terça-feira, 27 de julho de 2021

EMPREGO DA PALAVRA MILAGRE[1]

 

Allan Kardec

 

O jornal Vérité, de Lyon, de 16 de setembro de 1866, num artigo intitulado Renan e sua escola, continha as reflexões seguintes, a propósito da palavra milagre.

Renan e sua escola nem se dão ao trabalho de discutir os fatos; rejeitam todos a priori, qualificando-os erroneamente de sobrenaturais e, portanto, impossíveis e absurdos, opondo-lhes um fim de não aceitação absoluto e um desdém transcendente. Acerca disto Renan disse uma palavra eminentemente verdadeira e profunda: “O sobrenatural não seria outra coisa senão o superdivino”. Aderimos com toda a nossa energia a esta grande verdade, mas fazemos observar que a própria palavra milagre (mirum, coisa admirável e até então inexplicável) não quer dizer interversão das leis da Natureza; longe disso: antes significa flexibilidade dessas mesmas leis, ainda desconhecidas do espírito humano. Diremos mesmo que sempre haverá milagres, porque a ascensão da Humanidade para o conhecimento cada vez mais perfeito sendo sempre progressivo, esse conhecimento necessitará constantemente ser superado e aguilhoado por fatos que parecerão maravilhosos na época em que se produzirem e não serão compreendidos e explicados senão mais tarde. Um escritor muito acreditado de nossa escola deixou-se tomar por essa objeção; (Allan Kardec) repete em muitas passagens de suas obras que não há maravilhoso, nem milagres; é uma inadvertência resultante do falso sentido de sobrenatural, repelido completamente pela etimologia da palavra. Dizemos nós que se a palavra milagre não existisse, para qualificar fenômenos ainda em estudo e saindo da ciência vulgar, seria preciso inventá-la, como a mais apropriada e a mais lógica.

Nada é sobrenatural, repetimos, porque fora da Natureza criada e incriada não há absolutamente nada de concebível; mas há o sobre-humano, isto é, fenômenos que podem ser produzidos por seres inteligentes outros que não os homens, segundo as leis de sua natureza, ou produzidos, quer mediatamente, quer imediatamente por Deus, conforme sua natureza ainda e conforme suas relações naturais com suas criaturas.

Philaléthès

 

Graças a Deus não ignoramos o sentido etimológico da palavra milagre. Temo-lo provado em muitos artigos e, notadamente, no da Revista Espírita do mês de setembro de 1860. Não é, pois, nem por engano, nem por inadvertência que repelimos a sua aplicação aos fenômenos espíritas, por mais extraordinários que possam parecer à primeira vista, mas com perfeito conhecimento de causa e intencionalmente.

Em sua acepção usual a palavra milagre perdeu sua significação primitiva, como tantas outras, a começar pelo vocábulo filosofia (amor à sabedoria), da qual se servem hoje para exprimir as ideias mais diametralmente opostas, desde o mais puro espiritualismo até o materialismo mais absoluto. Não é duvidoso para ninguém que, no pensamento das massas, milagre implica a ideia de um fato extranatural. Perguntai a todos os que acreditam nos milagres se os encaram como efeitos naturais. A Igreja está de tal modo fixada neste ponto que anatematiza os que pretendem explicar os milagres pelas leis da Natureza. A Academia mesma assim define este vocábulo: Ato do poder divino, contrário às leis conhecidas da Natureza. – Verdadeiro, falso milagre – Milagre comprovado – Operar milagres – O dom dos milagres.

Para ser compreendido por todos, é preciso falar como todo o mundo. Ora, é evidente que se tivéssemos qualificado os fenômenos espíritas de miraculosos, o público ter-se-ia enganado quanto ao seu verdadeiro caráter, a menos que empregasse de cada vez um circunlóquio e dissesse que há milagres que não são milagres, como geralmente se os entendem. Desde que a generalidade a isto liga a ideia de uma derrogação das leis naturais, e que os fenômenos espíritas não passam de aplicação dessas mesmas leis, é muito mais simples e, sobretudo, mais lógico dizer claramente: Não, o Espiritismo não faz milagres. Desta maneira, nem há engano, nem falsa interpretação. Assim como o progresso das ciências físicas destruiu uma porção de preconceitos, e fez entrar na ordem dos fatos naturais um grande número de efeitos outrora considerados como miraculosos, o Espiritismo, pela revelação de novas leis, vem restringir mais ainda o domínio do maravilhoso; dizemos mais: dá-lhe o último golpe, razão por que não é mal visto em parte alguma, tanto quanto não o são a astronomia e a geologia.

Se os que creem nos milagres entendessem esta palavra em sua acepção etimológica (coisa admirável), admirariam o Espiritismo, em vez de lhe lançar anátema; em lugar de aprisionar Galileu por ter demonstrado que Josué não podia ter parado o Sol, ter-lhe-iam tecido coroas por haver revelado ao mundo coisas de outro modo admiráveis, e que atestam infinitamente melhor a grandeza e o poder de Deus.

Pelos mesmos motivos, repelimos a palavra sobrenatural do vocabulário espírita. Milagre ainda teria sua razão de ser em sua etimologia, salvo em determinar a sua acepção; sobrenatural é uma insensatez do ponto de vista do Espiritismo.

O vocábulo sobre-humano, proposto por Philaléthès, em nossa opinião é igualmente impróprio, porque os seres que são agentes primitivos dos fenômenos espíritas, embora no estado de Espíritos, não deixam de pertencer à Humanidade. A palavra sobre-humano tenderia a sancionar a opinião longamente acreditada, e destruída pelo Espiritismo, que os Espíritos são criaturas à parte, fora da Humanidade. Uma outra razão peremptória é que muitos desses fenômenos são o produto direto dos Espíritos encarnados, por conseguinte, homens, e em todo o caso, requerem quase sempre o concurso de um encarnado; portanto, não são mais sobre-humanos que sobrenaturais.

Uma palavra que também se afastou completamente de sua significação primitiva é demônio. Sabe-se que, entre os Antigos, dizia-se daimon dos Espíritos de uma certa ordem, intermediários entre os homens e aqueles que eram chamados deuses. Esta denominação não implicava, na origem, nenhuma qualidade má; ao contrário, era tomada em bom sentido. O demônio de Sócrates certamente não era um Espírito mau, ao passo que, segundo a opinião moderna, saída da teologia católica, os demônios são anjos decaídos, seres à parte, essencialmente e perpetuamente votados ao mal.

Para ser consequente com a opinião de Philaléthès, seria preciso, em respeito pela etimologia, que o Espiritismo também conservasse a qualificação de demônios. Se o Espiritismo chamasse os seus fenômenos de milagres e os Espíritos de demônios, seus adversários teriam o queijo e a faca na mão! Seria repelido por três quartos dos que hoje o aceitam, porque nele veriam um retorno a crenças que já não são de nosso tempo. Vestir o Espiritismo com roupas usadas seria uma inabilidade, um golpe funesto na doutrina, que se veria em dificuldade para dissipar as prevenções que denominações impróprias tivessem alimentado.



[1] Revista Espírita – Maio/1867 – Allan Kardec

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