terça-feira, 1 de junho de 2021

A HOMEOPATIA NAS DOENÇAS MORAIS[1]

 

Allan Kardec

 

Pode a homeopatia modificar as disposições morais?

Tal é a pergunta que se fazem a alguns médicos homeopatas e à qual não hesitam em responder afirmativamente, apoiando-se em fatos.

Levando-se em conta a sua extrema gravidade, vamos examiná-la com cuidado, de um ponto de vista que nos parece ter sido negligenciado por aqueles senhores, por mais espiritualistas e mesmo espíritas que sem dúvida o sejam, porque há pouquíssimos médicos homeopatas que não sejam uma ou outra coisa. Mas, para a compreensão de nossas conclusões, algumas explicações preliminares sobre as modificações dos órgãos cerebrais são necessárias, sobretudo para as pessoas estranhas à fisiologia.

Um princípio que a simples razão faz admitir, que a Ciência constata diariamente, é que nada há de inútil na Natureza, que, até nos mais imperceptíveis detalhes, tudo tem um fim, uma razão de ser, uma destinação. Este princípio é particularmente evidente no que respeita ao organismo dos seres vivos.

Em todos os tempos o cérebro foi considerado como o órgão da transmissão do pensamento e a sede das faculdades intelectuais e morais. Hoje é reconhecido que certas partes do cérebro têm funções especiais e são afetadas por uma ordem particular de pensamentos e de sentimentos, pelo menos no que concerne à generalidade; é assim que se colocam, instintivamente, na parte anterior, as faculdades do domínio da inteligência, e que uma fronte fortemente deprimida e estreitada, é, para todo o mundo, um sinal de inferioridade intelectual. As faculdades afetivas, os sentimentos e as paixões se acham, por isto mesmo, como tendo sua sede em outras partes do cérebro.

Ora, se se considera que os pensamentos e os sentimentos são excessivamente múltiplos, e partindo do princípio de que tudo tem sua destinação e sua utilidade, é permitido concluir que cada feixe fibroso do cérebro não só corresponde a uma faculdade geral distinta, mas que cada fibra corresponde à manifestação de uma das nuanças desta faculdade, como cada corda de um instrumento corresponde a um som particular. É uma hipótese, sem dúvida, mas que tem todos os caracteres da probabilidade, e cuja negação não infirmaria as consequências que deduziremos do princípio geral; ela nos ajudará em nossa explicação.

O pensamento é independente do organismo. Não há por que discutir aqui esta questão, nem refutar a opinião materialista, segundo a qual o pensamento é secretado pelo cérebro, como a bile o é pelo fígado, nasce e morre com esse órgão; além de suas funestas consequências morais, esta doutrina tem contra si o fato de nada explicar.

Segundo as doutrinas espiritualistas, que são as da imensa maioria dos homens, não podendo a matéria produzir o pensamento, este é um atributo do Espírito, do ser inteligente, que, quando unido ao corpo, serve-se dos órgãos especialmente destinados à sua transmissão, como se serve dos olhos para ver, dos pés para andar. Sobrevivendo o Espírito ao corpo, o pensamento também lhe sobrevive.

Segundo a Doutrina Espírita, não só o Espírito sobrevive, mas preexiste ao corpo; não é um ser novo; traz, ao nascer, as ideias, as qualidades e as imperfeições que possuía; assim se explicam as ideias, as aptidões e os pendores inatos. O pensamento é, pois, preexistente e sobrevivente ao organismo. Este ponto é capital e é por não o terem reconhecido que tantas questões ficaram insolúveis.

Estando na Natureza todas as faculdades e aptidões, o cérebro encerra os órgãos, ou, pelo menos, o germe dos órgãos necessários à manifestação de todos os pensamentos. A atividade do pensamento do Espírito sobre um ponto determinado impele ao desenvolvimento da fibra ou, se se quiser, do órgão correspondente; se uma faculdade não existir no Espírito, ou se, existindo, deve ficar em estado latente, o órgão correspondente, estando inativo, não se desenvolve ou se atrofia. Se o órgão for atrofiado congenitamente, não podendo manifestar-se a faculdade, o Espírito parece dele privado, embora de fato o possua, desde que lhe é inerente. Enfim, se o órgão, primitivamente em seu estado normal, se deteriora no curso da vida, a faculdade, de brilhante que era, vai perdendo a cor, depois se apaga, mas não se destrói; é apenas um véu que a obscurece.

Conforme os indivíduos, há faculdades, aptidões, tendências que se manifestam desde o começo da vida, enquanto outras se revelam em épocas mais tardias e produzem as mudanças de caráter e de disposições que se notam em certas pessoas. Neste último caso, geralmente não são disposições novas, mas aptidões preexistentes, que dormitam até que uma circunstância as venha estimular e despertar. Pode-se estar certo de que as disposições viciosas, que por vezes se manifestam subitamente e tardiamente, tinham seu germe preexistente nas imperfeições do Espírito, porque este, marchando sempre para o progresso, se for essencialmente bom não pode tornar-se mau, ao passo que de mau pode tornar-se bom.

O desenvolvimento ou o enfraquecimento dos órgãos cerebrais acompanha o movimento que se opera no Espírito. Essas modificações são favorecidas em todas as idades, mas, sobretudo, na juventude, pelo trabalho íntimo de renovação que se opera incessantemente no organismo, da seguinte maneira: Como se sabe, os principais elementos do organismo são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que, por suas múltiplas combinações, formam o sangue, os nervos, os músculos, os humores e as diferentes variedades de substâncias. Pela atividade das funções vitais, as moléculas orgânicas são incessantemente expelidas do corpo pela transpiração, pela exalação e por todas as secreções, de sorte que se não fossem substituídas, o corpo se reduziria e acabaria por definhar. O alimento e a aspiração incessantemente trazem novas moléculas, destinadas a substituir as que se vão, de onde se segue que, num dado tempo, todas as moléculas orgânicas são inteiramente renovadas e, numa certa idade, não existe mais uma só das que formavam o corpo em sua origem. É o caso de uma habitação, da qual se arrancassem as pedras uma a uma, substituindo-as à medida por uma nova pedra da mesma forma e tamanho, e assim por diante, até a última. Ter-se-ia sempre a mesma casa, mas formada de pedras diferentes.

Dá-se o mesmo com o corpo, cujos elementos constitutivos são, conforme os fisiologistas, totalmente renovados de sete em sete anos. As diversas partes do organismo sempre subsistem, mas os materiais são mudados. Dessas mudanças gerais ou parciais nascem as modificações que sobrevêm, com a idade, no estado sanitário de certos órgãos, as variações que sofrem os temperamentos, os gostos, os desejos que influem sobre o caráter.

Nem sempre as aquisições e as perdas estão em perfeito equilíbrio. Se as aquisições superam as perdas, o corpo cresce, aumenta; se se dá o contrário, o corpo diminui. Assim se explicam o crescimento, a obesidade, o emagrecimento, a decrepitude.

A mesma causa produz a expansão ou a interrupção do desenvolvimento dos órgãos cerebrais, conforme as modificações que se operam nas preocupações habituais, nas ideias e no caráter.

Se as circunstâncias e as causas que agem diretamente sobre o Espírito, provocando o exercício de uma aptidão ou de uma paixão, forem mantidas em estado de inércia, a atividade que se produz no órgão correspondente aí faz afluir o sangue e, com ele, as moléculas constituintes do órgão, que cresce e toma força em proporção desta atividade. Pela mesma razão, a inatividade da faculdade produz o enfraquecimento do órgão, do mesmo modo que uma atividade muito intensa e persistente também pode levar à sua desorganização ou enfraquecimento, por uma espécie de gasto, tal como acontece com uma corda muito esticada.

As aptidões do Espírito são, pois, sempre uma causa, e o estado dos órgãos um efeito. Pode suceder, entretanto, que o estado dos órgãos seja modificado por uma causa estranha ao Espírito, tal como doença acidental, influência atmosférica ou climática; então são os órgãos que reagem sobre o Espírito, não alterando as suas faculdades, mas perturbando a sua manifestação.

Um efeito semelhante pode resultar das substâncias ingeridas no estômago, como alimentos ou medicamentos. Essas substâncias aí se decompõem, e os princípios essenciais que encerram, misturados ao sangue, são levados, pela corrente da circulação, a todas as partes do corpo. É reconhecido pela experiência que os princípios ativos de certas substâncias são levados mais particularmente a tal ou qual víscera: o coração, o fígado, os pulmões etc., e aí produzem efeitos reparadores ou deletérios, conforme sua natureza e propriedades especiais.

Algumas, agindo desta maneira sobre o cérebro, podem exercer sobre o conjunto, ou sobre partes determinadas, uma ação estimulante ou estupefaciente, conforme a dose e o temperamento, por exemplo, as bebidas alcoólicas, o ópio e outras.

Nós nos estendemos um pouco sobre os detalhes que precedem, a fim de dar a compreender o princípio sobre o qual pode apoiar-se, com aparência de lógica, a teoria das modificações do estado moral por meios terapêuticos. Esse princípio é o da ação direta de uma substância sobre uma parte do organismo cerebral, tendo por função especial servir à manifestação de uma faculdade, de um sentimento ou de uma paixão, porque não pode vir ao pensamento de ninguém que tal substância possa agir sobre o Espírito.

Admitido, pois, que o princípio das faculdades esteja no Espírito, e não na matéria, suponhamos que se reconheça numa substância a propriedade de modificar as disposições morais, neutralizar uma inclinação má: isto só poderia ser por sua ação sobre o órgão correspondente a essa inclinação, ação que teria por efeito interromper o desenvolvimento desse órgão, atrofiá-lo ou paralisá-lo, se for desenvolvido. Torna-se evidente que, neste caso, não se suprime a inclinação, mas a sua manifestação, absolutamente como se ao músico se tirasse o seu instrumento.

Provavelmente são efeitos desta natureza que certos homeopatas observaram, e que os levaram a crer na possibilidade de corrigir, com o auxílio de medicamentos apropriados, vícios tais como o ciúme, o ódio, o orgulho, a cólera etc. Uma tal doutrina, se verdadeira, seria a negação de toda responsabilidade moral, a sanção do materialismo, porque, então, a causa de nossas imperfeições estaria só na matéria; a educação moral se reduziria a um tratamento médico; o pior homem poderia tornar-se bom sem grandes esforços, e a Humanidade poderia ser regenerada com o auxílio de algumas pílulas[2]. Se, ao contrário, como não padece dúvida, as imperfeições forem inerentes à própria inferioridade do Espírito, não se o melhorará pela modificação de seu invólucro carnal, como não se endireitaria um corcunda, dissimulando sua deformidade sob os tecidos de suas roupas.

Contudo, não duvidamos que tais resultados sejam obtidos em alguns casos particulares, porquanto, para afirmar um fato tão grave, é preciso ter observado; mas estamos convictos de que se enganaram com a causa e o efeito. Por sua natureza etérea os medicamentos homeopáticos têm uma ação de certa forma molecular; sem dúvida podem agir, mais que outros, sobre certas partes elementares e fluídicas dos órgãos e lhes modificar a constituição íntima. Se, pois, como é racional admitir, todos os sentimentos da alma têm sua fibra cerebral correspondente para a sua manifestação, um medicamento que agisse sobre essa fibra, quer para paralisá-la, quer para exaltar sua sensibilidade, paralisaria ou exaltaria, por isso mesmo, a expressão do sentimento, do qual fosse instrumento, mas o sentimento não deixaria de subsistir. O indivíduo estaria na posição de um assassino a quem se tirasse a possibilidade de cometer homicídios, cortando-lhe os braços, mas que conservasse o desejo de matar. Seria, pois, um paliativo, mas não um remédio curativo. Não se pode agir sobre o ser espiritual senão por meios espirituais; a utilidade dos meios materiais, se fosse constatado o efeito acima, talvez fosse de dominar mais facilmente o Espírito, de torná-lo mais flexível, mais dócil e mais acessível às influências morais; mas nos embalaríamos em ilusões se esperássemos de uma medicação qualquer um resultado definitivo e duradouro.

Seria completamente diferente se se tratasse de ajudar a manifestação de uma faculdade existente. Suponhamos um Espírito inteligente encarnado, não tendo ao seu serviço senão um cérebro atrofiado e não podendo, por conseguinte, manifestar suas ideias: será para nós um idiota. Admitindo, o que julgamos possível à homeopatia, mais do que a qualquer outro gênero de medicação, que se possa dar mais flexibilidade e sensibilidade às fibras cerebrais, o Espírito manifestaria seu pensamento, como um mudo, ao qual se tivesse desatado a língua. Mas se o Espírito fosse idiota por si mesmo, ainda que tivesse ao seu serviço o cérebro do maior gênio, nem por isso seria menos idiota. Não podendo um medicamento qualquer agir sobre o Espírito, não lhe poderia dar o que não tem, nem tirar o que tem; mas agindo sobre o órgão da transmissão do pensamento, pode facilitar essa transmissão sem que, por isto, nada seja mudado no estado do Espírito. O que é difícil, o mais das vezes mesmo impossível no idiota de nascença, porque há interrupção completa e quase sempre geral do desenvolvimento nos órgãos, torna-se possível quando a alteração é acidental e parcial. Neste caso, não é o Espírito que se aperfeiçoa, são os meios de comunicação.



[1] Revista Espírita – Fevereiro/1867 – Allan Kardec

[2] N. do T.: É perfeitamente lógico este raciocínio de Allan Kardec, considerando-se o estado em que se achava a ciência médica do seu tempo. Então não se dispunham dos avanços conquistados no campo da farmacologia, da bioquímica, da genética, da biologia e da engenharia moleculares, que permitiram a síntese de medicamentos de real valor, hoje usados com sucesso nos distúrbios mentais. Embora não curem a doença em si, cujo substrato está no Espírito imortal, é inegável que trazem certo alívio às partes lesadas, ou supostas como tais, alcançando, quem sabe, o próprio perispírito, e propiciando uma trégua ao doente, seguida de visível melhora, a fim de que a sua reforma moral, esta sim, e os recursos da prece e da fluidoterapia possam operar a cura definitiva, na atual ou no curso de outras existências.

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