Allan Kardec
O Figaro de 5 de julho último dava conta, nestes termos, de um
julgamento pronunciado pelo tribunal de Bordeaux:
Nestes últimos tempos,
a grande paixão em Bordeaux era ir consultar o feiticeiro de Cauderan.
Avalia-se em mil ou mil e duzentos o número de visitas que ele recebia
diariamente. A polícia, que faz profissão de cepticismo, inquietou-se com
semelhante sucesso e quis proceder a uma investigação judicial no castelo de
Bel-Air, onde o feiticeiro estabelecera o seu domicílio. Nos arredores da
morada do feiticeiro encontrava-se uma multidão que se dizia afetada de toda
sorte de doenças; grandes damas também aí vinham de carruagem para consultar o
iluminado.
Assim que
interrogaram o feiticeiro, os magistrados não duvidaram que se tratasse de um
pobre louco, explorado pelos mesmos que lhe davam hospedagem. Por isso, o
feiticeiro Simonet não foi incluído na perseguição, que se limitou em se
dirigir contra os irmãos Barbier, hábeis comparsas que recolhiam todos os
lucros da credulidade gascã.
Como verdadeiros
gascões que eram, adornavam sua casa como um castelo, a qual tinha sido
convertida em albergue; apenas os vinhos que eles aí produziam nada tinham de
comum com os que no Languedoc são chamados vinho de Château; e, depois, tinham
esquecido de se prover de uma licença, de modo que a administração das
contribuições indiretas movia um processo contra eles.
O feiticeiro Simonet
era citado como testemunha.
– Onde aprendestes a Medicina, se sois simples
caldeireiro?
– E que pensais da
revelação? Quem eram, então, os discípulos do Cristo? Que faziam esses pobres
pescadores, que converteram o mundo? Deus me apareceu; deu-me sua ciência e eu
não preciso de remédios: sou um médico curador.
– Onde aprendestes tudo isto?
– Em Allan Kardec...
e mesmo, Senhor Presidente, eu vo-lo digo com todo o respeito possível,
pareceis não conhecer a ciência do Espiritismo, e eu vos exorto muitíssimo a
estudá-la. (Hilaridade a que não resistiram os próprios juízes).
– Abusais da credulidade pública. Assim, para citar apenas
um exemplo, há um pobre cego que toda Bordeaux conhece. Ele teve a fraqueza de
ir a vós e vos levava os óbolos que recolhia da caridade pública.
Restituíste-lhe a vista?
– Eu não curo todo o
mundo, mas forçoso é crer que eu faça curas, pois no dia em que a justiça
chegou, havia mais de 1.500 pessoas que esperavam sua vez.
– Infelizmente é verdade.
O Sr. Procurador
Imperial – E se isto continuar, tomaremos uma dessas duas medidas: ou vos intimaremos aqui por vigarice – e a justiça
apreciará se sois louco – ou tomaremos uma medida administrativa contra vós. É
preciso proteger as pessoas honestas contra sua incredulidade. No castelo de
Bel-Air não pediam dinheiro aos consulentes; apenas lhes distribuíam um número
de ordem, pelo qual pagavam vinte centavos; depois havia os que traficavam com
esses números, revendendo-os por até quinze francos. Enfim, davam de comer aos
pobres camponeses, vindos algumas vezes dos limites do Departamento. Havia uma
caixa de esmolas para os pobres; desnecessário dizer que os hospedeiros do
feiticeiro se apossavam do dinheiro dos pobres.
O tribunal condenou
os senhores Barbier a dois meses e um mês de prisão e 300 francos por
contribuições indiretas.
Ad.
Rocher
Eis a verdade sobre Simonet, e
de que maneira sua faculdade se revelou.
Os senhores Barbier construíram
em Cauderan, subúrbio de Bordeaux, um vasto estabelecimento, como há vários no
bairro, destinado a bailes, núpcias e banquetes, e ao qual deram o nome de Château du Bel-Air, o que não é mais gascão[2]
que o Château-Rouge ou o Château des Fleurs de Paris. Simonet ali trabalhava
como marceneiro, e não como caldeireiro. Durante os trabalhos de
construção, acontecia muitas vezes que operários se ferissem ou adoecessem.
Simonet, espírita desde muito tempo, e conhecendo um pouco de magnetismo, foi
levado instintivamente, e sem desígnio premeditado, a deles cuidar pela
influência fluídica, e curou a muitos. O ruído dessas curas espalhou-se e logo
ele viu uma multidão de doentes acorrer a ele, tanto é certo que, faça-se o que
se fizer, não se tirará dos doentes o desejo de serem curados, não importa por
quem. Sabemos por testemunhas oculares que a média dos que se apresentavam era
de mais de mil por dia. A estrada estava atulhada de carros de todo tipo,
vindos de várias léguas de distância, de charretes ao lado de equipagens. Havia
pessoas que passavam a noite à espera de sua vez.
Mas nesta multidão havia pessoas
que necessitavam beber e comer. Os empreiteiros do estabelecimento os
forneciam, e isto se tornou para eles um bom negócio. Quanto a Simonet, que era
uma fonte de lucros indiretos, pelo menos era hospedado e alimentado, e não se
lhe poderia fazer qualquer exprobração. Como se acotovelavam à porta, para
evitar confusão, tomaram o sábio partido de dar um número de ordem aos que chegavam;
mas tiveram a ideia menos feliz de cobrar dez centavos por número e, mais
tarde, vinte centavos, o que, em razão da afluência, dava por dia uma soma bem
avultada. Por menor que fosse essa retribuição, todos os espíritas, e o próprio
Simonet, que nada tinha com isto, a viram com pesar, pressentindo o efeito
funesto que isto produziria.
Quanto ao tráfico dos bilhetes,
parece certo que algumas pessoas mais apressadas, para serem atendidas mais
cedo, compravam o lugar dos pobres que estavam à sua frente, muito contentes
com esta fortuna. Nisto não há grande mal, mas podia e devia necessariamente
resultar em abuso. Foram tais abusos que motivaram a ação judiciária, dirigida
contra os senhores Barbier, como tendo aberto um estabelecimento de consumo
antes de se haverem munido de uma patente. Quanto a Simonet, não foi posto em
causa, mas simplesmente citado como testemunha.
A reprovação geral que se liga à
exploração, em casos análogos ao de Simonet, é digna de nota. Parece que um
sentimento instintivo leva os próprios incrédulos a ver no desinteresse
absoluto uma prova de sinceridade, que inspira uma espécie de respeito
involuntário; não creem na faculdade; ridicularizam-na, mas alguma coisa lhes
diz que se ela existe, deve ser uma coisa santa, que não pode, sem profanação,
tornar-se uma profissão. Limitam-se a dizer: é um pobre louco de boa-fé; mas
todas as vezes que a especulação, seja qual for a sua forma, se mistura a uma
mediunidade qualquer, a crítica se julga dispensada de qualquer consideração.
Simonet cura realmente? Pessoas
dignas de fé, muito dignas, e que antes teriam interesse em desmascarar a
fraude do que preconizá-la, nos citaram numerosos casos de cura perfeitamente
autênticos. Aliás, parece-nos que se não tivesse curado ninguém, já teria perdido
todo o crédito. Além disso, ele não tem a pretensão de curar todo o mundo; nada
promete; diz que a cura não depende dele, mas de Deus, do qual não passa de um
instrumento, e cuja assistência deve ser implorada; recomenda a prece e ele
próprio ora.
Lamentamos muito não ter podido
vê-lo durante nossa estada em Bordeaux; mas todos os que o conhecem concordam
em dizer que é um homem afável, simples e modesto, sem jactância nem bravata,
que não procura prevalecer-se de uma faculdade que sabe que lhe pode ser retirada.
É benevolente com os doentes, que encoraja por boas palavras. O interesse que
lhes devota não se baseia na posição que ocupam; tem tanta solicitude pelo mais
miserável quanto pelo mais rico. Se a cura não for instantânea, o que ocorre no
mais das vezes, ele aí põe toda a firmeza necessária.
Eis o que nos foi dito.
Ignoramos quais serão para ele as consequências deste caso, mas é certo que, se
for sincero e perseverar nos sentimentos de que parece animado, não lhe
faltarão a assistência e a proteção dos Espíritos bons; ele verá sua faculdade
desenvolver-se e crescer, ao passo que a veria declinar e perder-se se entrasse
num mau caminho, sobretudo se dela se envaidecesse.
Nota – No
momento de ir para o prelo, soubemos que, em consequência da fadiga para ele
resultante do longo e penoso exercício de sua faculdade, mais do que para
escapar aos aborrecimentos de que era objeto, Simonet resolveu suspender
qualquer recepção até nova ordem. Se os doentes sofrem por esta abstenção, ao
menos se produziu um grande efeito.
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