terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

DEUS NA NATUREZA[1] ₋₋ Por Camille Flammarion[2]

 

Allan Kardec

 

Como se sabe, depois de haver tratado, do ponto de vista da Ciência, a questão da habitabilidade dos mundos, que se liga intimamente ao Espiritismo, o Sr. Flammarion hoje aborda a demonstração de uma outra verdade, incontestavelmente a mais capital, porque é a pedra angular do edifício social, aquela sem a qual o Espiritismo não teria sua razão de ser: A existência de Deus.

O título de sua obra – Deus na Natureza – resume toda a sua economia; logo de saída ele diz que não é um livro litúrgico, nem místico, mas filosófico.

Do cepticismo de um grande número de sábios, concluiu-se erradamente que, por si mesma, a Ciência era atéia, ou conduzia fatalmente ao ateísmo. É um erro que o Sr. Flammarion se empenha em refutar, demonstrando que se os cientistas não viram Deus em suas pesquisas, foi porque não o quiseram ver.

Aliás, estão longe de ser ateus todos os sábios, embora muitas vezes se confunda o cepticismo relativo aos dogmas particulares de tal ou qual culto com o ateísmo. O Sr. Flammarion se dirige especialmente à classe dos filósofos, que abertamente fazem profissão de materialismo.

Diz ele:

O homem traz em sua natureza uma necessidade tão imperiosa de se deter numa convicção, particularmente do ponto de vista da existência de um ordenador do mundo e do destino dos seres, que se nenhuma fé o satisfaz, ele sente necessidade de demonstrar a si mesmo que Deus não existe, buscando o repouso de sua alma no ateísmo e na doutrina do nada.

Assim, a questão atual que nos apaixona não é mais saber qual a  forma do Criador, o caráter da mediação, a influência da graça, nem discutir o valor dos argumentos teológicos: a verdadeira questão é saber se Deus existe ou não existe.

Nesse trabalho o autor procedeu da mesma maneira que na sua Pluralidade dos mundos habitados, colocando-se no próprio terreno de seus adversários. Se tivesse haurido seus argumentos na teologia, no Espiritismo ou em doutrinas espiritualistas quaisquer, teria estabelecido premissas que seriam rejeitadas. É por isso que toma a dos negadores e demonstra, pelos próprios fatos, que se chega a uma conclusão diametralmente oposta; não invoca novos argumentos controvertíveis; não se perde nas nuvens da metafísica, do subjetivo e do objetivo, nas argúcias da dialética; fica no terreno do positivismo; combate os ateus com suas próprias armas. Tomando um a um os seus argumentos, ele os destrói com o auxílio da mesma ciência que invocam. Não se apoia na opinião dos homens; sua autoridade é a Natureza e aí mostra Deus em tudo e por toda parte.

A natureza explicada pela Ciência, diz ele, no-lo mostrou num caráter particular. Ele está lá, visível, como a força íntima de todas as coisas. Nenhuma poesia humana nos pareceu comparável à verdade natural, e o verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza, do que o homem nos seus mais pomposos cantos.

Dissemos os motivos que levaram o Sr. Flammarion a colocar-se fora do Espiritismo, e não podemos senão louvá-lo. Se algumas pessoas pensavam que foi por antagonismo pela doutrina, bastaria, para desenganá-los, citar a passagem seguinte:

Poderíamos acrescentar, para fechar o capítulo da personalidade humana, algumas reflexões sobre certos assuntos de estudo ainda misteriosos, mas não insignificantes. O sonambulismo natural, o magnetismo, o Espiritismo oferecem aos experimentadores sérios, que os sabem examinar cientificamente, fatos característicos, que bastariam para demonstrar a insuficiência das teorias materialistas. Confessamos que é triste, para o observador consciencioso, ver o charlatanismo descarado insinuar sua avidez pérfida em causas que deveriam ser respeitadas; é triste constatar que noventa e nove fatos em cem podem ser falsos ou imitados; mas um único fato bem constatado lança por terra todas as negações. Ora, que partido tomam certas doutas personagens diante dos fatos? Simplesmente os negam.

A Ciência não duvida – disse em particular o Sr. Buchner – que todos os casos de pretensa clarividência sejam efeitos de astúcia e de conluio. A lucidez é, por razões naturais, uma impossibilidade. Está nas leis da Natureza que os efeitos dos sentidos sejam reduzidos a certos limites do espaço, que não podem ser transpostos. Ninguém tem a faculdade de adivinhar os pensamentos, nem ver com os olhos fechados o que se passa à sua volta. Estas verdades são baseadas nas leis naturais, que são imutáveis e não comportam exceções.

Ora, senhor juiz, então conheceis perfeitamente as leis naturais? Homem feliz! Como sucumbis sob o excesso de vossa ciência! Mas, que? Volto duas páginas e eis o que leio:

“O sonambulismo é um fenômeno do qual infelizmente não temos senão observações muito inexatas, embora fosse desejável que dele tivéssemos noções precisas, dada a sua importância para a Ciência. Contudo, sem ter dele dados certos (escutai!), pode-se relegar entre as fábulas todos os fatos maravilhosos que se contam dos sonâmbulos. Não é dado a um sonâmbulo escalar paredes etc. Ah! Senhor, como raciocinais com sabedoria! E como vos teria feito bem, antes de escrever, saber um pouco o que pensais”!

Uma apreciação analítica da obra exigiria desenvolvimentos que a falta de espaço nos interdiz e, aliás, seria supérfluo. Bastaria mostrar o ponto de vista em que se colocou o autor para se compreender a sua utilidade. Reconciliar a Ciência com as ideias espiritualistas, é aplainar as vias de sua aliança com o Espiritismo. O autor fala em nome da ciência pura, e não de uma ciência fantasista ou superficial, e o faz com a autoridade que lhe dá seu saber pessoal. Seu livro é um desses que tem lugar marcado nas bibliotecas espíritas, porque é uma monografia de uma das partes constituintes da doutrina, onde o crente encontra para se instruir tanto quanto o incrédulo. Teremos mais de uma vez ocasião de a ele voltar.

Allan Kardec



[1] Revista Espírita – Setembro/1867 – Allan Kardec

[2] Um grande volume in-12. Preço: 4 fr. Paris, Didier et Comp., quai des Grands-Augustins, 35.

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