Allan Kardec
Sob o título de Um Mistério, vários jornais do mês de
maio último relataram o seguinte fato:
Um dia desses, duas
senhoras do bairro de Saint-Germain apresentaram-se ao comissário de seu
quarteirão e lhe chamaram a atenção sobre um tal P..., que, segundo elas,
abusaram de sua confiança e de sua credulidade, afirmando que as curaria de
doenças, contra as quais seus cuidados tinham sido impotentes.
Tendo aberto um
inquérito a respeito, o magistrado soube que P... passava por hábil médico,
cuja clientela aumentava diariamente, e que fazia curas extraordinárias.
Conforme suas
respostas às perguntas do comissário, P... parece convencido de que é dotado de
uma faculdade sobrenatural, que lhe dá o poder de curar apenas pela aposição
das mãos sobre os órgãos doentes.
Durante vinte anos
ele foi cozinheiro; era mesmo citado como hábil em seu ofício, que abandonou há
um ano para consagrar-se à arte de curar.
A acreditar nele, teria tido várias visões e
aparições misteriosas, nas quais um enviado de Deus lhe teria revelado que ele
tinha uma missão humanitária a cumprir na Terra, à qual não devia faltar, sob
pena de ser danado. Obedecendo, disse ele, a essa ordem vinda do céu, o antigo
cozinheiro instalou-se num apartamento da rua Saint-Placide, e os doentes não
tardaram em abundar às suas consultas.
Não receita
medicamentos; examina o paciente, que deve tratar quando em jejum, apalpa-o,
procura e descobre a sede do mal, sobre a qual aplica as mãos em cruz,
pronuncia algumas palavras que são, diz ele, o seu segredo; depois, com a sua
prece, vem um Espírito invisível e arranca o mal.
Certamente P... é um
louco. Mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que provou, como o
constata o inquérito, que curou, por esse processo singular, mais de quarenta
pessoas afetadas de moléstias graves.
Várias lhe
testemunharam o seu reconhecimento por donativos em dinheiro. Conforme
testamento encontrado em sua casa, uma senhora idosa, proprietária nas
cercanias de Fontainebleau, fê-lo herdeiro de uma soma de 40.000 francos.
P... foi detido e
seu processo, que certamente não tardará a correr na polícia correcional,
promete ser curioso.
Não somos apologista nem detrator
do Sr. P..., a quem não conhecemos. Está em boas ou más condições? É sincero ou
charlatão? Ignoramo-lo; é o futuro que o provará; não tomamos partido nem pró
nem contra ele. Mencionamos o fato tal qual é relatado, porque vem juntar-se à ideia
de todos os que acreditam na existência de uma dessas faculdades estranhas, que
confundem a Ciência e os que nada querem admitir fora do mundo visível e
tangível. De tanto ouvir falar nisto e ver os fatos se multiplicando, é-se
forçado a convir que há qualquer coisa e, aos poucos, faz-se a distinção entre
a verdade e a hipocrisia.
No relato que precede, por certo
notaram essa curiosa passagem, e a contradição não menos curiosa que ela
encerra:
Certamente P... é um louco. Mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que provou, como o constata o inquérito, que curou, por esse processo singular, mais
de quarenta pessoas afetadas de moléstias graves.
Assim, o inquérito constata as curas; mas, porque o meio
que emprega é inexplicável e não é reconhecido pela Faculdade, certamente ele é louco. Sendo assim, o
abade príncipe de Hohenlohe, cujas curas maravilhosas relatamos na Revista de dezembro de 1866, era
louco; o
venerável cura d’Ars, que, também ele, fazia curas por singulares
processos, era louco; e tantos outros. O Cristo, que curava sem diploma e não empregava
medicamentos, era louco e teria pago muitas multas em nossos dias. Loucos ou
não, quando há cura, muitas pessoas preferem ser curadas por um louco a ser
enterradas por um homem de bom-senso.
Com um diploma, todas as
excentricidades médicas são permitidas. Um médico, cujo nome esquecemos, mas
que ganha muito dinheiro, emprega um processo muito mais bizarro; com um
pincel, pinta no rosto de seus doentes pequenos losangos vermelhos, amarelos,
verdes, azuis, rodeando os olhos, o nariz e a boca, em quantidade proporcional
à natureza da doença. Sobre que dado científico se baseia este gênero de
medicação? Uma brincadeira de mau gosto de um redator pretendeu que, para
poupar enormes gastos de publicidade, esse médico fazia que os doentes a
veiculassem de graça, no rosto. Vendo nas ruas esses rostos tatuados,
naturalmente pergunta-se o que é. E os doentes respondem: é o processo do
célebre doutor fulano. Mas ele é médico; não importa se seu processo é bom, mau
ou insignificante; tudo lhe é permitido, mesmo ser charlatão: está autorizado
pela Faculdade. Se um indivíduo não diplomado quiser imitá-lo, será perseguido
por vigarice.
Gritam contra a credulidade do
público em relação aos charlatães; admiram-se da afluência de pessoas à casa do
primeiro que surge anunciando um novo método de curar, à casa dos sonâmbulos,
dos impostores e de outros; da predileção pelos remédios das comadres, e se
prendem à inépcia da espécie humana! A primeira causa se deve à vontade muito
natural que têm os doentes de se curar, e ao insucesso da Medicina em
grandíssimo número de casos. Se os médicos curassem com mais frequência e
segurança, não se iria alhures; acontece mesmo quase sempre que não se recorre
a meios excepcionais senão depois de haver esgotado inutilmente os recursos oficiais.
Ora, o doente que quer ser curado a qualquer preço, pouco se inquieta de o ser
segundo a regra, ou contra a regra.
Não repetiremos aqui o que hoje
está claramente demonstrado quanto às causas de certas curas, inexplicáveis
somente para os que não querem dar-se ao trabalho de remontar à fonte do
fenômeno. Se se deu a cura, isto é um fato, e esse fato tem uma causa. Será
mais racional negá-lo do que procurá-lo?
– Dirão que é o acaso; o doente
curou-se sozinho.
– Seja; mas, então, o médico que
o declarou incurável dava prova de grande ignorância.
E, depois, se há vinte,
quarenta, cem curas semelhantes, é sempre o acaso? É preciso convir que seria
um acaso singularmente perseverante e inteligente, ao qual poderia dar-se o
nome de doutor Acaso.
Examinaremos a questão sob um
ponto de vista mais sério.
As pessoas não diplomadas que
tratam os doentes pelo magnetismo; pela água magnetizada, que não é senão uma
dissolução do fluido magnético; pela imposição das mãos, que é uma magnetização
instantânea e poderosa; pela prece, que é uma magnetização mental; com o
concurso dos Espíritos, o que é ainda uma variedade de magnetização, são
passíveis da lei contra o exercício ilegal da Medicina?
Os termos da lei certamente são
muito elásticos, porque ela não especifica os meios. Rigorosamente e
logicamente não se pode considerar como exercendo a arte de curar, senão os que
dela fazem profissão, isto é, que dela tiram proveito. Entretanto, viram-se ser
pronunciadas condenações contra indivíduos que se ocupam desses cuidados por
puro devotamento, sem qualquer interesse, ostensivo ou dissimulado. O delito
está, pois, sobretudo na prescrição de remédios. Contudo, o desinteresse notório geralmente é levado em
consideração como circunstância atenuante.
Até agora não se tinha pensado
que uma cura pudesse ser operada sem o emprego de medicamentos; portanto, a lei
não previu o caso dos tratamentos curativos sem remédios, e apenas por extensão
é que seria aplicada aos magnetizadores e aos médiuns curadores. Não
reconhecendo a Medicina oficial nenhuma eficácia no magnetismo e seus anexos, e
ainda menos na intervenção dos Espíritos, não se poderia legalmente condenar
por exercício ilegal da Medicina, os magnetizadores e os médiuns curadores, que
nada prescrevem além da água magnetizada, porque, então, seria reconhecer
oficialmente uma virtude no agente magnético e o colocar na classe dos meios
curativos; seria incluir o magnetismo e a mediunidade curadora na arte de
curar, e dar um desmentido à Faculdade. O que se faz algumas vezes em
semelhantes casos é condenar por delito de vigarice e abuso de confiança, como
fazendo pagar uma coisa sem valor, aquele que disso tira proveito direto ou
indireto, ou mesmo dissimulado, sob o nome de retribuição facultativa, véu no
qual nem sempre se deve confiar. A apreciação do fato depende inteiramente da
maneira de encarar a coisa em si mesma; muitas vezes é uma questão de opinião
pessoal, a menos que haja abuso presumido, caso em que a questão de boa-fé
sempre deve ser levada em consideração. Então a justiça aprecia as
circunstâncias agravantes ou atenuantes.
Tudo é inteiramente diverso para
aquele cujo desinteresse é comprovado e completo. Desde que nada prescreve e
nada recebe a lei não o pode alcançar, do contrário seria preciso lhe dar uma
extensão que não comportam nem o espírito, nem a letra. Onde nada há a ganhar,
não pode haver charlatanismo. Não há nenhum poder no mundo que possa opor-se ao
exercício da mediunidade ou magnetização curadora, na verdadeira acepção da
palavra.
Entretanto, dirão, o Sr. Jacob
nada cobrava, e nem por isso deixou de ser interdito. É verdade; mas nem foi
perseguido, nem condenado pelo fato de que se tratava. A interdição era uma
medida de disciplina militar, por causa da perturbação que podia causar no
campo a afluência de pessoas que para lá se dirigiam; e se, depois, ele alegou
essa interdição, foi porque lhe convinha. Se ele não pertencesse ao exército,
ninguém poderia inquietá-lo. (Vide a Revista de março de 1866 18: O
Espiritismo e a Magistratura).
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