Allan Kardec
“Viagem pitoresca e sentimental
ao Campo de Repouso de Montmartre e do Père-Lachaise”; por Ans. Caillot, autor
da “Enciclopédia das Jovens”, e das “Novas Lições Elementares da História de
França”. Tal é o título de um livro publicado em Paris em 1808, e que hoje deve
ser muito raro. O autor, depois de historiar e descrever esses dois cemitérios,
cita um grande número de inscrições tumulares, sobre cada uma das quais faz
reflexões filosóficas, marcadas por profundo sentimento religioso, provocado
pelo pensamento que as ditou. De início observamos a passagem seguinte, na qual
se encontra claramente expressa a ideia da reencarnação:
Que sábio e que
homem profundamente religioso foi o primeiro a chamar Campo de Repouso o último asilo deste ser cuja existência, até seu
último suspiro, é atormentado pelos seres que o cercam e por si mesmo! Aqui
todos repousam no seio da mãe comum, num sono que não é senão o precursor do despertar, isto é, de
uma nova existência. Esses restos
veneráveis a terra os conserva como um depósito sagrado; e se ela se apressa em
os dissolver, é para depurar seus elementos e os tornar mais dignos da
inteligência que os reanimará um dia
para novos destinos.
Mais adiante diz:
Oh! Quanto o cego e
audacioso mortal que ousou te expulsar de seu espírito e de seu coração (o ateu
que renega a Deus) ficou admirado quando sua alma compareceu ante a Majestade
infinita! Como não se viu seus despojos agitar-se e tremer de surpresa e de
terror! Como sua língua gelada não se animou para exprimir o espanto de que
estava ferida, quando a carne não mais se achou entre ela e teus divinos
olhares! Grande Deus! Causa universal, alma da Natureza! Todos os seres te reconhecem
e te celebram como teu único autor: só o homem desviaria de ti o espírito
inteligente e racional que lhe dás para te glorificar? Ah! Sem dúvida, e
apraz-me crê-lo, não houve um só dos quarenta mil mortais, cujos corpos jazem
aqui no pó, que não tivesse a convicção de tua existência e o sentimento de
tuas adoráveis perfeições.
Quando eu acabava de
pronunciar com emoção estas últimas palavras, um ruído se fez ouvir ao meu
lado. Lancei o olhar para esse lado e ‒ coisa admirável e inaudita! – Percebi
um espectro que, envolto em sua mortalha, tinha saído de um túmulo e avançava
gravemente para mim, para me falar. Esta aparição não seria um jogo de minha
imaginação? É o que me é impossível assegurar. Mas o diálogo seguinte, que bem
conservei, fez-me crer que eu não era o único interlocutor para dois papéis ao
mesmo tempo.
Aqui faremos uma pequena
observação crítica, primeiramente sobre a qualificação de espectro, dada pelo autor à aparição, real ou suposta. Esta palavra
lembra muito as ideias lúgubres que a superstição liga ao fenômeno das
aparições, hoje perfeitamente explicado,
conforme o conhecimento que se tem da constituição dos seres espirituais. Em
segundo lugar, sobre o fato de ele fazer essa aparição sair do túmulo, como se
alma aí tivesse a sua habitação. Mas isto não passa de um detalhe de forma,
devido a preconceitos longamente arraigados; o essencial está no quadro que ele
apresenta da situação moral dessa alma, situação idêntica à que hoje nos
revelam as comunicações com os Espíritos.
O autor relata como segue o
diálogo que teve com o ser que lhe apareceu:
Quando o espectro se
aproximou de mim, fez-me ouvir estas palavras com uma voz tal que me era
impossível especificar o som, pois jamais tinha ouvido um semelhante entre os
homens:
“Fazes bem em adorar
a Deus. Guarda-te de jamais me imitar, porque fui um ateu”.
Eu – Então não acreditavas que existisse um Deus?
O Espectro – Não. Ou antes, eu fingi que não acreditava.
Eu – Que razões tinhas para não acreditar que o Universo foi criado e é
governado por uma inteligência suprema?
O Espectro – Nenhuma. Por mais que procurasse, não encontrava pontos sólidos e
estava reduzido a só repetir vãos sofismas, que havia lido nas obras de alguns
supostos filósofos.
Eu – Se não tinhas boas razões para ser ateu, então tinhas motivos para o
parecer?
O Espectro – Sem dúvida. Vendo todos os meus semelhantes penetrados da ideia de
um Deus e do sentimento de sua existência, o orgulho que me cegava levou-me a
me distinguir da multidão, sustentando a quem quer que me quisesse ouvir que
Deus não existia e que o Universo era obra do acaso, ou mesmo que sempre tinha
existido. Considerava como uma glória pensar neste grande assunto de modo
diverso de todos os homens, e não achava
nada mais lisonjeiro que ser considerado no mundo como um Espírito bastante
forte para se levantar contra a crença comum de todos os homens e de todos os
séculos.
Eu – Não tinhas outro móvel além do orgulho para abraçar o ateísmo?
O Espectro – Sim.
Eu – Qual? Dize a verdade.
O Espectro – A verdade!!... Sem dúvida eu a direi, pois me é impossível na ordem
de coisas em que existo, combatê-la ou dissimulá-la.
Como todos os meus
semelhantes, nasci com o sentimento da existência de um Deus, autor e princípio
de todos os seres. Esse sentimento, que a princípio não passava de um germe, no
qual meu espírito nada descobria, desenvolveu-se pouco a pouco; e quando atingi
a idade da razão e adquiri a faculdade de refletir, não tive de fazer nenhum
esforço para dele me livrar.
Quantas lições de
meus pais e de meus mestres me agradavam, quando Deus e suas perfeições
infinitas eram o assunto! Quanto me encantava o espetáculo da Natureza e que
doce satisfação experimentava quando me falavam desse grande Deus, que tudo
criou por seu poder, sustenta, governa e conserva tudo por sua sabedoria!
Entretanto, cheguei
à adolescência e as paixões começaram a me fazer ouvir sua voz sedutora.
Estabelecia ligações com jovens da minha idade; segui seus funestos conselhos e
me conformei com seus perigosos exemplos. Entrando no mundo com essas
disposições condenáveis, não pensei mais senão em lhe fazer o sacrifício de
todos os princípios de virtude e de sabedoria que a princípio me havia
inspirado. Esses princípios, diariamente atacados por minhas paixões,
refugiaram-se no fundo de minha consciência e aí se transformaram em remorsos.
Como esses remorsos não me deixassem nenhum repouso, resolvi aniquilar, tanto
quanto estava em mim, a causa que os havia gerado. Achei que essa causa não era
outra senão a ideia de um Deus remunerador da virtude e vingador do crime; e o
ataquei com todos os sofismas que meu Espírito pôde inventar ou descobrir nas
obras destinadas a espalhar a doutrina do ateísmo.
Eu – Ficavas mais tranquilo quando amontoavas sofismas sobre sofismas
contra a existência de Deus?
O Espectro – Por mais que fizesse, o repouso me fugia incessantemente. Mau grado
meu, eu estava convencido e, embora a boca não pronunciasse uma palavra que não
fosse uma blasfêmia, não tinha um sentimento que não combatesse contra mim, em favor
de Deus.
Eu – Que se passou contigo durante a moléstia de que morreste?
O Espectro – Eu quis sustentar até o fim o caráter de espírito forte, mas o
orgulho me impedia de confessar o meu erro, não obstante sentisse interiormente
uma premente necessidade. Foi nesta criminosa e falsa disposição que deixei de
existir.
Eu – O que te aconteceu quanto teus olhos se fecharam para sempre à luz?
O Espectro – Encontrei-me inteiramente cercado pela majestade de Deus e fui
tomado de tão profundo terror que não acho um termo que te possa dar uma ideia
justa. Eu esperava muito ser rigorosamente punido, mas o soberano juiz, cuja
misericórdia suaviza a justiça, relegou-me a uma tenebrosa região, habitada pelos
Espíritos que tiveram mãos inocentes e cérebro doentio.
Eu – Qual a sorte dos ateus que cometeram crimes contra a sociedade de
seus semelhantes?
O Espectro – O Ser dos seres os pune por terem sido maus, e não por se terem
enganado, pois despreza as opiniões e só recompensa ou pune as ações.
Eu – Então não és castigado na morada tenebrosa onde estás exilado?
O Espectro – Aí sofro uma pena mais cruel do que podes imaginar. Deus, depois de
me haver condenado, afastou-se de mim; imediatamente perdi toda ideia de sua existência, e o nada se me apresentou em todo o
seu horror.
Eu – O quê! Perdeste inteiramente a ideia da Deus?
O Espectro – Sim. É o maior suplício que
um Espírito imortal pode suportar, e nada pode fazer conceber o estado de
abandono, de dor e de desordem em que se encontra.
Eu – Qual é, pois, a tua ocupação com os Espíritos submetidos ao mesmo
suplício?
O Espectro – Nós nos altercamos incessantemente, sem nos entendermos. O desatino
e a loucura presidem a todos os nossos debates e, na profunda escuridão em que
se acha sepultada a nossa inteligência, não há nenhuma opinião, nenhum sistema
que ela não adote, para logo os rejeitar e conceber novas extravagâncias.
É, pois, a agitação
perpétua desse fluxo e refluxo de ideias sem fundamento, sem continuidade, sem
ligação, que consiste o castigo dos filósofos que foram ateus.
Eu – A despeito de tudo, raciocinas neste momento.
O Espectro – É porque meu suplício logo vai terminar. Ele foi muito longo,
porque, embora na Terra não se contem senão dois anos desde minha morte, sofri
de tal modo essas loucuras que disse e ouvi, que me parece já se terem passado
milhares de séculos na região dos sistemas e das disputas.
Depois de ter assim
falado, o Espectro inclinou-se, adorou a Deus e desapareceu.
Quando me refiz da
emoção causada pelo que acabara de ver e ouvir, meus pensamentos se reportaram
às coisas espantosas que o espectro me havia ensinado. O que me disse do primeiro
Ser corresponde à ideia que tão grande número de homens fizeram? Que acabo de
ouvir? Quê! O próprio ateu, o horror de seus semelhantes, acabou por encontrar
graça aos olhos desta Divindade que me apresentam como uma natureza vingativa e
invejosa? Oh! Quem ousará dizer-me agora: Se não adotares tal ou qual opinião,
serás condenado a eternos suplícios? Que bárbaro ousará dizer: Fora de minha
comunhão não há salvação? Ser incompreensível e todo misericordioso, tu
encarregaste alguém do cuidado de te vingar? É a uma vil criatura que compete
dizer aos seus semelhantes: pensai como eu, ou sereis infeliz para sempre!
Que limites, grande
Deus! Podemos nós, seres limitados que somos, fixar a tua clemência e a tua
justiça? E com que direito eu te diria: Aqui tu recompensarás, ali tu punirás?
Respondei, ó mortos que jazeis no pó! Foi possível a todos vós que tivésseis a
mesma crença na qual eu nasci? Vossas inteligências foram todas igualmente
tocadas por provas que estabelecem os mistérios que eu adoro e os dogmas nos
quais creio? Oh! Como os degraus de uma crença seriam os mesmos em toda parte, assim
como os degraus da convicção? Homem intolerante e cruel, vem, se tens coragem, sentar-te
ao meu lado, e ousa dizer às vítimas da morte, cujas lições escutei:
Aqui sois quarenta
mil. Pois bem! Não há senão dez, cinquenta, cem entre vós que o Deus vingador
não devotou às chamas eternas!
Se esse fosse o
discurso de um insensato, para que serviria a religião dos túmulos? Por que
deveria eu respeitar as cinzas dos que adoram o grande Ser à minha maneira? É
neste recinto, onde os inimigos de minha crença repousam, confundidos com seus
sectários, que eu poderia ouvir as lições da verdadeira sabedoria? E de que
impiedade eu me tornaria culpado, comunicando com inteligências reprovadas, a
cujos despojos venho render uma homenagem inspirada pela religião, como pela Humanidade?
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