Allan Kardec
O fato seguinte nos é relatado
por um dos nossos correspondentes de Maine-et-Loire, o Sr. doutor E. Champneuf.
Embora em si mesmo o fato não
saia do círculo dos fenômenos conhecidos de manifestações físicas, é instrutivo
no sentido de provar, uma vez mais, a diversidade dos tipos que se encontram no
mundo invisível, e que, aí entrando, certos Espíritos não se despojam
imediatamente de seu caráter. É o que se ignorava, antes que o Espiritismo nos
tivesse posto em relação com os habitantes desse mundo. Eis o relato que nos é
dirigido:
Permiti-me vos dar a conhecer um fato bastante curioso,
não de um transporte, mas de uma subtração por um Espírito, produzida há oito
dias em nosso meio.
Há um Espírito, frequentador do nosso grupo de Saumur há
vários anos, que, desde algum tempo, se fez ainda mais familiar do nosso grupo
de Vernantes. Disse chamar-se Flageolet; mas nosso médium, pelo qual se fez
reconhecer, e que, com efeito, o conheceu quando vivia neste mundo, nos disse
que ele tinha o nome de Biron, violinista, muito corajoso, boêmio, correndo
tabernas onde fazia dançar. É um Espírito leviano, mistificador, mas não é mau.
Assim, Flageolet instalou-se em casa de meu irmão, onde ocorrem
nossas sessões. E os almoços e jantares são alegrados pelas árias tocadas, que
lhe pedem ou não, feliz quando os copos e os pratos não são derrubados por seus
gracejos deveras escandalosos.
Há oito dias meu irmão, que fuma bastante, tinha, como de ordinário,
sua tabaqueira ao seu lado, sobre a mesa e, como também de costume, Flageolet
assistia ao jantar de família.
Após algumas árias e marchas, o Espírito se pôs a tocar a
ária: Tenho bom tabaco em minha tabaqueira. Nesse momento meu irmão
procurou a sua, que não estava mais ao seu lado; relanceou o olhar em torno de
si, remexeu os bolsos, nada. A mesma ária continua com mais animação; ele se
levanta, explora a mesinha da chaminé, os móveis, leva as investigações até os
cômodos vizinhos e a ária da tabaqueira, cantada com mais vigor, o persegue com
redobrada zombaria, à medida que ele se afasta e se anima em suas buscas. Se se
aproxima da chaminé, as batidas tornam-se mais fortes e mais precipitadas.
Enfim o procurador, irritado com essa harmonia impiedosa, pensa em Flageolet e
lhe diz:
– Foste tu que
pegaste minha tabaqueira?
– Sim.
– Queres me
devolver?
– Sim.
– Pois bem! Fala.
Tomaram o alfabeto e um lápis e o Espírito dita: Eu a
pus no fogo. Remexem as cinzas muito quentes e ali encontram, no fundo da
lareira, a tabaqueira, cujo pó estava calcinado.
Todos os dias há alguma surpresa de sua parte ou algum
truque à sua maneira. Há três dias ele nos deu a conhecer o conteúdo de um
cesto bem amarrado, que acabava de chegar.
Ontem à noite, era uma nova malícia contra meu irmão.
Este, durante o dia, entrando em casa procura o boné que usa no interior e, não
o encontrando, decide não pensar mais no caso. À noite, Flageolet, sem dúvida
aborrecido de tocar suas árias sem que lhe dessem atenção, e sem que pensassem
em o interrogar, pediu para escrever. Pusemo-nos à sua disposição e ele ditou:
– Eu surrupiei teu barrete.
– Queres dizer onde está?
– Sim.
– Onde o colocaste?
– Eu o dei a Napoleão.
Persuadidos de que era uma brincadeira do Espírito,
perguntamos:
– Qual?
– O teu.
Desde alguns anos há uma estátua de Napoleão I, de médio
porte, na sala onde se realizam as nossas sessões. Dirigimo-nos para a estátua,
lâmpada na mão, e encontramos o boné desaparecido, que recobria o pequeno
chapéu histórico.
Observação – Tudo, no Espiritismo, é assunto
de estudo para o observador sério; fatos aparentemente insignificantes têm sua
causa e esta causa pode ligar-se aos mais importantes princípios. As grandes
leis da Natureza não se revelam no menor inseto, como no animal gigantesco? No
grão de areia que cai, como no movimento dos astros? O botânico despreza uma
flor porque é humilde e sem brilho? Dá-se o mesmo na ordem moral, onde tudo tem
o seu valor filosófico, como na ordem física tudo tem o seu valor científico.
Enquanto certas pessoas não verão no fato acima relatado
senão uma coisa curiosa, divertida, um assunto de distração, outros aí verão
uma aplicação da lei que rege a marcha progressiva dos seres inteligentes e
colherão um ensinamento.
Sendo o mundo invisível o meio onde fatalmente desemboca a Humanidade,
nada do que pode ajudar a torná-lo conhecido poderia ser indiferente. O
mundo corporal e o mundo espiritual, desaguando incessantemente um no outro,
pelas mortes e pelos nascimentos, se explicam um pelo outro. Eis uma das
grandes leis reveladas pelo Espiritismo.
O caráter desse Espírito não é o de uma criança travessa?
Entretanto, em vida era um homem feito e mesmo de certa idade. Então alguns
Espíritos retornariam crianças? Não; o Espírito realmente adulto não volta
atrás, como o rio não remonta à sua fonte. Mas a idade do corpo não é
absolutamente um índice da idade do Espírito. Como é necessário que todos os
Espíritos que se encarnam passem pela infância corporal, resulta que em
corpos de crianças se encontram, forçosamente, Espíritos adiantados.
Ora, se esses Espíritos morrem prematuramente, revelam sua superioridade
desde que se despojaram de seu envoltório. Pela mesma razão, um Espírito jovem,
espiritualmente falando, não podendo chegar à maturidade no curso de uma
existência, que é menos que uma hora em relação à vida do Espírito, um corpo adulto
pode encerrar um Espírito criança, pelo caráter e pelo desenvolvimento moral.
Flageolet pertencia incontestavelmente a esta última categoria
de Espíritos; avançará mais rapidamente que outros, porque apenas tem em si a
leviandade, e no fundo não é mau. O meio sério no qual se manifesta, o contato
de homens esclarecidos amadurecerão suas ideias; sua educação é uma tarefa que
lhes incumbe, ao passo que nada ganharia com pessoas fúteis, que se teriam
divertido com suas facécias, como com as de um palhaço.
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