez, longas e rudes
provas. Isso depende da sua vontade.
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