Allan Kardec
Pode a homeopatia modificar as
disposições morais?
Tal é a pergunta que se fazem a alguns
médicos homeopatas e à qual não hesitam em responder afirmativamente,
apoiando-se em fatos.
Levando-se em conta a sua
extrema gravidade, vamos examiná-la com cuidado, de um ponto de vista que nos
parece ter sido negligenciado por aqueles senhores, por mais espiritualistas e
mesmo espíritas que sem dúvida o sejam, porque há pouquíssimos médicos
homeopatas que não sejam uma ou outra coisa. Mas, para a compreensão de nossas
conclusões, algumas explicações preliminares sobre as modificações dos órgãos
cerebrais são necessárias, sobretudo para as pessoas estranhas à fisiologia.
Um princípio que a simples razão
faz admitir, que a Ciência constata diariamente, é que nada há de inútil na
Natureza, que, até nos mais imperceptíveis detalhes, tudo tem um fim, uma razão
de ser, uma destinação. Este princípio é particularmente evidente no que
respeita ao organismo dos seres vivos.
Em todos os tempos o cérebro foi
considerado como o órgão da transmissão do pensamento e a sede das faculdades
intelectuais e morais. Hoje é reconhecido que certas partes do cérebro têm funções
especiais e são afetadas por uma ordem particular de pensamentos e de
sentimentos, pelo menos no que concerne à generalidade; é assim que se colocam,
instintivamente, na parte anterior, as faculdades do domínio da inteligência, e
que uma fronte fortemente deprimida e estreitada, é, para todo o mundo, um
sinal de inferioridade intelectual. As faculdades afetivas, os sentimentos e as
paixões se acham, por isto mesmo, como tendo sua sede em outras partes do
cérebro.
Ora, se se considera que os
pensamentos e os sentimentos são excessivamente múltiplos, e partindo do
princípio de que tudo tem sua destinação e sua utilidade, é permitido concluir
que cada feixe fibroso do cérebro não só corresponde a uma faculdade geral
distinta, mas que cada fibra corresponde à manifestação de uma das nuanças
desta faculdade, como cada corda de um instrumento corresponde a um som
particular. É uma hipótese, sem dúvida, mas que tem todos os caracteres da
probabilidade, e cuja negação não infirmaria as consequências que deduziremos
do princípio geral; ela nos ajudará em nossa explicação.
O pensamento é independente do
organismo. Não há por que discutir aqui esta questão, nem refutar a opinião
materialista, segundo a qual o pensamento é secretado pelo cérebro, como a bile
o é pelo fígado, nasce e morre com esse órgão; além de suas funestas consequências
morais, esta doutrina tem contra si o fato de nada explicar.
Segundo as doutrinas
espiritualistas, que são as da imensa maioria dos homens, não podendo a matéria
produzir o pensamento, este é um atributo do Espírito, do ser inteligente, que,
quando unido ao corpo, serve-se dos órgãos especialmente destinados à sua
transmissão, como se serve dos olhos para ver, dos pés para andar. Sobrevivendo
o Espírito ao corpo, o pensamento também lhe sobrevive.
Segundo a Doutrina Espírita, não
só o Espírito sobrevive, mas preexiste
ao corpo; não é um ser novo; traz, ao nascer, as ideias, as qualidades e as
imperfeições que possuía; assim se explicam as ideias, as aptidões e os
pendores inatos. O pensamento é, pois, preexistente
e sobrevivente ao organismo. Este
ponto é capital e é por não o terem reconhecido que tantas questões ficaram
insolúveis.
Estando na Natureza todas as
faculdades e aptidões, o cérebro encerra os órgãos, ou, pelo menos, o germe dos
órgãos necessários à manifestação de todos os pensamentos. A atividade do
pensamento do Espírito sobre um ponto determinado impele ao desenvolvimento da
fibra ou, se se quiser, do órgão correspondente; se uma faculdade não existir
no Espírito, ou se, existindo, deve ficar em estado latente, o órgão
correspondente, estando inativo, não se desenvolve ou se atrofia. Se o órgão
for atrofiado congenitamente, não podendo manifestar-se a faculdade, o Espírito
parece dele privado, embora de fato o possua, desde que lhe é inerente. Enfim,
se o órgão, primitivamente em seu estado normal, se deteriora no curso da vida,
a faculdade, de brilhante que era, vai perdendo a cor, depois se apaga, mas não
se destrói; é apenas um véu que a obscurece.
Conforme os indivíduos, há
faculdades, aptidões, tendências que se manifestam desde o começo da vida,
enquanto outras se revelam em épocas mais tardias e produzem as mudanças de
caráter e de disposições que se notam em certas pessoas. Neste último caso,
geralmente não são disposições novas, mas aptidões preexistentes, que dormitam
até que uma circunstância as venha estimular e despertar. Pode-se estar certo
de que as disposições viciosas, que por vezes se manifestam subitamente e
tardiamente, tinham seu germe preexistente nas imperfeições do Espírito, porque
este, marchando sempre para o progresso, se for essencialmente bom não pode
tornar-se mau, ao passo que de mau pode tornar-se bom.
O desenvolvimento ou o
enfraquecimento dos órgãos cerebrais acompanha o movimento que se opera no
Espírito. Essas modificações são favorecidas em todas as idades, mas,
sobretudo, na juventude, pelo trabalho íntimo de renovação que se opera
incessantemente no organismo, da seguinte maneira: Como se sabe, os principais
elementos do organismo são o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono que,
por suas múltiplas combinações, formam o sangue, os nervos, os músculos, os
humores e as diferentes variedades de substâncias. Pela atividade das funções
vitais, as moléculas orgânicas são incessantemente expelidas do corpo pela
transpiração, pela exalação e por todas as secreções, de sorte que se não
fossem substituídas, o corpo se reduziria e acabaria por definhar. O alimento e
a aspiração incessantemente trazem novas moléculas, destinadas a substituir as
que se vão, de onde se segue que, num dado tempo, todas as moléculas orgânicas
são inteiramente renovadas e, numa certa idade, não existe mais uma só das que
formavam o corpo em sua origem. É o caso de uma habitação, da qual se
arrancassem as pedras uma a uma, substituindo-as à medida por uma nova pedra da
mesma forma e tamanho, e assim por diante, até a última. Ter-se-ia sempre a
mesma casa, mas formada de pedras diferentes.
Dá-se o mesmo com o corpo, cujos
elementos constitutivos são, conforme os fisiologistas, totalmente renovados de
sete em sete anos. As diversas partes do organismo sempre subsistem, mas os
materiais são mudados. Dessas mudanças gerais ou parciais nascem as
modificações que sobrevêm, com a idade, no estado sanitário de certos órgãos, as
variações que sofrem os temperamentos, os gostos, os desejos que influem sobre
o caráter.
Nem sempre as aquisições e as
perdas estão em perfeito equilíbrio. Se as aquisições superam as perdas, o
corpo cresce, aumenta; se se dá o contrário, o corpo diminui. Assim se explicam
o crescimento, a obesidade, o emagrecimento, a decrepitude.
A mesma causa produz a expansão
ou a interrupção do desenvolvimento dos órgãos cerebrais, conforme as
modificações que se operam nas preocupações habituais, nas ideias e no caráter.
Se as circunstâncias e as causas
que agem diretamente sobre o Espírito, provocando o exercício de uma aptidão ou
de uma paixão, forem mantidas em estado de inércia, a atividade que se produz
no órgão correspondente aí faz afluir o sangue e, com ele, as moléculas
constituintes do órgão, que cresce e toma força em proporção desta atividade.
Pela mesma razão, a inatividade da faculdade produz o enfraquecimento do órgão,
do mesmo modo que uma atividade muito intensa e persistente também pode levar à
sua desorganização ou enfraquecimento, por uma espécie de gasto, tal como
acontece com uma corda muito esticada.
As aptidões do Espírito são,
pois, sempre uma causa, e o estado
dos órgãos um efeito. Pode suceder,
entretanto, que o estado dos órgãos seja modificado por uma causa estranha ao
Espírito, tal como doença acidental, influência atmosférica ou climática; então
são os órgãos que reagem sobre o Espírito, não
alterando as suas faculdades, mas perturbando a sua manifestação.
Um efeito semelhante pode
resultar das substâncias ingeridas no estômago, como alimentos ou medicamentos.
Essas substâncias aí se decompõem, e os princípios essenciais que encerram,
misturados ao sangue, são levados, pela corrente da circulação, a todas as
partes do corpo. É reconhecido pela experiência que os princípios ativos de
certas substâncias são levados mais particularmente a tal ou qual víscera: o
coração, o fígado, os pulmões etc., e aí produzem efeitos reparadores ou
deletérios, conforme sua natureza e propriedades especiais.
Algumas, agindo desta maneira
sobre o cérebro, podem exercer sobre o conjunto, ou sobre partes determinadas,
uma ação estimulante ou estupefaciente, conforme a dose e o temperamento, por
exemplo, as bebidas alcoólicas, o ópio e outras.
Nós nos estendemos um pouco
sobre os detalhes que precedem, a fim de dar a compreender o princípio sobre o
qual pode apoiar-se, com aparência de lógica, a teoria das modificações do
estado moral por meios terapêuticos. Esse princípio é o da ação direta de uma
substância sobre uma parte do organismo cerebral, tendo por função especial
servir à manifestação de uma faculdade, de um sentimento ou de uma paixão,
porque não pode vir ao pensamento de ninguém que tal substância possa agir
sobre o Espírito.
Admitido, pois, que o princípio
das faculdades esteja no Espírito, e não na matéria, suponhamos que se
reconheça numa substância a propriedade de modificar as disposições morais,
neutralizar uma inclinação má: isto só poderia ser por sua ação sobre o órgão
correspondente a essa inclinação, ação que teria por efeito interromper o
desenvolvimento desse órgão, atrofiá-lo ou paralisá-lo, se for desenvolvido.
Torna-se evidente que, neste caso, não se suprime a inclinação, mas a sua
manifestação, absolutamente como se ao músico se tirasse o seu instrumento.
Provavelmente são efeitos desta
natureza que certos homeopatas observaram, e que os levaram a crer na
possibilidade de corrigir, com o auxílio de medicamentos apropriados, vícios
tais como o ciúme, o ódio, o orgulho, a cólera etc. Uma tal doutrina, se
verdadeira, seria a negação de toda responsabilidade moral, a sanção do
materialismo, porque, então, a causa de nossas imperfeições estaria só na
matéria; a educação moral se reduziria a um tratamento médico; o pior homem
poderia tornar-se bom sem grandes esforços, e a Humanidade poderia ser
regenerada com o auxílio de algumas pílulas[2].
Se, ao contrário, como não padece dúvida, as imperfeições forem inerentes à
própria inferioridade do Espírito, não se o melhorará pela modificação de seu
invólucro carnal, como não se endireitaria um corcunda, dissimulando sua
deformidade sob os tecidos de suas roupas.
Contudo, não duvidamos que tais
resultados sejam obtidos em alguns casos particulares, porquanto, para afirmar
um fato tão grave, é preciso ter observado; mas estamos convictos de que se
enganaram com a causa e o efeito. Por sua natureza etérea os medicamentos
homeopáticos têm uma ação de certa forma molecular; sem dúvida podem agir, mais
que outros, sobre certas partes elementares e fluídicas dos órgãos e lhes
modificar a constituição íntima. Se, pois, como é racional admitir, todos os sentimentos
da alma têm sua fibra cerebral correspondente para a sua manifestação, um
medicamento que agisse sobre essa fibra, quer para paralisá-la, quer para
exaltar sua sensibilidade, paralisaria ou exaltaria, por isso mesmo, a expressão do sentimento, do qual fosse
instrumento, mas o sentimento não deixaria de subsistir. O indivíduo estaria na
posição de um assassino a quem se tirasse a possibilidade de cometer homicídios,
cortando-lhe os braços, mas que conservasse o desejo de matar. Seria, pois, um
paliativo, mas não um remédio curativo. Não se pode agir sobre o ser espiritual
senão por meios espirituais; a utilidade dos meios materiais, se fosse
constatado o efeito acima, talvez fosse de dominar mais facilmente o Espírito,
de torná-lo mais flexível, mais dócil e mais acessível às influências morais;
mas nos embalaríamos em ilusões se esperássemos de uma medicação qualquer um
resultado definitivo e duradouro.
Seria completamente diferente se
se tratasse de ajudar a manifestação de uma faculdade existente. Suponhamos um Espírito
inteligente encarnado, não tendo ao seu serviço senão um cérebro atrofiado e
não podendo, por conseguinte, manifestar suas ideias: será para nós um idiota.
Admitindo, o que julgamos possível à homeopatia, mais do que a qualquer outro
gênero de medicação, que se possa dar mais flexibilidade e sensibilidade às
fibras cerebrais, o Espírito manifestaria seu pensamento, como um mudo, ao qual
se tivesse desatado a língua. Mas se o Espírito fosse idiota por si mesmo,
ainda que tivesse ao seu serviço o cérebro do maior gênio, nem por isso seria
menos idiota. Não podendo um medicamento qualquer agir sobre o Espírito, não
lhe poderia dar o que não tem, nem tirar o que tem; mas agindo sobre o órgão da
transmissão do pensamento, pode facilitar essa transmissão sem que, por isto,
nada seja mudado no estado do Espírito. O que é difícil, o mais das vezes mesmo
impossível no idiota de nascença, porque há interrupção completa e quase sempre
geral do desenvolvimento nos órgãos, torna-se possível quando a alteração é
acidental e parcial. Neste caso, não é o Espírito que se aperfeiçoa, são os
meios de comunicação.
[1] Revista Espírita
– Fevereiro/1867 – Allan Kardec
[2] N. do T.: É perfeitamente lógico este raciocínio de Allan
Kardec, considerando-se o estado em que se achava a ciência médica do seu tempo.
Então não se dispunham dos avanços conquistados no campo da farmacologia, da
bioquímica, da genética, da biologia e da engenharia moleculares, que
permitiram a síntese de medicamentos de real valor, hoje usados com sucesso nos
distúrbios mentais. Embora não curem a doença em si, cujo substrato está no
Espírito imortal, é inegável que trazem certo alívio às partes lesadas, ou
supostas como tais, alcançando, quem sabe, o próprio perispírito, e propiciando uma trégua ao doente,
seguida de visível melhora, a fim de que a sua reforma moral, esta sim, e os
recursos da prece e da fluidoterapia possam operar a cura definitiva, na atual
ou no curso de outras existências.
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