terça-feira, 29 de dezembro de 2020

IDÉIAS PRECONCEBIDAS[1]

 


Allan Kardec

 

Temos-vos dito muitas vezes que investiguem as comunicações que vos são dadas, submetendo-as à análise da razão, e que não tomeis sem exame as inspirações que vêm agitar o vosso Espírito, sob a influência de causas por vezes muito difíceis de constatar pelos encarnados, entregues a distrações sem-número.

As ideias puras que, por assim dizer, flutuam no espaço (segundo a ideia platônica), levadas pelos Espíritos, nem sempre podem alojar-se sozinhas e isoladas no cérebro dos vossos médiuns. Muitas vezes encontram o lugar ocupado por ideias preconcebidas, que se espalham com o jato da inspiração, perturbando-o e transformando-o de maneira inconsciente, é verdade, mas algumas vezes de maneira bastante profunda para que a ideia espiritual se ache, assim, inteiramente desnaturada.

A inspiração encerra dois elementos: o pensamento e o calor fluídico destinado a excitar o Espírito do médium, dando-lhe o que chamais a verve da composição. Se a inspiração encontrar o lugar ocupado por uma ideia preconcebida, da qual o médium não pode ou não quer desligar-se, nosso pensamento fica sem intérprete e o calor fluídico se gasta em estimular uma ideia que não é nossa. Quantas vezes em vosso mundo egoísta e apaixonado temos trazido o calor e a ideia! Desdenhais a ideia, que vossa consciência deveria fazer-vos reconhecer e vos apoderais do calor, em benefício de vossas paixões terrenas, por vezes dilapidando o bem de Deus em proveito do mal. Assim, quantas contas terão de prestar um dia todos os advogados das causas equivocadas!

Sem dúvida seria desejável que as boas inspirações pudessem sempre dominar as ideias preconcebidas. Mas, então, entravaríamos o livre-arbítrio da vontade do homem e, assim, este último escaparia à responsabilidade que lhe pertence. Mas se somos apenas os conselheiros auxiliares da Humanidade, quantas vezes nos devemos felicitar, quando nossa ideia, batendo à porta de uma consciência estreita, triunfa da ideia preconcebida e modifica a convicção do inspirado! Entretanto, não se deveria crer que nosso auxílio mal-empregado não traísse um pouco o mau uso que dele podem fazer. A convicção sincera encontra acentos que, partidos do coração, chegam ao coração; a convicção simulada pode satisfazer as convicções apaixonadas, vibrando em uníssono com a primeira, mas traz um frio particular que deixa a consciência malsatisfeita e revela uma origem duvidosa.

Quereis saber de onde vêm os dois elementos da inspiração mediúnica? A resposta é fácil: a ideia vem do mundo extraterrestre – é a inspiração própria do Espírito. Quanto ao calor fluídico da inspiração, nós o encontramos e o tomamos em vós mesmos; é a parte quintessenciada do fluido vital em emanação; algumas vezes nós a tomamos do próprio inspirado, quando este é dotado de certo poder fluídico, ou mediúnico, como dizeis; na maioria das vezes nós o tomamos em seu ambiente, na emanação de benevolência, de que está mais ou menos cercado. É por isto que se pode dizer com razão que a simpatia torna eloquente.

Se refletirdes atentamente nestas causas, encontrareis a explicação de muitos fatos que a princípio causam admiração, mas dos quais cada qual possui uma certa intuição. Só a ideia não bastaria ao homem, se não se lhe desse o poder de exprimi-la. O calor é para a ideia o que o perispírito é para o Espírito, o que o vosso corpo é para a alma. Sem o corpo a alma seria impotente para agitar a matéria; sem o calor, a ideia seria impotente para comover os corações.

A conclusão desta comunicação é que jamais deveis abdicar de vossa razão, ao examinardes as inspirações que vos são submetidas. Quanto mais o médium tem ideias adquiridas, mas é ele susceptível de ideias preconcebidas, mais deve fazer tábula rasa de seus próprios pensamentos, abandonar as influências que o agitam e dar à sua consciência a abnegação necessária a uma boa comunicação.

II

DEUS NÃO SE VINGA

 

O que precede não passa de um preâmbulo destinado a servir de introdução a outras ideias. Falei-vos de ideias preconcebidas, mas há outras além das que vêm das inclinações do inspirado; há as que são consequência de uma instrução errônea, de uma interpretação acreditada num tempo mais ou menos longo, que tiveram sua razão de ser numa época em que a razão humana estava insuficientemente desenvolvida e que, passadas ao estado crônico, só podem ser modificados por esforços heroicos, sobretudo quando têm para si a autoridade do ensino religioso e de livros reservados. Uma destas ideias é esta: Deus se vinga. Que um homem, ferido em seu orgulho, em sua pessoa ou em seus interesses, se vingue, isto se concebe; embora culpado tal vingança está dentro dos limites das imperfeições humanas. Mas um pai que se vinga nos filhos levanta a indignação geral, porque cada um sente que um pai, encarregado da tarefa de criar os seus filhos, pode corrigir-lhes os erros e os defeitos por todos os meios ao seu alcance, mas a vingança lhe é interdita, sob pena de tornar-se estranho a todos os direitos da paternidade.

Sob o nome de vindita pública, a sociedade que desaparece vingava-se dos culpados; a punição infligida, muitas vezes cruel, não passava de vingança sobre as más ações do homem perverso; ela não se preocupava absolutamente com a reabilitação desse homem, deixando a Deus o cuidado de o punir ou de o perdoar. Bastava-lhe ferir pelo terror, que julgava salutar, os futuros culpados. A sociedade que surge não pensa mais assim; se ainda não age em vista da reeducação do culpado, ao menos compreende o que a vingança contém de odioso por si mesma; salvaguardar a sociedade contra os ataques de um criminoso lhe basta e, ajudada pelo temor de um erro judiciário, em breve a pena capital desaparecerá dos vossos códigos.

Se hoje a sociedade se julga muito forte em frente a um culpado para se deixar tomar pela cólera e dele vingar-se, como quereis que Deus, participando de vossas fraquezas, se deixe tomar por um sentimento irascível e fira por vingança um pecador chamado ao arrependimento? Crer na cólera divina é um orgulho da Humanidade, que se imagina pesar bastante na balança divina.

Se a planta do vosso jardim não se desenvolve a contento, ireis encolerizar-vos e vos vingar dela? Não; se puderdes a soerguereis, apoiá-la-eis em estacas e, se necessário, a transplantareis, mas não vos vingareis. Assim faz Deus.

Vingar-se, Deus? Que blasfêmia! Que amesquinhamento da grandeza divina! Quanta ignorância da distância infinita que separa o Criador da criatura! Quanto esquecimento de sua bondade e de sua justiça! Deus viria, numa existência em que não vos resta nenhuma lembrança dos vossos erros passados, fazer-vos pagar muito caro as faltas cometidas numa época apagada em vosso ser!

Não, não! Deus não age assim; ele entrava o impulso de uma paixão funesta, corrige o orgulho inato por uma humildade forçada, retifica o egoísmo do passado pela urgência de uma necessidade presente, que leva a desejar a existência de um sentimento que o homem nem conheceu, nem experimentou. Como pai, corrige, mas, também como pai, Deus não se vinga.

Guardai-vos dessas ideias preconcebidas de vingança celeste, detritos perdidos de um erro antigo. Guardai-vos dessas tendências fatalistas, cuja porta está aberta para vossas doutrinas novas e que vos conduziriam diretamente ao quietismo oriental. A parte de liberdade do homem já não é bastante grande para diminuí-la ainda mais por crenças errôneas; quanto mais sentirdes vossa liberdade, sem dúvida maior será a vossa responsabilidade e tanto mais os esforços de vossa vontade vos conduzirão adiante, na senda do progresso.

Pascal

 

III

A VERDADE

 

A verdade, meu amigo, é uma dessas abstrações para as quais tende o Espírito humano incessantemente, sem jamais poder atingi-la. É preciso que ele tenda para ela, é uma das condições do progresso, mas, pela simples razão da imperfeição de sua natureza, ele não poderia alcançá-la. Seguindo a direção que segue a verdade em sua marcha ascendente, o Espírito humano está na via providencial, mas não lhe é dado ver o seu termo.

Compreender-me-ás melhor quando souberes que a verdade é, como o tempo, dividida em duas partes, pelo momento inapreciável que se chama o presente, a saber: o passado e o futuro.

Assim, há duas verdades: a verdade relativa e a verdade absoluta; a verdade relativa é o que é; a verdade absoluta é o que deveria ser.

Ora, como o que deveria ser sobe por graus até a perfeição absoluta, que é Deus, segue-se que, para os seres criados e seguindo a rota ascensional do progresso, não há senão verdades relativas.

Mas, do fato de uma verdade relativa não ser imutável, não se segue que seja menos sagrada para o ser criado.

Vossas leis, vossos costumes, vossas instituições são essencialmente perfectíveis e, por isto mesmo, imperfeitas; mas suas imperfeições não vos liberam do respeito que lhes deveis. Não é permitido adiantar-se ao tempo e fazer leis fora das leis sociais. A Humanidade é um ser coletivo que deve marchar, se não em seu conjunto, ao menos por grupos, para o progresso do futuro.

Aquele que se destaca da sociedade humana para avançar como criança perdida, sofre sempre na vossa Terra a pena devida à sua impaciência. Deixai aos iniciadores inspirados pelo Espírito de Verdade, o cuidado de proclamar as leis do futuro, submetendo-se à do presente. Deixai a Deus, que mede vossos progressos pelos esforços que tendes feito para vos tornardes melhores, o cuidado de escolher o momento que julgar útil para uma nova transição, mas jamais vos esquiveis a uma lei senão quando for derrogada.

Porque o Espiritismo foi revelado entre vós, não creiais num cataclismo das instituições sociais; até agora ele tem realizado uma obra subterrânea e inconsciente para aqueles que foram os seus instrumentos. Hoje que ele vem à tona e surge à luz, nem por isso a marcha do progresso deve ser de lenta regularidade.

Desconfiai dos Espíritos impacientes, que vos impelem para as sendas perigosas do desconhecido. A eternidade que vos é prometida deve levar-vos a ter piedade das ambições tão efêmeras da vida. Sede reservados até em suspeitar, muitas vezes, da voz dos Espíritos que se manifestam.

Lembrais-vos disto: O Espírito humano move-se e se agita sob a influência de três causas, que são: a reflexão, a inspiração e a revelação. A reflexão é a riqueza de vossas lembranças, que agitais voluntariamente. Nela, o homem encontra o que lhe é rigorosamente útil, para satisfazer às necessidades de uma posição estacionária. A inspiração é a influência dos Espíritos extraterrestres, que se misturam mais ou menos às vossas próprias reflexões para vos compelir ao progresso; é a intromissão do melhor na insuficiência da passagem, uma força nova que se junta a uma força adquirida, para vos levar mais longe que o presente, a prova irrecusável de uma causa oculta que vos impulsiona para frente, e sem a qual permaneceríeis estacionários. Porque é regra física e moral que o efeito não poderia ser maior que sua causa, e quando isto acontece, como no progresso social, é que uma causa ignorada, não percebida, juntou-se à causa primeira de vosso impulso.

A revelação é a mais elevada das forças que agitam o Espírito do homem, porque vem de Deus e só se manifesta por sua vontade expressa; ela é rara, por vezes mesmo inapreciável, algumas vezes evidente para o que a experimenta a ponto de sentir-se involuntariamente tomado de santo respeito. Repito, ela é rara e dada ordinariamente como recompensa à fé sincera, ao coração devotado; mas não tomeis como revelação tudo quanto vos pode ser dado como tal. O homem se vangloria da amizade dos grandes, os Espíritos exibem uma permissão especial de Deus, que muitas vezes lhes falta.

Algumas vezes fazem promessas que Deus não ratifica, porque só ele sabe o que é e o que não é preciso.

Eis, meu amigo, tudo quanto posso dizer-te sobre a verdade. Humilha-te perante o grande Ser, por quem tudo vive e se move na infinidade dos mundos, que seu poder governa; medita que se n’Ele se acha toda a sabedoria, toda justiça e todo poder, n’Ele também se acha toda a verdade.

 

Pascal



[1] Revista Espírita – Maio/1865 – Allan Kardec

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