terça-feira, 7 de dezembro de 2021

A LEI E OS MÉDIUNS CURADORES[1]

 

Allan Kardec

 

Sob o título de Um Mistério, vários jornais do mês de maio último relataram o seguinte fato:

Um dia desses, duas senhoras do bairro de Saint-Germain apresentaram-se ao comissário de seu quarteirão e lhe chamaram a atenção sobre um tal P..., que, segundo elas, abusaram de sua confiança e de sua credulidade, afirmando que as curaria de doenças, contra as quais seus cuidados tinham sido impotentes.

Tendo aberto um inquérito a respeito, o magistrado soube que P... passava por hábil médico, cuja clientela aumentava diariamente, e que fazia curas extraordinárias.

Conforme suas respostas às perguntas do comissário, P... parece convencido de que é dotado de uma faculdade sobrenatural, que lhe dá o poder de curar apenas pela aposição das mãos sobre os órgãos doentes.

Durante vinte anos ele foi cozinheiro; era mesmo citado como hábil em seu ofício, que abandonou há um ano para consagrar-se à arte de curar.

 A acreditar nele, teria tido várias visões e aparições misteriosas, nas quais um enviado de Deus lhe teria revelado que ele tinha uma missão humanitária a cumprir na Terra, à qual não devia faltar, sob pena de ser danado. Obedecendo, disse ele, a essa ordem vinda do céu, o antigo cozinheiro instalou-se num apartamento da rua Saint-Placide, e os doentes não tardaram em abundar às suas consultas.

Não receita medicamentos; examina o paciente, que deve tratar quando em jejum, apalpa-o, procura e descobre a sede do mal, sobre a qual aplica as mãos em cruz, pronuncia algumas palavras que são, diz ele, o seu segredo; depois, com a sua prece, vem um Espírito invisível e arranca o mal.

Certamente P... é um louco. Mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que provou, como o constata o inquérito, que curou, por esse processo singular, mais de quarenta pessoas afetadas de moléstias graves.

Várias lhe testemunharam o seu reconhecimento por donativos em dinheiro. Conforme testamento encontrado em sua casa, uma senhora idosa, proprietária nas cercanias de Fontainebleau, fê-lo herdeiro de uma soma de 40.000 francos.

P... foi detido e seu processo, que certamente não tardará a correr na polícia correcional, promete ser curioso.

Não somos apologista nem detrator do Sr. P..., a quem não conhecemos. Está em boas ou más condições? É sincero ou charlatão? Ignoramo-lo; é o futuro que o provará; não tomamos partido nem pró nem contra ele. Mencionamos o fato tal qual é relatado, porque vem juntar-se à ideia de todos os que acreditam na existência de uma dessas faculdades estranhas, que confundem a Ciência e os que nada querem admitir fora do mundo visível e tangível. De tanto ouvir falar nisto e ver os fatos se multiplicando, é-se forçado a convir que há qualquer coisa e, aos poucos, faz-se a distinção entre a verdade e a hipocrisia.

No relato que precede, por certo notaram essa curiosa passagem, e a contradição não menos curiosa que ela encerra:

Certamente P... é um louco. Mas o que há de extraordinário, de inexplicável, é que provou, como o constata o inquérito, que curou, por esse processo singular, mais de quarenta pessoas afetadas de moléstias graves.

Assim, o inquérito constata as curas; mas, porque o meio que emprega é inexplicável e não é reconhecido pela Faculdade, certamente ele é louco. Sendo assim, o abade príncipe de Hohenlohe, cujas curas maravilhosas relatamos na Revista de dezembro de 1866, era louco; o venerável cura d’Ars, que, também ele, fazia curas por singulares processos, era louco; e tantos outros. O Cristo, que curava sem diploma e não empregava medicamentos, era louco e teria pago muitas multas em nossos dias. Loucos ou não, quando há cura, muitas pessoas preferem ser curadas por um louco a ser enterradas por um homem de bom-senso.

Com um diploma, todas as excentricidades médicas são permitidas. Um médico, cujo nome esquecemos, mas que ganha muito dinheiro, emprega um processo muito mais bizarro; com um pincel, pinta no rosto de seus doentes pequenos losangos vermelhos, amarelos, verdes, azuis, rodeando os olhos, o nariz e a boca, em quantidade proporcional à natureza da doença. Sobre que dado científico se baseia este gênero de medicação? Uma brincadeira de mau gosto de um redator pretendeu que, para poupar enormes gastos de publicidade, esse médico fazia que os doentes a veiculassem de graça, no rosto. Vendo nas ruas esses rostos tatuados, naturalmente pergunta-se o que é. E os doentes respondem: é o processo do célebre doutor fulano. Mas ele é médico; não importa se seu processo é bom, mau ou insignificante; tudo lhe é permitido, mesmo ser charlatão: está autorizado pela Faculdade. Se um indivíduo não diplomado quiser imitá-lo, será perseguido por vigarice.

Gritam contra a credulidade do público em relação aos charlatães; admiram-se da afluência de pessoas à casa do primeiro que surge anunciando um novo método de curar, à casa dos sonâmbulos, dos impostores e de outros; da predileção pelos remédios das comadres, e se prendem à inépcia da espécie humana! A primeira causa se deve à vontade muito natural que têm os doentes de se curar, e ao insucesso da Medicina em grandíssimo número de casos. Se os médicos curassem com mais frequência e segurança, não se iria alhures; acontece mesmo quase sempre que não se recorre a meios excepcionais senão depois de haver esgotado inutilmente os recursos oficiais. Ora, o doente que quer ser curado a qualquer preço, pouco se inquieta de o ser segundo a regra, ou contra a regra.

Não repetiremos aqui o que hoje está claramente demonstrado quanto às causas de certas curas, inexplicáveis somente para os que não querem dar-se ao trabalho de remontar à fonte do fenômeno. Se se deu a cura, isto é um fato, e esse fato tem uma causa. Será mais racional negá-lo do que procurá-lo?

– Dirão que é o acaso; o doente curou-se sozinho.

– Seja; mas, então, o médico que o declarou incurável dava prova de grande ignorância.

E, depois, se há vinte, quarenta, cem curas semelhantes, é sempre o acaso? É preciso convir que seria um acaso singularmente perseverante e inteligente, ao qual poderia dar-se o nome de doutor Acaso.

Examinaremos a questão sob um ponto de vista mais sério.

As pessoas não diplomadas que tratam os doentes pelo magnetismo; pela água magnetizada, que não é senão uma dissolução do fluido magnético; pela imposição das mãos, que é uma magnetização instantânea e poderosa; pela prece, que é uma magnetização mental; com o concurso dos Espíritos, o que é ainda uma variedade de magnetização, são passíveis da lei contra o exercício ilegal da Medicina?

Os termos da lei certamente são muito elásticos, porque ela não especifica os meios. Rigorosamente e logicamente não se pode considerar como exercendo a arte de curar, senão os que dela fazem profissão, isto é, que dela tiram proveito. Entretanto, viram-se ser pronunciadas condenações contra indivíduos que se ocupam desses cuidados por puro devotamento, sem qualquer interesse, ostensivo ou dissimulado. O delito está, pois, sobretudo na prescrição de remédios. Contudo, o desinteresse notório geralmente é levado em consideração como circunstância atenuante.

Até agora não se tinha pensado que uma cura pudesse ser operada sem o emprego de medicamentos; portanto, a lei não previu o caso dos tratamentos curativos sem remédios, e apenas por extensão é que seria aplicada aos magnetizadores e aos médiuns curadores. Não reconhecendo a Medicina oficial nenhuma eficácia no magnetismo e seus anexos, e ainda menos na intervenção dos Espíritos, não se poderia legalmente condenar por exercício ilegal da Medicina, os magnetizadores e os médiuns curadores, que nada prescrevem além da água magnetizada, porque, então, seria reconhecer oficialmente uma virtude no agente magnético e o colocar na classe dos meios curativos; seria incluir o magnetismo e a mediunidade curadora na arte de curar, e dar um desmentido à Faculdade. O que se faz algumas vezes em semelhantes casos é condenar por delito de vigarice e abuso de confiança, como fazendo pagar uma coisa sem valor, aquele que disso tira proveito direto ou indireto, ou mesmo dissimulado, sob o nome de retribuição facultativa, véu no qual nem sempre se deve confiar. A apreciação do fato depende inteiramente da maneira de encarar a coisa em si mesma; muitas vezes é uma questão de opinião pessoal, a menos que haja abuso presumido, caso em que a questão de boa-fé sempre deve ser levada em consideração. Então a justiça aprecia as circunstâncias agravantes ou atenuantes.

Tudo é inteiramente diverso para aquele cujo desinteresse é comprovado e completo. Desde que nada prescreve e nada recebe a lei não o pode alcançar, do contrário seria preciso lhe dar uma extensão que não comportam nem o espírito, nem a letra. Onde nada há a ganhar, não pode haver charlatanismo. Não há nenhum poder no mundo que possa opor-se ao exercício da mediunidade ou magnetização curadora, na verdadeira acepção da palavra.

Entretanto, dirão, o Sr. Jacob nada cobrava, e nem por isso deixou de ser interdito. É verdade; mas nem foi perseguido, nem condenado pelo fato de que se tratava. A interdição era uma medida de disciplina militar, por causa da perturbação que podia causar no campo a afluência de pessoas que para lá se dirigiam; e se, depois, ele alegou essa interdição, foi porque lhe convinha. Se ele não pertencesse ao exército, ninguém poderia inquietá-lo. (Vide a Revista de março de 1866 18: O Espiritismo e a Magistratura).



[1] Revista Espírita – Julho/1867 – Allan Kardec

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