Allan Kardec
Temos pouco a dizer sobre a
alucinação, estado provocado por uma causa moral, que influi sobre o físico e à
qual se mostram mais acessíveis as naturezas nervosas, sempre mais prontas a impressionar-se.
Sobretudo as mulheres, por sua
organização íntima, são levadas à exaltação, e a febre se apresenta nelas, o
mais das vezes, acompanhada de delírio, que toma as aparências da loucura
momentânea.
A alucinação, é preciso
reconhecer, por um pequeno lado toca a loucura, assim como todas as
superexcitações cerebrais; e enquanto o delírio se manifesta sobretudo por
palavras incoerentes, a alucinação representa mais particularmente a ação, a
encenação. Contudo, é injustamente que por vezes as confundem.
Vítima de uma espécie de febre
interior, que não se traduz externamente por nenhuma perturbação aparente dos
órgãos, o alucinado vive em meio ao mundo imaginário que cria, por um momento,
sua imaginação perturbada; tudo está em desordem, nele como em torno dele; leva
tudo ao extremo: por vezes a alegria, a tristeza quase sempre, e as lágrimas
rolam nos olhos, enquanto seus lábios fingem um sorriso doentio.
Essas visões fantásticas existem
para ele; ele as vê, as toca e se assusta com elas. Não obstante, conserva o
exercício da vontade; conversa com os interlocutores e lhes oculta o objeto de
seus terrores ou de suas sombrias preocupações.
Conhecemos um que, durante cerca
de seis meses, assistia todas as manhãs ao enterro de seu corpo, tendo plena
consciência de que sua alma sobrevivia. Nada parecia mudado nos seus hábitos de
vida e, contudo, esse pensamento incessante, essa visão mesma por vezes o
seguia em todos os lugares. A palavra morte ressoava incessantemente em seu
ouvido. Quando o Sol brilhava, dissipava a noite ou atravessava a nuvem, a
horrível visão se desvanecia pouco a pouco, acabando por desaparecer. À noite
adormecia, triste e desesperado, porque sabia que horrível despertar o
aguardava no dia seguinte.
Por vezes, quando o excesso de
sofrimento físico impunha silêncio à sua vontade e lhe tirava esse poder de
dissimulação, que de ordinário conservava, exclamava de repente: – Ah!
ei-los!... eu os vejo!... E então descrevia aos que o cercavam com mais
intimidade os detalhes da lúgubre cerimônia, relatava as cenas sinistras que se
desdobravam aos seus olhos, ou rondas de personagens fantásticas que desfilavam
à sua frente.
O alucinado vos dirá as loucas
percepções de seu cérebro doente, mas não tem nada a vos repetir do que outros
viessem lhe revelar; porque, para ser inspirado, é preciso que a paz e a
harmonia reinem em vossa alma, e que estejais isento de todo pensamento
material ou mesquinho; algumas vezes a disposição doentia provoca a inspiração;
é, então, como um socorro que os amigos partidos antes vêm vos trazer para vos
aliviar.
Esse louco, que ontem gozava da
plenitude da razão, não apresenta desordens exteriores perceptíveis ao olho do
observador; são, entretanto, numerosas, existem e são reais. Muitas vezes o mal
está na alma, lançada fora de si mesma pelo excesso de trabalho, de alegria, de
dor; o homem físico não está mais em equilíbrio com o homem moral; o choque
moral foi mais violento do que o físico pode suportar: daí o cataclismo.
O alucinado sofre igualmente as consequências
de uma perturbação grave em seu organismo nervoso. Mas – o que raramente
acontece na loucura – neles essas desordens são intermitentes e tão mais
facilmente curáveis quanto sua vida é, de certo modo, dupla, pois pensa com a
vida real e sonha com a vida fantástica.
Esta última é, por vezes, o
despertar de sua alma doente e, se se o escutar com inteligência, chegar-se-á a
descobrir a causa do mal, que muitas vezes ele quer ocultar. Entre o fluxo das
palavras incoerentes, que lança fora uma pessoa em delírio, e que parecem em
nada se referir às causas prováveis de sua doença, encontrar-se-á uma que
voltará sem cessar, que ela queria reter e que, contudo, escapa. Essa é a
verdadeira causa e que é preciso combater.
Mas o trabalho é longo e
difícil, porque o alucinado é um hábil comediante e, se percebe que o observam,
seu espírito se lança em estranhos desvios e toma as aparências da loucura para
escapar a essa pressão importante, que pareceis decidido a exercer sobre ele.
É, pois, necessário estudá-lo com extremo tato, sem jamais o contradizer ou
tentar retificar os erros de seu cérebro em delírio.
São estas as diversas fases de
excitações cerebrais, ou antes, de excitações do ser todo inteiro, pois não é
preciso localizar a sede da inteligência. A alma humana, que a dá, plana por
toda parte; é o sopro do alto, que faz vibrar e agir a máquina toda inteira.
O alucinado pode, de boa-fé,
julgar-se inspirado e profetizar, quer tenha consciência do que diz, quer os
que o rodeiam possam, só eles e mau grado seu, recolher suas palavras.
Mas dar fé às indicações de um
alucinado seria se preparar estranhas decepções, e é assim que muitas vezes têm
levado ao passivo da inspiração os erros que não eram senão o fruto da
alucinação.
O físico é coisa material,
sensível, exposta à luz, que cada um pode ver, admirar, criticar, cuidar ou
tentar endireitar. Mas quem pode conhecer o homem moral? Quando nos ignoramos a
nós mesmos, como nos julgarão os outros? Se nós lhes entregamos alguns dos
nossos pensamentos, são muito mais ainda os que subtraímos aos seus olhares e
que gostaríamos de ocultar a nós mesmos.
Essa dissimulação é quase um
crime social. Criados para o progresso, nossa alma, nosso coração, nossa
inteligência são feitos para se derramarem sobre todos os irmãos da grande
família, para lhes prodigalizar tudo quanto está em nós, como para se enriquecer
ao mesmo tempo com tudo o que nos podem comunicar.
A expansão recíproca é, pois, a
grande lei humanitária, e a concentração, isto é, a dissimulação de nossas
ações, de nossos pensamentos, de nossas aspirações é uma espécie de roubo que cometemos
em prejuízo de todo o mundo. Que progresso se fará, se guardarmos em nós tudo o
que a Natureza e a educação aí puseram, e se cada um agir do mesmo modo a nosso
respeito?
Exilados voluntários e nos
mantendo fora do comércio de nossos irmãos, nós nos concentramos numa ideia
fixa; a imaginação obsedada procura a isto subtrair-se, perseguindo toda sorte
de pensamentos inconsequentes, e assim se pode chegar até a loucura, justo
castigo que nos é infligido por não termos querido marchar em nossas vias
naturais.
Vivamos, pois, nos outros e eles
em nós, a fim de que todos não sejamos senão um. As grandes alegrias, como as
grandes dores, nos partem quando não são confiadas a um amigo. Toda solidão é
má e condenada, e toda coisa contrária ao voto da Natureza traz como consequências
inevitáveis imensas desordens interiores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário