Allan Kardec
Como se sabe, depois de haver
tratado, do ponto de vista da Ciência, a questão da habitabilidade dos mundos,
que se liga intimamente ao Espiritismo, o Sr. Flammarion
hoje aborda a demonstração de uma outra verdade, incontestavelmente a mais
capital, porque é a pedra angular do edifício social, aquela sem a qual o
Espiritismo não teria sua razão de ser: A existência de Deus.
O título de sua obra – Deus
na Natureza – resume toda a sua economia; logo de saída ele diz que não é
um livro litúrgico, nem místico, mas filosófico.
Do cepticismo de um grande
número de sábios, concluiu-se erradamente que, por si mesma, a Ciência era
atéia, ou conduzia fatalmente ao ateísmo. É um erro que o Sr. Flammarion se
empenha em refutar, demonstrando que se os cientistas não viram Deus em suas
pesquisas, foi porque não o quiseram ver.
Aliás, estão longe de ser ateus
todos os sábios, embora muitas vezes se confunda o cepticismo relativo aos
dogmas particulares de tal ou qual culto com o ateísmo. O Sr. Flammarion se
dirige especialmente à classe dos filósofos, que abertamente fazem profissão de
materialismo.
Diz ele:
O homem traz em sua natureza uma necessidade tão
imperiosa de se deter numa convicção, particularmente do ponto de vista da
existência de um ordenador do mundo e do destino dos seres, que se nenhuma fé o
satisfaz, ele sente necessidade de demonstrar a si mesmo que Deus não existe,
buscando o repouso de sua alma no ateísmo e na doutrina do nada.
Assim, a questão atual que nos apaixona não é mais
saber qual a forma do Criador, o caráter
da mediação, a influência da graça, nem discutir o valor dos argumentos
teológicos: a verdadeira questão é saber se Deus existe ou não existe.
Nesse trabalho o autor procedeu
da mesma maneira que na sua Pluralidade dos mundos habitados,
colocando-se no próprio terreno de seus adversários. Se tivesse haurido seus
argumentos na teologia, no Espiritismo ou em doutrinas espiritualistas
quaisquer, teria estabelecido premissas que seriam rejeitadas. É por isso que
toma a dos negadores e demonstra, pelos próprios fatos, que se chega a uma
conclusão diametralmente oposta; não invoca novos argumentos controvertíveis;
não se perde nas nuvens da metafísica, do subjetivo e do objetivo, nas argúcias
da dialética; fica no terreno do positivismo; combate os ateus com suas
próprias armas. Tomando um a um os seus argumentos, ele os destrói com o
auxílio da mesma ciência que invocam. Não se apoia na opinião dos homens; sua
autoridade é a Natureza e aí mostra Deus em tudo e por toda parte.
A natureza explicada pela Ciência, diz ele, no-lo mostrou
num caráter particular. Ele está lá, visível, como a força íntima de todas as
coisas. Nenhuma poesia humana nos pareceu comparável à verdade natural, e o
verbo eterno nos falou com mais eloquência nas mais modestas obras da Natureza,
do que o homem nos seus mais pomposos cantos.
Dissemos os motivos que levaram
o Sr. Flammarion a colocar-se fora do Espiritismo, e não podemos senão
louvá-lo. Se algumas pessoas pensavam que foi por antagonismo pela doutrina, bastaria,
para desenganá-los, citar a passagem seguinte:
Poderíamos acrescentar, para fechar o capítulo da personalidade
humana, algumas reflexões sobre certos assuntos de estudo ainda misteriosos,
mas não insignificantes. O sonambulismo natural, o magnetismo, o Espiritismo
oferecem aos experimentadores sérios, que os sabem examinar cientificamente,
fatos característicos, que bastariam para demonstrar a insuficiência das
teorias materialistas. Confessamos que é triste, para o observador consciencioso,
ver o charlatanismo descarado insinuar sua avidez pérfida em causas que
deveriam ser respeitadas; é triste constatar que noventa e nove fatos em cem
podem ser falsos ou imitados; mas um único fato bem constatado lança por terra
todas as negações. Ora, que partido tomam certas doutas personagens diante dos
fatos? Simplesmente os negam.
A Ciência não duvida – disse em
particular o Sr. Buchner – que todos os casos de pretensa clarividência sejam efeitos
de astúcia e de conluio. A lucidez é, por razões naturais, uma impossibilidade.
Está nas leis da Natureza que os efeitos dos sentidos sejam reduzidos a certos
limites do espaço, que não podem ser transpostos. Ninguém tem a faculdade de
adivinhar os pensamentos, nem ver com os olhos fechados o que se passa à sua volta.
Estas verdades são baseadas nas leis naturais, que são imutáveis e não
comportam exceções.
Ora, senhor juiz, então conheceis perfeitamente as leis
naturais? Homem feliz! Como sucumbis sob o excesso de vossa ciência! Mas, que?
Volto duas páginas e eis o que leio:
“O sonambulismo é um fenômeno do qual infelizmente não
temos senão observações muito inexatas, embora fosse desejável que dele
tivéssemos noções precisas, dada a sua importância para a Ciência. Contudo,
sem ter dele dados certos (escutai!), pode-se relegar entre as fábulas
todos os fatos maravilhosos que se contam dos sonâmbulos. Não é dado a um
sonâmbulo escalar paredes etc. Ah! Senhor, como raciocinais com sabedoria! E como
vos teria feito bem, antes de escrever, saber um pouco o que pensais”!
Uma apreciação analítica da obra
exigiria desenvolvimentos que a falta de espaço nos interdiz e, aliás, seria
supérfluo. Bastaria mostrar o ponto de vista em que se colocou o autor para se
compreender a sua utilidade. Reconciliar a Ciência com as ideias
espiritualistas, é aplainar as vias de sua aliança com o Espiritismo. O autor
fala em nome da ciência pura, e não de uma ciência fantasista ou superficial, e
o faz com a autoridade que lhe dá seu saber pessoal. Seu livro é um desses que
tem lugar marcado nas bibliotecas espíritas, porque é uma monografia de
uma das partes constituintes da doutrina, onde o crente encontra para se instruir
tanto quanto o incrédulo. Teremos mais de uma vez ocasião de a ele voltar.
Allan Kardec
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