terça-feira, 3 de agosto de 2021

A HOMEOPATIA NO TRATAMENTO DAS DOENÇAS MORAIS – 2º ARTIGO[1]

 


 Allan Kardec

 

O artigo que publicamos no número de março sobre a ação da homeopatia nas doenças morais, nos valeu, de um dos mais ardentes partidários deste sistema e, ao mesmo tempo, um dos mais fervorosos adeptos do Espiritismo, o doutor Charles Grégory, a seguinte carta, que julgamos por bem publicar, em razão da luz que a discussão pode trazer à questão.

Caro e venerado mestre,

Vou tentar explicar-vos como compreendo a ação da homeopatia sobre o desenvolvimento das faculdades morais.

Como eu, admitis que todo homem saudável possui rudimentos de todas as faculdades e de todos os órgãos cerebrais necessários à sua manifestação. Também admitis que certas faculdades vão se desenvolvendo sempre, enquanto outras, as que sem dúvida são apenas rudimentares, depois de mal terem dado alguns lampejos, parecem extinguir-se completamente. No primeiro caso, em vossa opinião, os órgãos cerebrais que dizem respeito às faculdades em pleno desenvolvimento teriam sua livre manifestação, ao passo que os rudimentares, que a maior parte das vezes se relacionam, também, com aptidões rudimentares, se atrofiam completamente com o avançar da idade, por falta de atividade vital.

Se, pois, por meio de medicamentos apropriados, eu agir sobre os órgãos imperfeitos, se aí desenvolver um acréscimo de atividade vital, se para aí requisito uma nutrição mais poderosa, é bem claro que, aumentando o volume, eles permitirão que a faculdade rudimentar melhor se manifeste, e que, pela transmissão das ideias e dos sentimentos que tiverem colhido, pelos sentidos, no mundo exterior, imprimirão à faculdade correspondente uma influência salutar e, por sua vez, a desenvolverão, porque tudo se liga e se mantém no homem; a alma influi sobre o físico, como o corpo influi sobre a alma. Esta já é, portanto, uma primeira influência dos medicamentos através do aumento dos órgãos sobre as faculdades correspondentes da alma; uma possibilidade de o homem crescer em potencialidades e em aptidões, por meio de forças tiradas do mundo material.

 Agora, para mim não está provado de modo algum que nossas pequenas doses, chegadas a um estado de sublimação e de sutileza que ultrapassam todos os limites, de certo modo não tenham em si algo de espiritual, que por sua vez age sobre o Espírito. Nossos medicamentos, dados no estado de divisão que a arte os faz sofrer, não são mais substâncias materiais, mas, em minha opinião, forças que, necessariamente, devem agir sobre as faculdades da alma que, também elas, são forças.

E, depois, como creio que o Espírito do homem, antes de encarnar-se na Humanidade, sobe todos os degraus da escala e passa pelo mineral, a planta e o animal e na maior parte dos tipos de cada espécie, onde preludia para seu completo desenvolvimento como ser humano, quem me diz que, dando medicamento que nem é mineral, nem planta, nem animal, mas o que poderia chamar sua essência e, de certo modo, seu espírito, não se age sobre a alma humana composta dos mesmos elementos? Porque, digam o que disserem, o espírito é bem alguma coisa e, desde que se desenvolveu e se desenvolve incessantemente, deve ter tomado seus elementos em alguma parte.

Tudo quanto posso dizer é que não agimos sobre a alma com as nossas 200ª e 600ª diluições, materialmente, mas virtualmente e, de certo modo, espiritualmente.

Os fatos estão aí, fatos numerosos, bem observados, e que bem poderiam demonstrar que não estou completamente errado. Para citar a mim mesmo, embora não goste muito de questões pessoais, direi que, experimentando em mim mesmo, há trinta anos, remédios homeopáticos, de certo modo criei em mim novas faculdades, sem dúvida rudimentares, mas que na minha mais exuberante juventude jamais tinha conhecido quando ignorava a homeopatia, e que hoje, aos cinquenta e dois anos, encontro bem desenvolvidas: o sentimento da cor e das formas.

 Acrescentarei ainda que, sob a influência de nossos meios, vi caracteres mudarem completamente; à leviandade sucederam a reflexão e a solidez do raciocínio; à lubricidade, a continência; à maldade, a benevolência; ao ódio, a bondade e o perdão das injúrias. Evidentemente não é coisa para alguns dias; são mesmo precisos alguns anos de cuidados, mas se chega a esses belos resultados por meios tão cômodos, que não há nenhuma dificuldade em decidir os clientes que vos são devotados, e um médico os tem sempre. Eu mesmo observei que os resultados obtidos por nossos meios eram adquiridos para sempre, ao passo que os dados pela educação, os bons conselhos, as exortações seguidas, os livros de moral quase não resistiam ante a possibilidade de satisfazer uma paixão ardente, e as tentações em relação com nossas fraquezas, antes adormecidas e entorpecidas do que curadas. Se, neste último caso, surgiam triunfos, não era sem lutas violentas, que não convinha prolongar por muito tempo.

Eis, caro mestre, as observações que desejava submeter-vos sobre esta questão tão grave da influência da homeopatia sobre o moral humano.

Para concluir: quer seja pelo cérebro que o medicamento age sobre as faculdades, quer aja ao mesmo tempo sobre a fibra cerebral e sobre a faculdade correspondente, não está menos demonstrado para mim, por centenas de fatos, que a ação sutil e profunda de nossas doses sobre o moral humano é bem real. Além disso, é-me demonstrado que a homeopatia deprime certas faculdades, certos sentimentos ou certas paixões muito exaltadas, para realçar outras muito enfraquecidas, e como que paralisadas, conduzindo, por isto mesmo, ao equilíbrio e à harmonia e, por conseguinte, à melhora real e ao progresso do homem em todas as suas aptidões, e facilidade de vencer-se a si mesmo.

Não julgueis que tal resultado anule a responsabilidade humana, e que se chegue a esse progresso tão desejado sem sofrimentos e sem lutas. Não basta tomar um medicamento e dizer: “Vou vencer a minha inclinação para a cólera, o ciúme e a luxúria”. Oh! Não! O remédio apropriado, uma vez introduzido no organismo, aí não traz uma modificação profunda senão ao preço de violentos sofrimentos morais e físicos e, muitas vezes, de longa, muito longa duração; sofrimentos que devem ser repetidos várias vezes, variando os medicamentos e as doses, e isto durante meses e, às vezes, anos, se se quiser chegar a resultados concludentes. É este o preço a pagar por seu melhoramento moral; é esta a prova e a expiação pelas quais tudo se paga neste mundo inferior, e vos confesso que não é coisa fácil de corrigir, mesmo pela Homeopatia. Não sei se, pelas angústias interiores que se sofre, não se paga mais caro esse progresso do que pela modificação mais lenta, é verdade, mas sem dúvida mais suave e mais suportável da ação puramente moral de todos os dias, pela observação de si mesmo e o ardente desejo de vencer-se.

Termino aqui. Mais tarde eu vos contarei inúmeros fatos que bem vos poderão convencer.

Recebei etc.

Esta carta em nada modifica a opinião que emitimos sobre a ação da Homeopatia no tratamento das doenças morais, e que, ao contrário, vem confirmar os próprios argumentos do Dr. Grégory. Insistimos, pois, em dizer que, se os medicamentos homeopáticos podem ter uma ação sobre o moral, é agindo sobre os órgãos das manifestações, o que pode ter sua utilidade em certos casos, mas não sobre o Espírito; que as qualidades boas ou más e as aptidões são inerentes ao grau de adiantamento ou de inferioridade do Espírito, e que não é com um medicamento qualquer que se pode fazê-lo avançar mais depressa, nem lhe dar qualidades que não pode adquirir senão sucessivamente e pelo trabalho; que uma tal doutrina, fazendo depender as disposições morais do organismo, tira do homem toda responsabilidade, a despeito do que diz o Sr. Grégory, e o dispensa de todo trabalho sobre si mesmo para se melhorar, desde que se poderia torná-lo bom à sua revelia, administrando-lhe tal ou qual remédio; que se, com a ajuda de meios materiais, podem modificar-se os órgãos das manifestações, o que admitimos perfeitamente, esses meios não podem mudar as tendências instintivas do Espírito, do mesmo modo que, cortando a língua de um falador, não se lhe tira a vontade de falar. Um costume do Oriente vem confirmar nossa asserção por um fato material bem conhecido.

Evidentemente o estado patológico influi sobre o moral em certos aspectos, mas as disposições que têm esta fonte são acidentais e não constituem o fundo do caráter do Espírito; são estas, sobretudo, que uma medicação apropriada pode modificar.

Há pessoas que só são benevolentes depois de ter jantado bem e às quais nada se deve pedir quando estão em jejum; deve-se concluir, por isto, que um bom jantar seria um remédio contra o egoísmo?

Não, porque essa benevolência, provocada pela plenitude da satisfação sensual, é um efeito do próprio egoísmo; não passa de uma benevolência aparente, de um produto deste pensamento: Agora que não mais preciso de nada, posso ocupar-me um pouco com os outros.

Em resumo, não contestamos que certos medicamentos – e os homeopáticos mais que qualquer outros – produzem alguns dos efeitos indicados, mas contestamos enfaticamente seus resultados permanentes e, sobretudo, tão universais, como pretendem algumas pessoas. Um caso em que a Homeopatia nos parece particularmente aplicável com sucesso é o da loucura patológica, porque aqui a desordem moral é consequência da desordem física, e que agora é constatado pela observação dos fenômenos espíritas, que o Espírito não é louco.

Não há por que o modificar, mas lhe dar os meios de manifestar-se livremente. A ação da Homeopatia pode ser aqui tanto mais eficaz, quanto age principalmente pela natureza espiritualizada de seus medicamentos, sobre o perispírito, que apresenta papel preponderante nesta afecção.

Teríamos mais de uma objeção a fazer sobre algumas das proposições contidas nesta carta, mas isto nos levaria muito longe. Contentamo-nos, pois, em considerar as duas opiniões.

Como, em tudo, os fatos são mais concludentes que as teorias, e são eles, em última análise, que confirmam ou destroem as últimas, desejamos ardentemente que o Dr. Grégory publique um tratado especial prático de Homeopatia aplicado ao tratamento das doenças morais, a fim de que a experiência possa generalizar-se e decidir a questão. Mais que qualquer outro, ele nos parece capaz de fazer esse trabalho ex-professo.



[1] Revista Espírita – Junho/1867 – Allan Kardec

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