terça-feira, 24 de maio de 2022

MANIFESTAÇÃO ANTES DA MORTE[1]

 

Allan Kardec

 

A carta seguinte nos foi dirigida de Marennes, em janeiro último:

 

Senhor Allan Kardec,

Creio que teria faltado ao meu dever se, no começo deste ano, não tivesse vindo agradecer-vos a boa lembrança que houvestes por bem conservar de mim, dirigindo a Deus novas preces pelo meu restabelecimento. Sim, senhor, elas me foram salutares e nelas bem reconheço a vossa boa influência, bem como a dos Espíritos bons que vos cercam; porque, desde 14 de maio, eu era obrigada a guardar o leito de vez em quando, em consequência de febres malignas que me tinham posto num estado muito triste.

Há um mês estou melhor; agradeço-vos mil vezes, rogando-vos agradecer, em meu nome, a todos os nossos irmãos da Sociedade de Paris, que quiseram unir as suas preces às vossas.

Como sabeis, muitas vezes tive manifestações. Mas uma das mais extraordinárias é a do fato que vou relatar.

No mês de maio último, meu pai veio a Marennes passar alguns dias conosco. Mal chegou, caiu doente e morreu ao cabo de oito dias. Sua morte me causou uma dor tanto mais viva, quanto dela eu tinha sido avisada seis meses antes, mas não havia dado crédito. Eis o fato:

No mês de dezembro precedente, sabendo que ele devia vir, tinha mobiliado um quartinho para ele, e meu desejo era que ninguém ali dormisse antes dele. Desde que manifestei tal pensamento, tive a intuição de que quem se deitasse naquela cama lá morreria, e esta ideia, que me perseguia incessantemente, apertava-me o coração a ponto de não ousar mais ir àquele quarto.

Contudo, na esperança de me desembaraçar dela, fui orar junto ao leito. Julguei ali ver um corpo amortalhado; para me assegurar, levantei o cobertor e nada vi. Então me disse que esses pressentimentos não passavam de ilusões ou de resultados de obsessões. No mesmo instante ouvi suspiros como de uma pessoa que acaba, depois senti minha mão direita apertada fortemente por uma mão quente e úmida. Saí do quarto e ali não mais ousei entrar só. Durante seis meses fui atormentada por esse triste aviso e ninguém lá dormiu antes da chegada de meu pai. Foi lá que ele morreu. Seus últimos suspiros foram os mesmos que eu tinha ouvido e, antes de morrer, sem que lhe pedisse, ele me tomou a mão direita e a apertou da mesma maneira que eu tinha sentido seis meses antes; a sua tinha o suor tépido que eu havia igualmente notado. Não posso, pois, duvidar que tenha sido um aviso que foi dado.

Tive muitas outras provas da intervenção dos Espíritos, mas que seria demasiado longo vos detalhar numa carta. Não lembrarei senão o fato de uma discussão de quatro horas que tive no mês de agosto último com dois sacerdotes, e durante a qual me senti verdadeiramente inspirada e forçada a falar com uma facilidade de que eu própria fiquei surpresa. Lamento não poder relatar-vos esta conversa. Isto não vos surpreenderia, mas vos divertiria.

Recebei etc.

Angelina de Ogé

 

Há todo um estudo a fazer sobre esta carta. De início, aí vemos um estímulo a orar pelos doentes, depois, uma nova prova da assistência dos Espíritos pela inspiração das palavras que se devem pronunciar em circunstâncias em que se estaria muito embaraçado para falar se se estivesse entregue às próprias forças. É, talvez, um dos gêneros mais comuns de mediunidade, e que vem confirmar o princípio de que todo mundo é mais ou menos médium sem o suspeitar. Seguramente, se cada um se reportasse às diversas circunstâncias de sua vida e observasse com cuidado os efeitos que ressente ou de que foi testemunha, não haveria ninguém que não reconhecesse ter alguns efeitos de mediunidade inconsciente.

Mas o fato mais saliente é o do aviso da morte do pai da senhora de Ogé, e o pressentimento com que foi perseguida durante seis meses. Sem dúvida, quando ela foi orar naquele quarto, e creu ver um corpo no leito, que constatou estar vazio, poder-se-ia, com alguma verossimilhança, admitir o efeito de uma imaginação ferida. O mesmo poderia dar-se com os suspiros que ela ouviu. A pressão da mão também poderia ser atribuída a um efeito nervoso, provocado pela superexcitação de seu espírito. Mas como explicar a coincidência de todos esses fatos com o que se passou quando da morte de seu pai? A incredulidade dirá: puro efeito do acaso; diz o Espiritismo: fenômeno natural devido à ação de fluidos cujas propriedades até hoje foram desconhecidas, submetidas à lei que rege as relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

O Espiritismo, ligando às leis da Natureza a maior parte dos fenômenos reputados sobrenaturais, vem precisamente combater o fanatismo e o maravilhoso, que o acusam de querer fazer reviver; ele dá dos que são possíveis uma explicação racional, e demonstra a impossibilidade dos que seriam uma derrogação das leis da Natureza. A causa de uma imensidão de fenômenos está no princípio espiritual, cuja existência vêm provar. Mas como os que negam esse princípio podem admitir as suas consequências? Aquele que nega a alma e a vida extracorporal não pode reconhecer os seus efeitos.

Para os espíritas, o fato de que se trata nada tem de surpreendente e se explica, por analogia, com uma multidão de fatos do mesmo gênero, cuja autenticidade não pode ser contestada. Entretanto, as circunstâncias em que se produziu apresentam uma dificuldade; mas o Espiritismo jamais disse que não tinha mais nada a aprender. Ele possui uma chave, cujas aplicações ainda está longe de compreender na sua inteireza; aplica-se a estudá-las, a fim de chegar a um conhecimento tão completo quanto possível das forças naturais e do mundo invisível, no meio do qual vivemos, mundo que nos interessa a todos, porque todos, sem exceção, devemos nele entrar mais cedo ou mais tarde, e vemos todos os dias, pelo exemplo dos que partem, a vantagem de o conhecer antecipadamente.

Nunca repetiríamos em demasia: O Espiritismo não faz nenhuma teoria preconcebida; vê, observa, estuda os efeitos e dos efeitos procura remontar às causas, de tal sorte que, quando formula um princípio ou uma teoria, sempre se apoia na experiência. É, pois, rigorosamente certo dizer que é uma ciência de observação. Os que fingem nele não ver senão uma obra de imaginação, provam que lhe ignoram as primeiras palavras.

Se o pai da senhora de Ogé tivesse morrido, sem que ela o soubesse, na época em que sentiu os efeitos de que falamos, esses efeitos se explicariam da maneira mais simples. Desprendido do corpo, o Espírito teria vindo a ela avisá-la de sua partida deste mundo, e atestar sua presença por uma manifestação sensível, com o auxílio de seu fluido perispiritual; isto é muito frequente.

Compreendemos perfeitamente que aqui o efeito é devido ao mesmo princípio fluídico, isto é, à ação do perispírito; mas, como a ação material do corpo, que ocorreu no momento da morte, pôde produzir-se identicamente seis meses antes dessa morte, quando nada de ostensivo, doença ou outra causa, podia fazê-la pressentir?

Eis a explicação a respeito, dada na Sociedade de Paris:

“O Espírito do pai dessa senhora, em estado de desprendimento, tinha um conhecimento antecipado de sua morte e da maneira por que ela se daria. Sua vista espiritual abarcando um certo espaço de tempo, para ele é como se a coisa estivesse presente, embora no estado de vigília não lhe conservasse qualquer lembrança. Foi ele próprio que se manifestou à sua filha, seis meses antes, nas condições que deviam se produzir, a fim de que, mais tarde, ela soubesse que era ele e que, estando preparada para uma separação próxima, não ficasse surpreendida com a sua partida. Ela mesma, como Espírito, tinha conhecimento disto, porque os dois Espíritos se comunicavam em seus momentos de liberdade. É o que lhe dava a intuição de que alguém devia morrer naquele quarto.

Essa manifestação ocorreu igualmente com o objetivo de fornecer um assunto de instrução a respeito do conhecimento do mundo invisível”.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1868 - Allan Kardec

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