Allan Kardec
Temos-vos dito muitas vezes que
investiguem as comunicações que vos são dadas, submetendo-as à análise da
razão, e que não tomeis sem exame as inspirações que vêm agitar o vosso
Espírito, sob a influência de causas por vezes muito difíceis de constatar
pelos encarnados, entregues a distrações sem-número.
As ideias puras que, por assim
dizer, flutuam no espaço (segundo a ideia platônica), levadas pelos Espíritos,
nem sempre podem alojar-se sozinhas e isoladas no cérebro dos vossos médiuns.
Muitas vezes encontram o lugar ocupado por ideias preconcebidas, que se
espalham com o jato da inspiração, perturbando-o e transformando-o de maneira
inconsciente, é verdade, mas algumas vezes de maneira bastante profunda para
que a ideia espiritual se ache, assim, inteiramente desnaturada.
A inspiração encerra dois
elementos: o pensamento e o calor fluídico destinado a excitar o
Espírito do médium, dando-lhe o que chamais a verve da composição. Se a
inspiração encontrar o lugar ocupado por uma ideia preconcebida, da qual o
médium não pode ou não quer desligar-se, nosso pensamento fica sem intérprete e
o calor fluídico se gasta em estimular uma ideia que não é nossa. Quantas vezes
em vosso mundo egoísta e apaixonado temos trazido o calor e a ideia! Desdenhais
a ideia, que vossa consciência deveria fazer-vos reconhecer e vos apoderais do
calor, em benefício de vossas paixões terrenas, por vezes dilapidando o bem de
Deus em proveito do mal. Assim, quantas contas terão de prestar um dia todos os
advogados das causas equivocadas!
Sem dúvida seria desejável que
as boas inspirações pudessem sempre dominar as ideias preconcebidas. Mas,
então, entravaríamos o livre-arbítrio da vontade do homem e, assim, este último
escaparia à responsabilidade que lhe pertence. Mas se somos apenas os
conselheiros auxiliares da Humanidade, quantas vezes nos devemos felicitar,
quando nossa ideia, batendo à porta de uma consciência estreita, triunfa da ideia
preconcebida e modifica a convicção do inspirado! Entretanto, não se deveria
crer que nosso auxílio mal-empregado não traísse um pouco o mau uso que dele
podem fazer. A convicção sincera encontra acentos que, partidos do coração,
chegam ao coração; a convicção simulada pode satisfazer as convicções
apaixonadas, vibrando em uníssono com a primeira, mas traz um frio particular
que deixa a consciência malsatisfeita e revela uma origem duvidosa.
Quereis saber de onde vêm os
dois elementos da inspiração mediúnica? A resposta é fácil: a ideia vem do
mundo extraterrestre – é a inspiração própria do Espírito. Quanto ao calor
fluídico da inspiração, nós o encontramos e o tomamos em vós mesmos; é a parte
quintessenciada do fluido vital em emanação; algumas vezes nós a tomamos do
próprio inspirado, quando este é dotado de certo poder fluídico, ou mediúnico,
como dizeis; na maioria das vezes nós o tomamos em seu ambiente, na emanação de
benevolência, de que está mais ou menos cercado. É por isto que se pode dizer
com razão que a simpatia torna eloquente.
Se refletirdes atentamente
nestas causas, encontrareis a explicação de muitos fatos que a princípio causam
admiração, mas dos quais cada qual possui uma certa intuição. Só a ideia não
bastaria ao homem, se não se lhe desse o poder de exprimi-la. O calor é para a ideia
o que o perispírito é para o Espírito, o que o vosso corpo é para a alma. Sem o
corpo a alma seria impotente para agitar a matéria; sem o calor, a ideia seria
impotente para comover os corações.
A conclusão desta comunicação é
que jamais deveis abdicar de vossa razão, ao examinardes as inspirações que vos
são submetidas. Quanto mais o médium tem ideias adquiridas, mas é ele
susceptível de ideias preconcebidas, mais deve fazer tábula rasa de seus próprios
pensamentos, abandonar as influências que o agitam e dar à sua consciência a
abnegação necessária a uma boa comunicação.
II
DEUS NÃO SE VINGA
O que precede não passa de um
preâmbulo destinado a servir de introdução a outras ideias. Falei-vos de ideias
preconcebidas, mas há outras além das que vêm das inclinações do inspirado; há
as que são consequência de uma instrução errônea, de uma interpretação
acreditada num tempo mais ou menos longo, que tiveram sua razão de ser numa
época em que a razão humana estava insuficientemente desenvolvida e que,
passadas ao estado crônico, só podem ser modificados por esforços heroicos,
sobretudo quando têm para si a autoridade do ensino religioso e de livros
reservados. Uma destas ideias é esta: Deus
se vinga. Que um homem, ferido em seu orgulho, em sua pessoa ou em seus
interesses, se vingue, isto se concebe; embora culpado tal vingança está dentro
dos limites das imperfeições humanas. Mas um pai que se vinga nos filhos
levanta a indignação geral, porque cada um sente que um pai, encarregado da
tarefa de criar os seus filhos, pode corrigir-lhes os erros e os defeitos por
todos os meios ao seu alcance, mas a vingança lhe é interdita, sob pena de
tornar-se estranho a todos os direitos da paternidade.
Sob o nome de vindita pública, a
sociedade que desaparece vingava-se dos culpados; a punição infligida, muitas
vezes cruel, não passava de vingança sobre as más ações do homem perverso; ela
não se preocupava absolutamente com a reabilitação desse homem, deixando a Deus
o cuidado de o punir ou de o perdoar. Bastava-lhe ferir pelo terror, que
julgava salutar, os futuros culpados. A sociedade que surge não pensa mais
assim; se ainda não age em vista da reeducação do culpado, ao menos compreende
o que a vingança contém de odioso por si mesma; salvaguardar a sociedade contra
os ataques de um criminoso lhe basta e, ajudada pelo temor de um erro
judiciário, em breve a pena capital desaparecerá dos vossos códigos.
Se hoje a sociedade se julga
muito forte em frente a um culpado para se deixar tomar pela cólera e dele
vingar-se, como quereis que Deus, participando de vossas fraquezas, se deixe
tomar por um sentimento irascível e fira por vingança um pecador chamado ao
arrependimento? Crer na cólera divina é um orgulho da Humanidade, que se
imagina pesar bastante na balança divina.
Se a planta do vosso jardim não
se desenvolve a contento, ireis encolerizar-vos e vos vingar dela? Não; se
puderdes a soerguereis, apoiá-la-eis em estacas e, se necessário, a
transplantareis, mas não vos vingareis. Assim faz Deus.
Vingar-se, Deus? Que blasfêmia! Que
amesquinhamento da grandeza divina! Quanta ignorância da distância infinita que
separa o Criador da criatura! Quanto esquecimento de sua bondade e de sua
justiça! Deus viria, numa existência em que não vos resta nenhuma lembrança dos
vossos erros passados, fazer-vos pagar muito caro as faltas cometidas numa
época apagada em vosso ser!
Não, não! Deus não age assim;
ele entrava o impulso de uma paixão funesta, corrige o orgulho inato por uma
humildade forçada, retifica o egoísmo do passado pela urgência de uma
necessidade presente, que leva a desejar a existência de um sentimento que o
homem nem conheceu, nem experimentou. Como pai, corrige, mas, também como pai,
Deus não se vinga.
Guardai-vos dessas ideias
preconcebidas de vingança celeste, detritos perdidos de um erro antigo.
Guardai-vos dessas tendências fatalistas, cuja porta está aberta para vossas
doutrinas novas e que vos conduziriam diretamente ao quietismo oriental. A
parte de liberdade do homem já não é bastante grande para diminuí-la ainda mais
por crenças errôneas; quanto mais sentirdes vossa liberdade, sem dúvida maior
será a vossa responsabilidade e tanto mais os esforços de vossa vontade vos
conduzirão adiante, na senda do progresso.
Pascal
III
A VERDADE
A verdade, meu amigo, é uma
dessas abstrações para as quais tende o Espírito humano incessantemente, sem
jamais poder atingi-la. É preciso que ele tenda para ela, é uma das condições
do progresso, mas, pela simples razão da imperfeição de sua natureza, ele não
poderia alcançá-la. Seguindo a direção que segue a verdade em sua marcha
ascendente, o Espírito humano está na via providencial, mas não lhe é dado ver
o seu termo.
Compreender-me-ás melhor quando
souberes que a verdade é, como o tempo, dividida em duas partes, pelo momento
inapreciável que se chama o presente, a saber: o passado e o futuro.
Assim, há duas verdades: a
verdade relativa e a verdade absoluta; a verdade relativa é o que é; a verdade
absoluta é o que deveria ser.
Ora, como o que deveria ser sobe
por graus até a perfeição absoluta, que é Deus, segue-se que, para os seres
criados e seguindo a rota ascensional do progresso, não há senão verdades
relativas.
Mas, do fato de uma verdade
relativa não ser imutável, não se segue que seja menos sagrada para o ser
criado.
Vossas leis, vossos costumes,
vossas instituições são essencialmente perfectíveis e, por isto mesmo,
imperfeitas; mas suas imperfeições não vos liberam do respeito que lhes deveis.
Não é permitido adiantar-se ao tempo e fazer leis fora das leis sociais. A
Humanidade é um ser coletivo que deve marchar, se não em seu conjunto, ao menos
por grupos, para o progresso do futuro.
Aquele que se destaca da
sociedade humana para avançar como criança perdida, sofre sempre na vossa Terra
a pena devida à sua impaciência. Deixai aos iniciadores inspirados pelo
Espírito de Verdade, o cuidado de proclamar as leis do futuro, submetendo-se à
do presente. Deixai a Deus, que mede vossos progressos pelos esforços que
tendes feito para vos tornardes melhores, o cuidado de escolher o momento que
julgar útil para uma nova transição, mas jamais vos esquiveis a uma lei senão
quando for derrogada.
Porque o Espiritismo foi
revelado entre vós, não creiais num cataclismo das instituições sociais; até
agora ele tem realizado uma obra subterrânea e inconsciente para aqueles que
foram os seus instrumentos. Hoje que ele vem à tona e surge à luz, nem por isso
a marcha do progresso deve ser de lenta regularidade.
Desconfiai dos Espíritos
impacientes, que vos impelem para as sendas perigosas do desconhecido. A
eternidade que vos é prometida deve levar-vos a ter piedade das ambições tão
efêmeras da vida. Sede reservados até em suspeitar, muitas vezes, da voz dos Espíritos
que se manifestam.
Lembrais-vos disto: O Espírito
humano move-se e se agita sob a influência de três causas, que são: a reflexão, a inspiração e a revelação.
A reflexão é a riqueza de vossas lembranças, que agitais voluntariamente. Nela,
o homem encontra o que lhe é rigorosamente útil, para satisfazer às
necessidades de uma posição estacionária. A inspiração
é a influência dos Espíritos extraterrestres, que se misturam mais ou menos às
vossas próprias reflexões para vos compelir ao progresso; é a intromissão do
melhor na insuficiência da passagem, uma força nova que se junta a uma força
adquirida, para vos levar mais longe que o presente, a prova irrecusável de uma
causa oculta que vos impulsiona para frente, e sem a qual permaneceríeis
estacionários. Porque é regra física e moral que o efeito não poderia ser maior
que sua causa, e quando isto acontece, como no progresso social, é que uma
causa ignorada, não percebida, juntou-se à causa primeira de vosso impulso.
A revelação é a mais elevada das forças que agitam o Espírito do
homem, porque vem de Deus e só se manifesta por sua vontade expressa; ela é
rara, por vezes mesmo inapreciável, algumas vezes evidente para o que a
experimenta a ponto de sentir-se involuntariamente tomado de santo respeito.
Repito, ela é rara e dada ordinariamente como recompensa à fé sincera, ao
coração devotado; mas não tomeis como revelação tudo quanto vos pode ser dado
como tal. O homem se vangloria da amizade dos grandes, os Espíritos exibem uma
permissão especial de Deus, que muitas vezes lhes falta.
Algumas vezes fazem promessas
que Deus não ratifica, porque só ele sabe o que é e o que não é preciso.
Eis, meu amigo, tudo quanto
posso dizer-te sobre a verdade. Humilha-te perante o grande Ser, por quem tudo
vive e se move na infinidade dos mundos, que seu poder governa; medita que se n’Ele
se acha toda a sabedoria, toda justiça e todo poder, n’Ele também se acha toda
a verdade.
Pascal
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