Carine
Mardorossian[2]
- The Conversation - 18 Abril 2021
Um dos elementos mais devastadores da pandemia do
covid-19 tem sido a
incapacidade de cuidar pessoalmente de entes queridos
que ficam doentes.
Repetidas vezes, familiares
relataram como a morte de pessoas próximas foi mais devastadora porque foram
incapazes de segurar sua mão para oferecer uma presença familiar e
reconfortante em seus últimos dias e horas.
·
Covid-19:
'Dói demais ver as crianças morrendo sem poder ver os pais', diz pediatra de
UTI.
·
O motorista de ambulância que ajuda paciente
terminais a realizar últimos desejos
Alguns tiveram que se despedir
pela tela de um smartphone segurado por um profissional de saúde. Outros
recorreram ao uso de walkie-talkies ou a acenos pela janela.
Como você pode superar a dor e a
culpa avassaladoras que surgem quando você pensa em um ente querido morrendo
sozinho?
Não tenho uma resposta para essa
pergunta. Mas o trabalho de um médico de cuidados paliativos chamado
Christopher Kerr, com quem escrevi o livro Death
Is But a Dream: Finding Hope and Meaning at Life's End ("A morte é
apenas um sonho: encontrando esperança e sentido no fim da vida", em
tradução livre), pode oferecer algum conforto.
Visitantes
inesperados
No início de sua carreira, Kerr
foi incumbido, como todos os médicos, de se ater aos cuidados físicos de seus
pacientes.
Mas ele logo percebeu um
fenômeno com o qual enfermeiras experientes já estavam acostumadas.
À medida que os pacientes se
aproximavam da morte, muitos tinham sonhos e visões de entes queridos falecidos
que voltavam para confortá-los em seus últimos dias.
Os médicos são treinados para
interpretar esses eventos como alucinações delirantes ou induzidas por drogas
que podem justificar mais medicação ou sedação completa.
Mas ao ver a paz e o conforto
que essas experiências de fim de vida pareciam proporcionar a seus pacientes,
Kerr decidiu parar e escutar.
Um dia, em 2005, uma paciente
terminal chamada Mary teve uma dessas visões: ela começou a mover os braços
como se estivesse embalando um bebê, ninando seu filho que havia morrido ainda
criança décadas antes.
Para Kerr, isso não parecia
declínio cognitivo. E se, ele se perguntou, as percepções dos próprios
pacientes no fim da vida fossem importantes para o seu bem-estar de forma que
não devessem interessar apenas a enfermeiros, capelães e assistentes sociais?
Como seria o atendimento médico
se todos os médicos também parassem e escutassem?
O início do projeto
Assim, ao ver pacientes
terminais chamarem seus entes queridos, muitos dos quais não viam, tocavam ou
ouviam havia décadas, ele começou a coletar e registrar testemunhos daqueles
que estavam morrendo.
Ao longo de 10 anos, Kerr e sua
equipe de pesquisa registraram as experiências de fim de vida de 1,4 mil
pacientes e famílias.
O que ele descobriu o espantou.
Mais de 80% de seus pacientes, independentemente da classe social, origem ou
faixa etária, tiveram experiências no fim da vida que pareciam envolver mais do
que sonhos estranhos. Eram vívidos, significativos e transformadores. E sempre
aumentavam em frequência perto da morte.
Eles incluíam visões de mães,
pais e parentes há muito tempo perdidos, assim como animais de estimação mortos
voltando para confortar seus antigos donos.
Tratava-se de ressuscitar
relacionamentos, reviver amores passados e obter perdão. Muitas vezes traziam
tranquilidade e apoio, paz e aceitação.
Tecelão de sonhos
A primeira vez que ouvi falar
sobre a pesquisa de Kerr foi em um estábulo.
Eu estava ocupada limpando a
baia do meu cavalo. Os estábulos ficavam na propriedade de Kerr, por isso
frequentemente conversávamos sobre seu trabalho com os sonhos e visões de seus
pacientes terminais.
Ele me contou sobre sua palestra
no TEDx[3]
sobre o assunto, assim como sobre o projeto do livro em que estava escrevendo.
Não pude deixar de me emocionar
com o trabalho desse médico e cientista.
Quando ele revelou que não
estava avançando muito na escrita, me ofereci para ajudar. Ele hesitou a
princípio. Eu era uma professora de inglês especialista em desconstruir as
histórias que outros escreveram, não em escrevê-las.
O agente dele estava preocupado
com a possibilidade de eu não ser capaz de escrever de forma acessível ao
público, algo pelo qual os acadêmicos não são exatamente conhecidos. Insisti, e
o resto é história.
Foi essa colaboração que me
tornou uma escritora.
Fui encarregada de incutir mais
humanidade na notável intervenção médica que esta pesquisa científica
representava, para dar um rosto humano aos dados estatísticos que já haviam
sido publicados em revistas médicas.
As comoventes histórias dos
encontros de Kerr com seus pacientes e famílias confirmaram como, nas palavras
do escritor renascentista francês Michel de Montaigne, "aquele que ensina
os homens a morrer, ao mesmo tempo os ensina a viver".
Fiquei sabendo sobre Robert, que
se via diante da perda de Barbara, sua esposa de 60 anos, e estava tomado por
sentimentos conflitantes de culpa, desespero e fé.
Um dia, ele inexplicavelmente a
viu pegando o bebê que haviam perdido décadas atrás, em um breve período de sonhos
lúcidos que lembravam a experiência de Mary anos antes.
Robert ficou impressionado com a
atitude calma e o sorriso de felicidade da esposa.
Foi um momento de pura
plenitude, transformando sua experiência no processo da morte.
Barbara estava vivendo sua
partida como uma época de amor reconquistado, e vê-la reconfortada deu a Robert
um pouco de paz em meio à perda irremediável.
Para os casais mais velhos de
que Kerr cuidava, ser separado pela morte após décadas de união era
simplesmente imensurável.
Os sonhos e visões recorrentes
de Joan ajudaram a curar a ferida profunda deixada pela morte de seu marido
meses antes.
Ela o chamava durante a noite e
sinalizava sua presença durante o dia, inclusive em momentos de lucidez plena e
articulada.
Para sua filha Lisa, esses
eventos significavam que o vínculo de seus pais era indestrutível. Os sonhos e
visões de sua mãe antes de morrer ajudaram Lisa em sua jornada rumo à
aceitação, um elemento-chave no processamento da perda.
Quando as crianças estão
morrendo, geralmente são seus amados animais de estimação falecidos que
aparecem.
Jessica, de 13 anos, que estava
morrendo de câncer nos ossos, começou a ter visões de seu antigo cachorro,
Shadow. Sua presença a tranquilizou.
"Vou ficar bem", disse
ela a Kerr em uma de suas últimas visitas.
Para a mãe de Jessica, Kristen,
essas visões — e a tranquilidade resultante de Jessica — ajudaram a iniciar o
processo ao qual ela vinha resistindo: deixá-la partir.
Isolados mas não
sozinhos
O sistema de saúde é difícil de
mudar. No entanto, Kerr espera ajudar os pacientes e seus entes queridos a
resgatar o processo da morte — de uma abordagem clínica para uma que seja
apreciada como uma experiência humana única e rica.
Os sonhos e visões anteriores à
morte ajudam a preencher o vazio que, de outra forma, poderia ser criado pela
dúvida e pelo medo que a morte evoca.
Eles ajudam os pacientes
terminais a se reunirem com aqueles que amaram e perderam, aqueles que os
protegeram, os apoiaram e trouxeram paz.
Eles curam velhas feridas,
restauram a dignidade e recuperam o amor. Conhecer essa realidade paradoxal
também ajuda os familiares a lidar com o luto.
Com hospitais e asilos ainda
fechados para visitantes devido à pandemia de covid-19, pode ser útil saber que
os pacientes terminais raramente falam sobre estar sozinhos. Eles falam sobre
ser amados e voltar a ficar juntos.
Nada substitui poder abraçar
nossos entes queridos em seus últimos momentos, mas pode ser um consolo saber
que eles se sentem confortados.
Recomendo a leitura do Livro
de Ernesto Bozzano:
·
FENÔMENOS PSÍQUICOS NO MOMENTO DA MORTE
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