Allan Kardec
A carta seguinte nos foi
dirigida de Marennes, em janeiro último:
Senhor Allan Kardec,
Creio que teria faltado ao meu dever se, no começo
deste ano, não tivesse vindo agradecer-vos a boa lembrança que houvestes por
bem conservar de mim, dirigindo a Deus novas preces pelo meu restabelecimento.
Sim, senhor, elas me foram salutares e nelas bem reconheço a vossa boa
influência, bem como a dos Espíritos bons que vos cercam; porque, desde 14 de maio,
eu era obrigada a guardar o leito de vez em quando, em consequência de febres
malignas que me tinham posto num estado muito triste.
Há um mês estou melhor; agradeço-vos mil vezes,
rogando-vos agradecer, em meu nome, a todos os nossos irmãos da Sociedade de
Paris, que quiseram unir as suas preces às vossas.
Como sabeis, muitas vezes tive manifestações. Mas uma
das mais extraordinárias é a do fato que vou relatar.
No mês de maio último, meu pai veio a Marennes passar
alguns dias conosco. Mal chegou, caiu doente e morreu ao cabo de oito dias. Sua
morte me causou uma dor tanto mais viva, quanto dela eu tinha sido avisada seis
meses antes, mas não havia dado crédito. Eis o fato:
No mês de dezembro precedente, sabendo que ele devia
vir, tinha mobiliado um quartinho para ele, e meu desejo era que ninguém ali
dormisse antes dele. Desde que manifestei tal pensamento, tive a intuição de
que quem se deitasse naquela cama lá morreria, e esta ideia, que me perseguia
incessantemente, apertava-me o coração a ponto de não ousar mais ir àquele
quarto.
Contudo, na esperança de me desembaraçar dela, fui orar
junto ao leito. Julguei ali ver um corpo amortalhado; para me assegurar,
levantei o cobertor e nada vi. Então me disse que esses pressentimentos não
passavam de ilusões ou de resultados de obsessões. No mesmo instante ouvi
suspiros como de uma pessoa que acaba, depois senti minha mão direita apertada
fortemente por uma mão quente e úmida. Saí do quarto e ali não mais ousei
entrar só. Durante seis meses fui atormentada por esse triste aviso e ninguém
lá dormiu antes da chegada de meu pai. Foi lá que ele morreu. Seus últimos
suspiros foram os mesmos que eu tinha ouvido e, antes de morrer, sem que lhe
pedisse, ele me tomou a mão direita e a apertou da mesma maneira que eu tinha
sentido seis meses antes; a sua tinha o suor tépido que eu havia igualmente
notado. Não posso, pois, duvidar que tenha sido um aviso que foi dado.
Tive muitas outras provas da intervenção dos Espíritos,
mas que seria demasiado longo vos detalhar numa carta. Não lembrarei senão o
fato de uma discussão de quatro horas que tive no mês de agosto último com dois
sacerdotes, e durante a qual me senti verdadeiramente inspirada e forçada a
falar com uma facilidade de que eu própria fiquei surpresa. Lamento não poder
relatar-vos esta conversa. Isto não vos surpreenderia, mas vos divertiria.
Recebei etc.
Angelina de Ogé
Há todo um estudo a fazer sobre
esta carta. De início, aí vemos um estímulo a orar pelos doentes, depois, uma
nova prova da assistência dos Espíritos pela inspiração das palavras que se
devem pronunciar em circunstâncias em que se estaria muito embaraçado para
falar se se estivesse entregue às próprias forças. É, talvez, um dos gêneros
mais comuns de mediunidade, e que vem confirmar o princípio de que todo mundo é
mais ou menos médium sem o suspeitar. Seguramente, se cada um se reportasse às
diversas circunstâncias de sua vida e observasse com cuidado os efeitos que
ressente ou de que foi testemunha, não haveria ninguém que não reconhecesse ter
alguns efeitos de mediunidade inconsciente.
Mas o fato mais saliente é o do
aviso da morte do pai da senhora de Ogé, e o pressentimento com que foi
perseguida durante seis meses. Sem dúvida, quando ela foi orar naquele quarto,
e creu ver um corpo no leito, que constatou estar vazio, poder-se-ia, com
alguma verossimilhança, admitir o efeito de uma imaginação ferida. O mesmo
poderia dar-se com os suspiros que ela ouviu. A pressão da mão também poderia
ser atribuída a um efeito nervoso, provocado pela superexcitação de seu
espírito. Mas como explicar a coincidência de todos esses fatos com o que se
passou quando da morte de seu pai? A incredulidade dirá: puro efeito do acaso;
diz o Espiritismo: fenômeno natural devido à ação de fluidos cujas propriedades
até hoje foram desconhecidas, submetidas à lei que rege as relações do mundo
espiritual com o mundo corporal.
O Espiritismo, ligando às leis
da Natureza a maior parte dos fenômenos reputados sobrenaturais, vem
precisamente combater o fanatismo e o maravilhoso, que o acusam de querer fazer
reviver; ele dá dos que são possíveis uma explicação racional, e demonstra a
impossibilidade dos que seriam uma derrogação das leis da Natureza. A causa de
uma imensidão de fenômenos está no princípio espiritual, cuja existência vêm
provar. Mas como os que negam esse princípio podem admitir as suas consequências?
Aquele que nega a alma e a vida extracorporal não pode reconhecer os seus efeitos.
Para os espíritas, o fato de que
se trata nada tem de surpreendente e se explica, por analogia, com uma multidão
de fatos do mesmo gênero, cuja autenticidade não pode ser contestada.
Entretanto, as circunstâncias em que se produziu apresentam uma dificuldade;
mas o Espiritismo jamais disse que não tinha mais nada a aprender. Ele possui
uma chave, cujas aplicações ainda está longe de compreender na sua inteireza;
aplica-se a estudá-las, a fim de chegar a um conhecimento tão completo quanto
possível das forças naturais e do mundo invisível, no meio do qual vivemos,
mundo que nos interessa a todos, porque todos, sem exceção, devemos nele entrar
mais cedo ou mais tarde, e vemos todos os dias, pelo exemplo dos que partem, a
vantagem de o conhecer antecipadamente.
Nunca repetiríamos em demasia: O
Espiritismo não faz nenhuma teoria preconcebida; vê, observa, estuda os efeitos
e dos efeitos procura remontar às causas, de tal sorte que, quando formula um
princípio ou uma teoria, sempre se apoia na experiência. É, pois, rigorosamente
certo dizer que é uma ciência de observação. Os que fingem nele não ver senão
uma obra de imaginação, provam que lhe ignoram as primeiras palavras.
Se o pai da senhora de Ogé
tivesse morrido, sem que ela o soubesse, na época em que sentiu os efeitos de
que falamos, esses efeitos se explicariam da maneira mais simples. Desprendido
do corpo, o Espírito teria vindo a ela avisá-la de sua partida deste mundo, e
atestar sua presença por uma manifestação sensível, com o auxílio de seu fluido
perispiritual; isto é muito frequente.
Compreendemos perfeitamente que
aqui o efeito é devido ao mesmo princípio fluídico, isto é, à ação do
perispírito; mas, como a ação material do corpo, que ocorreu no momento da
morte, pôde produzir-se identicamente seis meses antes dessa morte, quando nada
de ostensivo, doença ou outra causa, podia fazê-la pressentir?
Eis a explicação a respeito,
dada na Sociedade de Paris:
“O Espírito do pai dessa senhora, em estado de desprendimento,
tinha um conhecimento antecipado de sua morte e da maneira por que ela se
daria. Sua vista espiritual abarcando um certo espaço de tempo, para ele é como
se a coisa estivesse presente, embora no estado de vigília não lhe conservasse
qualquer lembrança. Foi ele próprio que se manifestou à sua filha, seis meses antes,
nas condições que deviam se produzir, a fim de que, mais tarde, ela soubesse
que era ele e que, estando preparada para uma separação próxima, não ficasse
surpreendida com a sua partida. Ela mesma, como Espírito, tinha conhecimento
disto, porque os dois Espíritos se comunicavam em seus momentos de liberdade. É
o que lhe dava a intuição de que alguém devia morrer naquele quarto.
Essa manifestação ocorreu igualmente com o objetivo de
fornecer um assunto de instrução a respeito do conhecimento do mundo invisível”.
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