terça-feira, 28 de junho de 2022

OS ALUCINADOS[1]

 

Allan Kardec

 

Temos pouco a dizer sobre a alucinação, estado provocado por uma causa moral, que influi sobre o físico e à qual se mostram mais acessíveis as naturezas nervosas, sempre mais prontas a impressionar-se.

Sobretudo as mulheres, por sua organização íntima, são levadas à exaltação, e a febre se apresenta nelas, o mais das vezes, acompanhada de delírio, que toma as aparências da loucura momentânea.

A alucinação, é preciso reconhecer, por um pequeno lado toca a loucura, assim como todas as superexcitações cerebrais; e enquanto o delírio se manifesta sobretudo por palavras incoerentes, a alucinação representa mais particularmente a ação, a encenação. Contudo, é injustamente que por vezes as confundem.

Vítima de uma espécie de febre interior, que não se traduz externamente por nenhuma perturbação aparente dos órgãos, o alucinado vive em meio ao mundo imaginário que cria, por um momento, sua imaginação perturbada; tudo está em desordem, nele como em torno dele; leva tudo ao extremo: por vezes a alegria, a tristeza quase sempre, e as lágrimas rolam nos olhos, enquanto seus lábios fingem um sorriso doentio.

Essas visões fantásticas existem para ele; ele as vê, as toca e se assusta com elas. Não obstante, conserva o exercício da vontade; conversa com os interlocutores e lhes oculta o objeto de seus terrores ou de suas sombrias preocupações.

Conhecemos um que, durante cerca de seis meses, assistia todas as manhãs ao enterro de seu corpo, tendo plena consciência de que sua alma sobrevivia. Nada parecia mudado nos seus hábitos de vida e, contudo, esse pensamento incessante, essa visão mesma por vezes o seguia em todos os lugares. A palavra morte ressoava incessantemente em seu ouvido. Quando o Sol brilhava, dissipava a noite ou atravessava a nuvem, a horrível visão se desvanecia pouco a pouco, acabando por desaparecer. À noite adormecia, triste e desesperado, porque sabia que horrível despertar o aguardava no dia seguinte.

Por vezes, quando o excesso de sofrimento físico impunha silêncio à sua vontade e lhe tirava esse poder de dissimulação, que de ordinário conservava, exclamava de repente: – Ah! ei-los!... eu os vejo!... E então descrevia aos que o cercavam com mais intimidade os detalhes da lúgubre cerimônia, relatava as cenas sinistras que se desdobravam aos seus olhos, ou rondas de personagens fantásticas que desfilavam à sua frente.

O alucinado vos dirá as loucas percepções de seu cérebro doente, mas não tem nada a vos repetir do que outros viessem lhe revelar; porque, para ser inspirado, é preciso que a paz e a harmonia reinem em vossa alma, e que estejais isento de todo pensamento material ou mesquinho; algumas vezes a disposição doentia provoca a inspiração; é, então, como um socorro que os amigos partidos antes vêm vos trazer para vos aliviar.

Esse louco, que ontem gozava da plenitude da razão, não apresenta desordens exteriores perceptíveis ao olho do observador; são, entretanto, numerosas, existem e são reais. Muitas vezes o mal está na alma, lançada fora de si mesma pelo excesso de trabalho, de alegria, de dor; o homem físico não está mais em equilíbrio com o homem moral; o choque moral foi mais violento do que o físico pode suportar: daí o cataclismo.

O alucinado sofre igualmente as consequências de uma perturbação grave em seu organismo nervoso. Mas – o que raramente acontece na loucura – neles essas desordens são intermitentes e tão mais facilmente curáveis quanto sua vida é, de certo modo, dupla, pois pensa com a vida real e sonha com a vida fantástica.

Esta última é, por vezes, o despertar de sua alma doente e, se se o escutar com inteligência, chegar-se-á a descobrir a causa do mal, que muitas vezes ele quer ocultar. Entre o fluxo das palavras incoerentes, que lança fora uma pessoa em delírio, e que parecem em nada se referir às causas prováveis de sua doença, encontrar-se-á uma que voltará sem cessar, que ela queria reter e que, contudo, escapa. Essa é a verdadeira causa e que é preciso combater.

Mas o trabalho é longo e difícil, porque o alucinado é um hábil comediante e, se percebe que o observam, seu espírito se lança em estranhos desvios e toma as aparências da loucura para escapar a essa pressão importante, que pareceis decidido a exercer sobre ele. É, pois, necessário estudá-lo com extremo tato, sem jamais o contradizer ou tentar retificar os erros de seu cérebro em delírio.

São estas as diversas fases de excitações cerebrais, ou antes, de excitações do ser todo inteiro, pois não é preciso localizar a sede da inteligência. A alma humana, que a dá, plana por toda parte; é o sopro do alto, que faz vibrar e agir a máquina toda inteira.

O alucinado pode, de boa-fé, julgar-se inspirado e profetizar, quer tenha consciência do que diz, quer os que o rodeiam possam, só eles e mau grado seu, recolher suas palavras.

Mas dar fé às indicações de um alucinado seria se preparar estranhas decepções, e é assim que muitas vezes têm levado ao passivo da inspiração os erros que não eram senão o fruto da alucinação.

O físico é coisa material, sensível, exposta à luz, que cada um pode ver, admirar, criticar, cuidar ou tentar endireitar. Mas quem pode conhecer o homem moral? Quando nos ignoramos a nós mesmos, como nos julgarão os outros? Se nós lhes entregamos alguns dos nossos pensamentos, são muito mais ainda os que subtraímos aos seus olhares e que gostaríamos de ocultar a nós mesmos.

Essa dissimulação é quase um crime social. Criados para o progresso, nossa alma, nosso coração, nossa inteligência são feitos para se derramarem sobre todos os irmãos da grande família, para lhes prodigalizar tudo quanto está em nós, como para se enriquecer ao mesmo tempo com tudo o que nos podem comunicar.

A expansão recíproca é, pois, a grande lei humanitária, e a concentração, isto é, a dissimulação de nossas ações, de nossos pensamentos, de nossas aspirações é uma espécie de roubo que cometemos em prejuízo de todo o mundo. Que progresso se fará, se guardarmos em nós tudo o que a Natureza e a educação aí puseram, e se cada um agir do mesmo modo a nosso respeito?

Exilados voluntários e nos mantendo fora do comércio de nossos irmãos, nós nos concentramos numa ideia fixa; a imaginação obsedada procura a isto subtrair-se, perseguindo toda sorte de pensamentos inconsequentes, e assim se pode chegar até a loucura, justo castigo que nos é infligido por não termos querido marchar em nossas vias naturais.

Vivamos, pois, nos outros e eles em nós, a fim de que todos não sejamos senão um. As grandes alegrias, como as grandes dores, nos partem quando não são confiadas a um amigo. Toda solidão é má e condenada, e toda coisa contrária ao voto da Natureza traz como consequências inevitáveis imensas desordens interiores.



[1] Revista Espírita – Fevereiro/1868 – Allan Kardec

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