Allan Kardec
A inspiração é mais rara que a
alucinação, porque não se prende somente ao estado físico, mas, ainda e
sobretudo, à situação moral do indivíduo predisposto a recebê-la.
Todo homem não dispõe senão de
certa quota de inteligência, que lhe é dado desenvolver por seu
trabalho. Chegado ao ponto culminante que lhe é concedido atingir, para um
momento, depois retorna ao estado primitivo, ao estado de infância, menos essa
mesma inteligência, que em um cresce dia a dia, e no velho diminui, extingue-se
e desaparece. Então, tendo dado tudo, e nada mais podendo acrescentar à bagagem
de seu século, ele parte, mas para ir continuar alhures sua obra interrompida
neste mundo; parte, mas deixando o lugar rejuvenescido para um outro que,
chegando à idade viril, terá o poder de, por sua vez, realizar uma missão maior
e mais útil.
O que chamamos a morte não é
senão o devotamento ao progresso e à Humanidade. Mas nada morre, tudo sobrevive
e se reencontra pela transmissão do pensamento dos seres partidos antes, que
têm ainda, pela parte mais etérea de si mesmos, na pátria deixada, mas não
esquecida, que amam sempre, pois é habitada pelos continuadores de sua vida,
pelos herdeiros de suas ideias, aos quais se comprazem em insuflar por momentos
as que não tiveram tempo de semear em seu redor, ou que não puderam ver
progredir ao sabor de suas esperanças.
Não tendo mais órgãos ao serviço
de sua inteligência, vêm pedir aos homens de boa vontade, que apreciam, que
lhes cedam o lugar por um momento. Sublimes benfeitores ocultos, impregnam seus
irmãos da quintessência de seu pensamento, a fim de que sua obra esboçada
continue e se conclua, passando pelo cérebro dos que podem fazê-la realizar seu
caminho no mundo.
Entre os amigos desaparecidos e
nós, o amor continua, e o amor é a vida. Eles nos falam com a voz de nossa
consciência posta em vigília. Purificados e melhores, não nos trazem senão
coisas puras, isentos que estão de toda parte material, como de todas as
mesquinharias de nossa pobre existência. Eles nos inspiram no sentimento que tinham
neste mundo, mas nesse sentimento desprendido de toda mistura.
Resta-lhes ainda uma parte de si
mesmos para dar: eles no-la trazem, deixando-nos crer que a obtivemos apenas
por nosso trabalho pessoal. Daí essas revelações inesperadas, que confundem a Ciência.
O Espírito de Deus sopra onde quer... Desconhecidos fazem grandes descobertas,
e o mundo oficial das academias aí está para lhes entravar a passagem.
Não pretendemos dizer que, para
ser inspirado, seja indispensável manter-se incessantemente nos estreitos
caminhos do bem e da virtude; entretanto, de ordinário são seres morais aos
quais se vem, muitas vezes como compensação dos males que sofrem por causa dos
outros, conceder manifestações que lhes permitem vingar-se à sua maneira,
trazendo o tributo de alguns benefícios à Humanidade, que os desconhece, zomba
e calunia.
Encontram-se tantas categorias
de inspirações e, por conseguinte, de inspirados, quantas faculdades existem no
cérebro humano para assimilar conhecimentos diferentes.
A luta assusta os Espíritos
depurados, partidos para mundos mais adiantados, e que desejam que os escutem
com docilidade. Por isso os inspirados são geralmente seres puros, ingênuos e
simples, sérios e refletidos, cheios de abnegação e de devotamento, sem
personalidade marcante, de impressões profundas e duráveis, acessíveis às
influências exteriores, sem ideias preconcebidas sobre as coisas que ignoram,
bastante inteligentes para assimilar os pensamentos alheios, mas não moralmente
bastante fortes para os discutir.
Se o inspirado se apega às suas
próprias convicções, de boa-fé toma o seu eco pela advertência das vozes que
nele falam e, também de boa-fé, engana, em vez de esclarecer. A bondade preside
a essas revelações, que jamais ocorrem senão com um objetivo útil e moral, ao
mesmo tempo.
Quando uma dessas organizações
simpáticas é sofredora, devido a uma decepção cruel, ou a um mal físico, um
amigo por ela se interessa e vem, dando outro alimento ao seu pensamento,
trazer alívio para ela própria, mas, sobretudo, para os que lhe são caros.
Não é raro que o inspirado tenha
começado sendo um alucinado. É como
um noviciado, uma preparação de seu cérebro para concentrar seu espírito e
poder aceitar aquilo que lhe dirão.
Porque um inspirado nada pode
formular de concludente em dado momento, não significa que não o possa fazer em
outros. As manifestações ficam livres, espontâneas; vêm quando são necessárias.
Por isso os inspirados, mesmo os melhores, não o são em dia e hora fixos, e as
sessões anunciadas previamente muitas vezes preparam inevitáveis decepções.
Fazendo evocações muito frequentes,
corre-se o risco de não se chegar senão a um estado de superexcitação, mais
vizinho da alucinação que da inspiração. Então não passam de jogos de nossa
imaginação em delírio, em vez dessas luzes do outro mundo, destinadas a
iluminar os passos da Humanidade em sua estrada providencial.
Isto explica esses erros, dos
quais a incredulidade fez uma arma, para negar, de maneira absoluta, a
intervenção dos Espíritos superiores.
Os inspirados o são por todos os
que, partidos antes da hora, têm algo para nos ensinar.
Pode acontecer que a mulher mais
simples, a menos instruída, tenha revelações médicas. Vimos uma que, mesmo sem saber
ler e escrever, achava em si diversos nomes de plantas que podiam curar. A
credulidade popular quase a tinha forçado a explorar essa faculdade. Mas, nem
sempre era igualmente bem esclarecida, mesmo tomando o pulso da pessoa doente,
que com ela se punha em relação; porque ela era também desses fluídicos, dos quais
falaremos daqui a pouco. Embora fraca e delicada, podia, por seu contato,
restabelecer o equilíbrio em quem o necessitava e repor em circulação os
princípios vitais interrompidos. Sem se dar conta disto, muitas vezes fazia,
pelo simples toque, em certas pessoas cujo fluido era idêntico ao seu, mais bem
que os remédios que prescrevia, às vezes, apenas por hábito, e com variantes insignificantes,
fosse qual fosse o mal para o qual a consultavam.
A Providência colocou junto de
cada homem um remédio para cada doença. Apenas existem tantas naturezas diferentes
quantos indivíduos. Os remédios também agem diferentemente sobre cada
organismo, o qual influi sobre os caracteres do mal; e é isto que faz que seja
quase impossível ao médico prescrever o remédio eficaz. Ele conhece os seus
efeitos gerais, mas ignora absolutamente em que sentido agirá sobre tal paciente
que lhe apresentam.
É aqui que brilha a
superioridade dos fluídicos e dos sonâmbulos, porque, quando eles se encontram
em certas condições de simpatia com os que vêm consultá-los, os seres superiores
os guiam com uma quase certa infalibilidade.
Muitas vezes essa inspiração é
inconsciente de si mesma; às vezes um médico, mas apenas junto de certos
doentes, acha de súbito o remédio que os pode curar. Não foi a Ciência que o
guiou, foi a inspiração. A Ciência punha à sua disposição vários modos de
tratamento, mas uma voz interior lhe gritava um nome; foi forçado a dizê-lo, e
esse nome era o do remédio que devia agir, com exclusão de qualquer outro.
O que dizemos da Medicina
existe, da mesma maneira, em todos os outros ramos do trabalho humano. Em
certas horas, o fogo da inspiração nos devora; há que ceder. E se pretendemos concentrar
em nós mesmos o que de nós deve sair, um verdadeiro sofrimento se torna o
castigo de nossa revolta.
Todos aqueles a quem Deus
concedeu o dom sublime de criação, os poetas, os sábios, os artistas, os
inventores, todos têm essas iluminações inesperadas, por vezes numa ordem de
fatos muito diferentes de seus estudos ordinários, caso se tivesse pretendido
violentar a sua vocação. Mas os Espíritos sabem o que devemos e podemos fazer,
e vêm despertar incessantemente em nós as nossas atrações abafadas.
Sabe-se como Molière explicava
essas desigualdades que desfiguram as mais belas peças de Corneille.
“Esse diabo do homem, dizia ele, tem um gênio
familiar, que vem por momentos soprar-lhe ao ouvido coisas sublimes; depois, de
repente planta-o lá, dizendo-lhe: ‘Sai desta como puderes!’ E então não faz
mais nada que valha”.
Molière estava certo. O
orgulhoso gênio de Corneille não tinha a dócil passividade necessária para
suportar toda a inspiração do alto. Os Espíritos o abandonavam, e então ele adormecia,
como por vezes fazia o próprio Homero.
Há os que escutam vozes
interiores, que neles falam; Sócrates e Joana d’Arc eram destes. Outros nada
escutam, mas são constrangidos a obedecer a uma força vitoriosa, que os domina.
Outras vezes, um nome vem ferir
o ouvido do inspirado: é o de um amigo, de um indivíduo que nem mesmo conhece,
do qual apenas ouviu falar. A personalidade desse amigo desconhecido o penetra,
nele se infunde; pouco a pouco pensamentos estranhos vêm substituir os seus.
Por um momento tem o espírito daquele; obedece, escreve, sem saber, mau grado
seu, se necessário, coisas que não sabe. E como essa obediência passiva, ao
qual foi condenado, lhe é difícil de suportar em estado de vigília, foge dessas
coisas escritas sob uma inspiração opressiva, e não as quer ler.
Esses pensamentos podem estar em
desacordo formal com suas crenças, com seus sentimentos, ou antes, com aqueles
que a educação lhe impôs, porque, para que certos Espíritos venham a ele, é
preciso que exista alguma relação entre eles. Dão-lhe o pensamento,
deixando-lhe o cuidado de achar a forma. É preciso, pois, que saibam que sua
inteligência os pode compreender e assimilar momentaneamente suas ideias, para
as traduzir.
É raro que as circunstâncias
tenham permitido que nos desenvolvamos no sentido de nossas aptidões inatas. Os
Espíritos mais adiantados sabem que corda é preciso tocar, para que esta entre
em vibração. Ela havia ficado muda, porque tinham atacado outras, desprezando
aquela. Por um momento eles lhe dão a vida. É um germe por muito tempo abafado,
que eles fecundam. Depois o inspirado, voltando ao seu estado habitual, não se
lembra mais, pois vive uma existência dupla, cada uma das quais independe da outra.
Entretanto, acontece também que
conserve uma maior facilidade de compreensão, e conquiste um maior
desenvolvimento intelectual. É a recompensa do esforço que fez, para dar uma
forma compreensível aos pensamentos que outros vieram lhe revelar.
Não acreditamos que todo
inspirado possa conhecer tudo. Cada um, conforme suas predisposições naturais,
muitas vezes mantidas com desconhecimento dele próprio e dos outros, é
inspirado por tal ou qual coisa, mas não o é igualmente por todas. Com efeito,
existem naturezas de tal modo antipáticas a certos conhecimentos, que os
Espíritos não virão jamais bater numa porta que sabem não poder abrir.
Só em certa medida o futuro é
conhecido pelos inspirados. Assim, não é certo dizer que um inspirado predisse
para que mundo tal pessoa irá após a morte, e que julgamento Deus pronunciará
contra ela. Isto é um jogo de imaginação alucinada. Por mais alto que o homem
tenha subido na escala dos mundos, não conhece qual será o destino de seu
irmão. É a parte reservada a Deus: jamais a criatura poderá usurpar os seus
direitos.
Sim, há manifestações, mas não
são contínuas, e nossa impaciência a seu respeito muitas vezes é condenável.
Sim, tudo se mantém e nada se
rompe no imenso Universo. Sim, existe entre esta existência e as outras um laço
simpático e indissolúvel, que liga e une uns aos outros todos os membros da
família humana, e que permite aos melhores vir nos dar o conhecimento do que
não sabemos. É por esse trabalho que se realiza o progresso; quer se chame
trabalho da inteligência ou da inspiração, é a mesma coisa. A inspiração é o
progresso superior, é o fundo: o trabalho pessoal aí põe a forma, juntando
ainda a quintessência dos conhecimentos anteriormente adquiridos.
Nenhuma invenção nos pertence
particularmente, porque outros lançaram antes a semente que recolhemos. Aplicamos
à obra que queremos perseguir as forças e o trabalho da Natureza, que é de
todos, e sem o auxílio da qual nada se faz, depois as forças e o trabalho
acumulados por aqueles que nos prepararam os meios de triunfar.
A bem dizer, tudo é obra comum e
coletiva, para confirmar ainda esse grande princípio de solidariedade e de associação,
que é a base das sociedades e da lei de toda Criação.
O trabalho do homem jamais será
tornado inútil pela inspiração. O Espírito que no-lo vem trazer respeitará
sempre esta parte reservada ao indivíduo; ele a respeitará como uma coisa nobre
e santa, pois o trabalho põe o homem na posse das faculdades que Deus depositou
em germe em sua alma, a fim de que o objetivo de sua vida fosse de as fecundar.
É por seu desenvolvimento que bem aprendeu a conhecer-se, e que mereceu
aproximar-se dele.
A inspiração vem indiferentemente
de dia, de noite, em vigília e durante o sono. Apenas exige recolhimento. É-lhe
preciso encontrar naturezas que possam abstrair-se de toda preocupação do mundo
real, para dar lugar livre e vago ao ser que vier envolve-lo todo e lhe infundir
seus pensamentos.
Nas horas de inspiração, o homem
se torna muito mais acessível a todos os ruídos exteriores, e tudo o que vem do
mundo real o perturba. Não mais está neste mundo, está num meio transitório,
entre este e o outro, visto estar, de certo modo, impregnado da pessoa moral e
intelectual de um ser elevado a uma outra esfera e que, no entanto, seu corpo
se prende a este.
Embora se dirija a todos, a
inspiração descerá mais especialmente sobre as naturezas doentias ou consumidas
por uma sucessão de sofrimentos, materiais ou morais. Já que é um benefício,
não é justo que os que sofrem sejam mais facilmente aptos a recebê-la?
A alucinação é um estado
doentio, que o magnetismo pode modificar de maneira salutar. A inspiração é uma
assimilação moral que se deve evitar provocar por passes magnéticos. O alucinado
se entrega de bom grado a arroubos e a contorções ridículas. O inspirado é
calmo.
Os inspirados são melancólicos.
Necessitam ser refletidos; para ser alegre não há que refletir muito; é preciso
gozar, na sua saúde, de um equilíbrio que nem sempre possuem. Mas não vamos
pensar que sejam difíceis e fantasiosos. Ao contrário, mostram-se dóceis e
acessíveis com aqueles a quem amam.
Há inspirados de vários graus.
Uns vêm dizer-vos coisas palpáveis, fatos de segunda vista, para que se possa
constatar a realidade da iniciação. Outros, mais clarividentes e pouco preocupados
com os procedimentos materiais, cujos segredos não são chamados a divulgar,
repetem, como lhes vêm, os pensamentos trazidos por Espíritos de progresso. Os
primeiros curam o corpo, os segundos são os médicos da alma.
A missão dos mais modestos
limita-se a revelar como essas coisas lhes vêm. É um fato constatado que forças
adiantadas de muitos graus vêm sobre nós, para nos dominar e nos inspirar. Para
que o repetir? Acredite quem quiser. Mas sendo bem estabelecidas as
constatações, não se deve tomar dos inspirados senão o lado útil e sério. Pouco
importa, se as ideias são boas, de que fonte provêm.
Eug. Bonnemère
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