terça-feira, 14 de setembro de 2021

PUNIÇÃO DO ATEU[1]

 

Allan Kardec

 

“Viagem pitoresca e sentimental ao Campo de Repouso de Montmartre e do Père-Lachaise”; por Ans. Caillot, autor da “Enciclopédia das Jovens”, e das “Novas Lições Elementares da História de França”. Tal é o título de um livro publicado em Paris em 1808, e que hoje deve ser muito raro. O autor, depois de historiar e descrever esses dois cemitérios, cita um grande número de inscrições tumulares, sobre cada uma das quais faz reflexões filosóficas, marcadas por profundo sentimento religioso, provocado pelo pensamento que as ditou. De início observamos a passagem seguinte, na qual se encontra claramente expressa a ideia da reencarnação:

Que sábio e que homem profundamente religioso foi o primeiro a chamar Campo de Repouso o último asilo deste ser cuja existência, até seu último suspiro, é atormentado pelos seres que o cercam e por si mesmo! Aqui todos repousam no seio da mãe comum, num sono que não é senão o precursor do despertar, isto é, de uma nova existência. Esses restos veneráveis a terra os conserva como um depósito sagrado; e se ela se apressa em os dissolver, é para depurar seus elementos e os tornar mais dignos da inteligência que os reanimará um dia para novos destinos.

Mais adiante diz:

Oh! Quanto o cego e audacioso mortal que ousou te expulsar de seu espírito e de seu coração (o ateu que renega a Deus) ficou admirado quando sua alma compareceu ante a Majestade infinita! Como não se viu seus despojos agitar-se e tremer de surpresa e de terror! Como sua língua gelada não se animou para exprimir o espanto de que estava ferida, quando a carne não mais se achou entre ela e teus divinos olhares! Grande Deus! Causa universal, alma da Natureza! Todos os seres te reconhecem e te celebram como teu único autor: só o homem desviaria de ti o espírito inteligente e racional que lhe dás para te glorificar? Ah! Sem dúvida, e apraz-me crê-lo, não houve um só dos quarenta mil mortais, cujos corpos jazem aqui no pó, que não tivesse a convicção de tua existência e o sentimento de tuas adoráveis perfeições.

Quando eu acabava de pronunciar com emoção estas últimas palavras, um ruído se fez ouvir ao meu lado. Lancei o olhar para esse lado e ‒ coisa admirável e inaudita! – Percebi um espectro que, envolto em sua mortalha, tinha saído de um túmulo e avançava gravemente para mim, para me falar. Esta aparição não seria um jogo de minha imaginação? É o que me é impossível assegurar. Mas o diálogo seguinte, que bem conservei, fez-me crer que eu não era o único interlocutor para dois papéis ao mesmo tempo.

Aqui faremos uma pequena observação crítica, primeiramente sobre a qualificação de espectro, dada pelo autor à aparição, real ou suposta. Esta palavra lembra muito as ideias lúgubres que a superstição liga ao fenômeno das aparições, hoje perfeitamente explicado, conforme o conhecimento que se tem da constituição dos seres espirituais. Em segundo lugar, sobre o fato de ele fazer essa aparição sair do túmulo, como se alma aí tivesse a sua habitação. Mas isto não passa de um detalhe de forma, devido a preconceitos longamente arraigados; o essencial está no quadro que ele apresenta da situação moral dessa alma, situação idêntica à que hoje nos revelam as comunicações com os Espíritos.

O autor relata como segue o diálogo que teve com o ser que lhe apareceu:

Quando o espectro se aproximou de mim, fez-me ouvir estas palavras com uma voz tal que me era impossível especificar o som, pois jamais tinha ouvido um semelhante entre os homens:

“Fazes bem em adorar a Deus. Guarda-te de jamais me imitar, porque fui um ateu”.

Eu – Então não acreditavas que existisse um Deus?

O Espectro – Não. Ou antes, eu fingi que não acreditava.

Eu – Que razões tinhas para não acreditar que o Universo foi criado e é governado por uma inteligência suprema?

O Espectro – Nenhuma. Por mais que procurasse, não encontrava pontos sólidos e estava reduzido a só repetir vãos sofismas, que havia lido nas obras de alguns supostos filósofos.

Eu – Se não tinhas boas razões para ser ateu, então tinhas motivos para o parecer?

O Espectro – Sem dúvida. Vendo todos os meus semelhantes penetrados da ideia de um Deus e do sentimento de sua existência, o orgulho que me cegava levou-me a me distinguir da multidão, sustentando a quem quer que me quisesse ouvir que Deus não existia e que o Universo era obra do acaso, ou mesmo que sempre tinha existido. Considerava como uma glória pensar neste grande assunto de modo diverso de todos os homens, e não achava nada mais lisonjeiro que ser considerado no mundo como um Espírito bastante forte para se levantar contra a crença comum de todos os homens e de todos os séculos.

Eu – Não tinhas outro móvel além do orgulho para abraçar o ateísmo?

O Espectro – Sim.

Eu – Qual? Dize a verdade.

O Espectro – A verdade!!... Sem dúvida eu a direi, pois me é impossível na ordem de coisas em que existo, combatê-la ou dissimulá-la.

Como todos os meus semelhantes, nasci com o sentimento da existência de um Deus, autor e princípio de todos os seres. Esse sentimento, que a princípio não passava de um germe, no qual meu espírito nada descobria, desenvolveu-se pouco a pouco; e quando atingi a idade da razão e adquiri a faculdade de refletir, não tive de fazer nenhum esforço para dele me livrar.

Quantas lições de meus pais e de meus mestres me agradavam, quando Deus e suas perfeições infinitas eram o assunto! Quanto me encantava o espetáculo da Natureza e que doce satisfação experimentava quando me falavam desse grande Deus, que tudo criou por seu poder, sustenta, governa e conserva tudo por sua sabedoria!

Entretanto, cheguei à adolescência e as paixões começaram a me fazer ouvir sua voz sedutora. Estabelecia ligações com jovens da minha idade; segui seus funestos conselhos e me conformei com seus perigosos exemplos. Entrando no mundo com essas disposições condenáveis, não pensei mais senão em lhe fazer o sacrifício de todos os princípios de virtude e de sabedoria que a princípio me havia inspirado. Esses princípios, diariamente atacados por minhas paixões, refugiaram-se no fundo de minha consciência e aí se transformaram em remorsos. Como esses remorsos não me deixassem nenhum repouso, resolvi aniquilar, tanto quanto estava em mim, a causa que os havia gerado. Achei que essa causa não era outra senão a ideia de um Deus remunerador da virtude e vingador do crime; e o ataquei com todos os sofismas que meu Espírito pôde inventar ou descobrir nas obras destinadas a espalhar a doutrina do ateísmo.

Eu – Ficavas mais tranquilo quando amontoavas sofismas sobre sofismas contra a existência de Deus?

O Espectro – Por mais que fizesse, o repouso me fugia incessantemente. Mau grado meu, eu estava convencido e, embora a boca não pronunciasse uma palavra que não fosse uma blasfêmia, não tinha um sentimento que não combatesse contra mim, em favor de Deus.

Eu – Que se passou contigo durante a moléstia de que morreste?

O Espectro – Eu quis sustentar até o fim o caráter de espírito forte, mas o orgulho me impedia de confessar o meu erro, não obstante sentisse interiormente uma premente necessidade. Foi nesta criminosa e falsa disposição que deixei de existir.

Eu – O que te aconteceu quanto teus olhos se fecharam para sempre à luz?

O Espectro – Encontrei-me inteiramente cercado pela majestade de Deus e fui tomado de tão profundo terror que não acho um termo que te possa dar uma ideia justa. Eu esperava muito ser rigorosamente punido, mas o soberano juiz, cuja misericórdia suaviza a justiça, relegou-me a uma tenebrosa região, habitada pelos Espíritos que tiveram mãos inocentes e cérebro doentio.

Eu – Qual a sorte dos ateus que cometeram crimes contra a sociedade de seus semelhantes?

O Espectro – O Ser dos seres os pune por terem sido maus, e não por se terem enganado, pois despreza as opiniões e só recompensa ou pune as ações.

Eu – Então não és castigado na morada tenebrosa onde estás exilado?

O Espectro – Aí sofro uma pena mais cruel do que podes imaginar. Deus, depois de me haver condenado, afastou-se de mim; imediatamente perdi toda ideia de sua existência, e o nada se me apresentou em todo o seu horror.

Eu – O quê! Perdeste inteiramente a ideia da Deus?

O Espectro – Sim. É o maior suplício que um Espírito imortal pode suportar, e nada pode fazer conceber o estado de abandono, de dor e de desordem em que se encontra.

Eu – Qual é, pois, a tua ocupação com os Espíritos submetidos ao mesmo suplício?

O Espectro – Nós nos altercamos incessantemente, sem nos entendermos. O desatino e a loucura presidem a todos os nossos debates e, na profunda escuridão em que se acha sepultada a nossa inteligência, não há nenhuma opinião, nenhum sistema que ela não adote, para logo os rejeitar e conceber novas extravagâncias.

É, pois, a agitação perpétua desse fluxo e refluxo de ideias sem fundamento, sem continuidade, sem ligação, que consiste o castigo dos filósofos que foram ateus.

Eu – A despeito de tudo, raciocinas neste momento.

O Espectro – É porque meu suplício logo vai terminar. Ele foi muito longo, porque, embora na Terra não se contem senão dois anos desde minha morte, sofri de tal modo essas loucuras que disse e ouvi, que me parece já se terem passado milhares de séculos na região dos sistemas e das disputas.

 

Depois de ter assim falado, o Espectro inclinou-se, adorou a Deus e desapareceu.

Quando me refiz da emoção causada pelo que acabara de ver e ouvir, meus pensamentos se reportaram às coisas espantosas que o espectro me havia ensinado. O que me disse do primeiro Ser corresponde à ideia que tão grande número de homens fizeram? Que acabo de ouvir? Quê! O próprio ateu, o horror de seus semelhantes, acabou por encontrar graça aos olhos desta Divindade que me apresentam como uma natureza vingativa e invejosa? Oh! Quem ousará dizer-me agora: Se não adotares tal ou qual opinião, serás condenado a eternos suplícios? Que bárbaro ousará dizer: Fora de minha comunhão não há salvação? Ser incompreensível e todo misericordioso, tu encarregaste alguém do cuidado de te vingar? É a uma vil criatura que compete dizer aos seus semelhantes: pensai como eu, ou sereis infeliz para sempre!

Que limites, grande Deus! Podemos nós, seres limitados que somos, fixar a tua clemência e a tua justiça? E com que direito eu te diria: Aqui tu recompensarás, ali tu punirás? Respondei, ó mortos que jazeis no pó! Foi possível a todos vós que tivésseis a mesma crença na qual eu nasci? Vossas inteligências foram todas igualmente tocadas por provas que estabelecem os mistérios que eu adoro e os dogmas nos quais creio? Oh! Como os degraus de uma crença seriam os mesmos em toda parte, assim como os degraus da convicção? Homem intolerante e cruel, vem, se tens coragem, sentar-te ao meu lado, e ousa dizer às vítimas da morte, cujas lições escutei:

Aqui sois quarenta mil. Pois bem! Não há senão dez, cinquenta, cem entre vós que o Deus vingador não devotou às chamas eternas!

Se esse fosse o discurso de um insensato, para que serviria a religião dos túmulos? Por que deveria eu respeitar as cinzas dos que adoram o grande Ser à minha maneira? É neste recinto, onde os inimigos de minha crença repousam, confundidos com seus sectários, que eu poderia ouvir as lições da verdadeira sabedoria? E de que impiedade eu me tornaria culpado, comunicando com inteligências reprovadas, a cujos despojos venho render uma homenagem inspirada pela religião, como pela Humanidade?



[1] Revista Espírita – Maio/1867 – Allan Kardec

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