terça-feira, 14 de dezembro de 2021

SIMONET - MÉDIUM CURADOR DE BORDEAUX[1]

 

Allan Kardec

 

O Figaro de 5 de julho último dava conta, nestes termos, de um julgamento pronunciado pelo tribunal de Bordeaux:

Nestes últimos tempos, a grande paixão em Bordeaux era ir consultar o feiticeiro de Cauderan. Avalia-se em mil ou mil e duzentos o número de visitas que ele recebia diariamente. A polícia, que faz profissão de cepticismo, inquietou-se com semelhante sucesso e quis proceder a uma investigação judicial no castelo de Bel-Air, onde o feiticeiro estabelecera o seu domicílio. Nos arredores da morada do feiticeiro encontrava-se uma multidão que se dizia afetada de toda sorte de doenças; grandes damas também aí vinham de carruagem para consultar o iluminado.

Assim que interrogaram o feiticeiro, os magistrados não duvidaram que se tratasse de um pobre louco, explorado pelos mesmos que lhe davam hospedagem. Por isso, o feiticeiro Simonet não foi incluído na perseguição, que se limitou em se dirigir contra os irmãos Barbier, hábeis comparsas que recolhiam todos os lucros da credulidade gascã.

Como verdadeiros gascões que eram, adornavam sua casa como um castelo, a qual tinha sido convertida em albergue; apenas os vinhos que eles aí produziam nada tinham de comum com os que no Languedoc são chamados vinho de Château; e, depois, tinham esquecido de se prover de uma licença, de modo que a administração das contribuições indiretas movia um processo contra eles.

O feiticeiro Simonet era citado como testemunha.

– Onde aprendestes a Medicina, se sois simples caldeireiro?

– E que pensais da revelação? Quem eram, então, os discípulos do Cristo? Que faziam esses pobres pescadores, que converteram o mundo? Deus me apareceu; deu-me sua ciência e eu não preciso de remédios: sou um médico curador.

– Onde aprendestes tudo isto?

– Em Allan Kardec... e mesmo, Senhor Presidente, eu vo-lo digo com todo o respeito possível, pareceis não conhecer a ciência do Espiritismo, e eu vos exorto muitíssimo a estudá-la. (Hilaridade a que não resistiram os próprios juízes).

– Abusais da credulidade pública. Assim, para citar apenas um exemplo, há um pobre cego que toda Bordeaux conhece. Ele teve a fraqueza de ir a vós e vos levava os óbolos que recolhia da caridade pública. Restituíste-lhe a vista?

– Eu não curo todo o mundo, mas forçoso é crer que eu faça curas, pois no dia em que a justiça chegou, havia mais de 1.500 pessoas que esperavam sua vez.

– Infelizmente é verdade.

O Sr. Procurador Imperial – E se isto continuar, tomaremos uma dessas duas medidas: ou vos intimaremos aqui por vigarice – e a justiça apreciará se sois louco – ou tomaremos uma medida administrativa contra vós. É preciso proteger as pessoas honestas contra sua incredulidade. No castelo de Bel-Air não pediam dinheiro aos consulentes; apenas lhes distribuíam um número de ordem, pelo qual pagavam vinte centavos; depois havia os que traficavam com esses números, revendendo-os por até quinze francos. Enfim, davam de comer aos pobres camponeses, vindos algumas vezes dos limites do Departamento. Havia uma caixa de esmolas para os pobres; desnecessário dizer que os hospedeiros do feiticeiro se apossavam do dinheiro dos pobres.

O tribunal condenou os senhores Barbier a dois meses e um mês de prisão e 300 francos por contribuições indiretas.

Ad. Rocher

 

Eis a verdade sobre Simonet, e de que maneira sua faculdade se revelou.

Os senhores Barbier construíram em Cauderan, subúrbio de Bordeaux, um vasto estabelecimento, como há vários no bairro, destinado a bailes, núpcias e banquetes, e ao qual deram o nome de Château du Bel-Air, o que não é mais gascão[2] que o Château-Rouge ou o Château des Fleurs de Paris. Simonet ali trabalhava como marceneiro, e não como caldeireiro. Durante os trabalhos de construção, acontecia muitas vezes que operários se ferissem ou adoecessem. Simonet, espírita desde muito tempo, e conhecendo um pouco de magnetismo, foi levado instintivamente, e sem desígnio premeditado, a deles cuidar pela influência fluídica, e curou a muitos. O ruído dessas curas espalhou-se e logo ele viu uma multidão de doentes acorrer a ele, tanto é certo que, faça-se o que se fizer, não se tirará dos doentes o desejo de serem curados, não importa por quem. Sabemos por testemunhas oculares que a média dos que se apresentavam era de mais de mil por dia. A estrada estava atulhada de carros de todo tipo, vindos de várias léguas de distância, de charretes ao lado de equipagens. Havia pessoas que passavam a noite à espera de sua vez.

Mas nesta multidão havia pessoas que necessitavam beber e comer. Os empreiteiros do estabelecimento os forneciam, e isto se tornou para eles um bom negócio. Quanto a Simonet, que era uma fonte de lucros indiretos, pelo menos era hospedado e alimentado, e não se lhe poderia fazer qualquer exprobração. Como se acotovelavam à porta, para evitar confusão, tomaram o sábio partido de dar um número de ordem aos que chegavam; mas tiveram a ideia menos feliz de cobrar dez centavos por número e, mais tarde, vinte centavos, o que, em razão da afluência, dava por dia uma soma bem avultada. Por menor que fosse essa retribuição, todos os espíritas, e o próprio Simonet, que nada tinha com isto, a viram com pesar, pressentindo o efeito funesto que isto produziria.

Quanto ao tráfico dos bilhetes, parece certo que algumas pessoas mais apressadas, para serem atendidas mais cedo, compravam o lugar dos pobres que estavam à sua frente, muito contentes com esta fortuna. Nisto não há grande mal, mas podia e devia necessariamente resultar em abuso. Foram tais abusos que motivaram a ação judiciária, dirigida contra os senhores Barbier, como tendo aberto um estabelecimento de consumo antes de se haverem munido de uma patente. Quanto a Simonet, não foi posto em causa, mas simplesmente citado como testemunha.

A reprovação geral que se liga à exploração, em casos análogos ao de Simonet, é digna de nota. Parece que um sentimento instintivo leva os próprios incrédulos a ver no desinteresse absoluto uma prova de sinceridade, que inspira uma espécie de respeito involuntário; não creem na faculdade; ridicularizam-na, mas alguma coisa lhes diz que se ela existe, deve ser uma coisa santa, que não pode, sem profanação, tornar-se uma profissão. Limitam-se a dizer: é um pobre louco de boa-fé; mas todas as vezes que a especulação, seja qual for a sua forma, se mistura a uma mediunidade qualquer, a crítica se julga dispensada de qualquer consideração.

Simonet cura realmente? Pessoas dignas de fé, muito dignas, e que antes teriam interesse em desmascarar a fraude do que preconizá-la, nos citaram numerosos casos de cura perfeitamente autênticos. Aliás, parece-nos que se não tivesse curado ninguém, já teria perdido todo o crédito. Além disso, ele não tem a pretensão de curar todo o mundo; nada promete; diz que a cura não depende dele, mas de Deus, do qual não passa de um instrumento, e cuja assistência deve ser implorada; recomenda a prece e ele próprio ora.

Lamentamos muito não ter podido vê-lo durante nossa estada em Bordeaux; mas todos os que o conhecem concordam em dizer que é um homem afável, simples e modesto, sem jactância nem bravata, que não procura prevalecer-se de uma faculdade que sabe que lhe pode ser retirada. É benevolente com os doentes, que encoraja por boas palavras. O interesse que lhes devota não se baseia na posição que ocupam; tem tanta solicitude pelo mais miserável quanto pelo mais rico. Se a cura não for instantânea, o que ocorre no mais das vezes, ele aí põe toda a firmeza necessária.

Eis o que nos foi dito. Ignoramos quais serão para ele as consequências deste caso, mas é certo que, se for sincero e perseverar nos sentimentos de que parece animado, não lhe faltarão a assistência e a proteção dos Espíritos bons; ele verá sua faculdade desenvolver-se e crescer, ao passo que a veria declinar e perder-se se entrasse num mau caminho, sobretudo se dela se envaidecesse.

 

Nota – No momento de ir para o prelo, soubemos que, em consequência da fadiga para ele resultante do longo e penoso exercício de sua faculdade, mais do que para escapar aos aborrecimentos de que era objeto, Simonet resolveu suspender qualquer recepção até nova ordem. Se os doentes sofrem por esta abstenção, ao menos se produziu um grande efeito.



[1] Revista Espírita – Agosto/1867 – Allan Kardec

[2] Natural da Gasconha. Uma região no sudoeste da França.

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