Dora Incontri
Finalmente foram publicados 50
manuscritos inéditos de Kardec, transcritos e traduzidos, no Portal Projeto Kardec,
recém-criado numa parceria entre a Universidade de Juiz de Fora e a FEAL
(Fundação Espírita André Luiz).
Embora o meu pesar por não
integrar a equipe que está fazendo esse trabalho, posso dizer que até agora, o
pouco que se vê parece muito bem apresentado. Espero que os cerca de 3 mil
manuscritos (juntando o acervo do Canuto de Abreu e o descoberto por Charles
Kempf na França) não demorem uma encarnação para serem disponibilizados.
Quero, porém, comentar aqui, a
primeira impressão que tenho da leitura dessas cartas, fragmentos, notas e
preces (e de mais algumas outras a que tive acesso durante a feitura do
documentário Em busca de Kardec).
O que primeiro se destaca é a
sensação de proximidade de Kardec, no sentido de o conhecermos mais de perto –
ele que modestamente tanto se ocultou atrás da obra – e assim o vermos em sua
humanidade, em seu humanismo, em sua integridade e também em sua
vulnerabilidade…
Não se trata – como, aliás,
sempre cansei de dizer – de uma pessoa fria, distante e de uma austeridade que
afasta. Ao contrário, Kardec era uma pessoa sentimental, diria mesmo calorosa.
Preocupava-se em não ferir minimamente o sentimento de amigos, interlocutores,
seguidores… A delicadeza das cartas revela isso. Havia nele uma duplicidade
interessante: ao mesmo tempo muito cuidadoso em não magoar, em não negligenciar
ninguém, em atender às demandas do próximo, em se mobilizar para ajudar e
esclarecer; por outro lado também mostrava uma assertividade, sem meias
palavras, quando se tratava de pontuar certas questões do espiritismo. E isso
sobretudo na orientação racional, didática e ética para o manejo da
mediunidade.
Mas era uma pessoa que
obviamente, como todos os seres humanos, tinha seus momentos de dúvida,
desânimo, perplexidade. Quem não se identifica com a prece abaixo?
Estou hoje num
estado detestável; a que isso se deve? Ignoro. Contrariado o dia todo e, por
conseguinte, de mau humor. Se é minha falta, dai-me, eu vos peço, a força de
apartar a causa; se é uma má influência, dai-me a força para a repelir; se é
uma prova, que ela sirva a minha humildade; se é para a instrução, dai-me a luz
necessária para descobri-la.
Eu não tenho o
Espírito livre; estou confuso, descontente, cheio de ansiedade.
Em nome de Deus
Todo-Poderoso, Espírito de Verdade, eu te peço para restaurar a minha calma e
me inspirar as melhores resoluções a tomar. Faz com que, durante meu sono, eu
venha a me retemperar e a me fortalecer entre os bons Espíritos e restabelecer,
ao meu despertar, uma intuição saudável. KARDEC, Allan. [Prece – 1860].[2]
O que impressiona também, e que
fica óbvio nesses manuscritos, embora esteja mais do que explícito em todas as
suas obras, é que Kardec era profundamente religioso – por mais que isso
contrarie alguns e seja motivo de distorções por outros. O tempo inteiro, ele
se refere a Deus, à Providência, faz preces, evoca os Espíritos em nome de
Deus, chama o Espiritismo de nossa “santa” doutrina… Há um sentimento de
espiritualidade muito forte nele e claro que isso transpassou para a sua obra.
Então, por mais que possamos hoje discordar de algumas passagens do Evangelho
segundo o Espiritismo, e assim contextualizá-las, como por exemplo sua
insistência em dizer que Deus castiga,
não há como se defender a ideia de que esse livro foi uma espécie de concessão
de Kardec ao seu meio, como querem alguns. Não. Kardec está inteiro ali.
Há nas cartas e nas preces algo
de profunda entrega, que parece ao mesmo tempo de um ser humano elevado,
compenetrado em cumprir sua tarefa e de um menino que busca colo em Deus. Seria
a falta do pai, que perdeu desde cedo?
Nesse sentido, achei que o filme
“Kardec”, de Wagner Assis, inspirado na obra de Marcel Souto Maior revela toda
essa faceta de um menino humano, ao mesmo tempo tão cheio de coragem, mas
precisado do apoio de Amélie.
Outra coisa que observamos
nitidamente nas cartas é o quanto Kardec se movia para ajudar o próximo. Há o
caso, por exemplo, da carta ao Sr. Varey (27/07/1863), em que ele além de ter
ajudado material e moralmente o filho desse homem, que estava em Paris à
míngua, intercede pelo moço junto ao pai, que aparentemente o estava julgando
com injustiça e rigor.
Também há a carta em que ele se
dirige a uma tal Madame Lair (27/07/1867), pedindo ajuda para uma criança de 8
anos. Nesse documento, porém, algo choca nossa sensibilidade atual: ele está
encaminhando esse menino, filho de um operário doente, para que se torne um
aprendiz de agricultura na fazenda de uma família espírita. Consultando a
história do trabalho infantil na França, leio que apenas depois de 1870,
começou a haver alguma legislação que limitava o trabalho das crianças –
naquele contexto absurdo da exploração do operariado. Esse caso, que aparece na
carta, Kardec fica naquele limbo nebuloso de criança aprendiz para o trabalho,
já aos 8 anos de idade! E é claro que se pensamos em Rivail como educador, pode
nos parecer contraditório ele fazer coro com tal disparate. Mais uma vez, não
podemos fazer um julgamento fora do contexto histórico de então. Talvez não
houvesse alternativa naquele momento a não ser ajudar aquela criança a ser
“adotada” por uma família que a encaminharia para uma profissão. Talvez fosse
isso ou a fome, a rua…
Por outro lado, há a carta para
Louis Jourdan, personagem ligado ao socialista utópico Saint Simon, cujo
conteúdo progressista já foi analisado essa semana num artigo de um jovem
autor, que eu até então desconhecia, Vinicius Costa. Nessa carta, fica explícita
toda expectativa de Kardec de que o espiritismo viesse a contribuir para
profundas mudanças sociais. Quem sabe se para um mundo em que não houvesse mais
trabalho infantil, já que ele desde a mocidade lutava pelo ideal de educação
pública para todos.
Em tudo se mostra um Kardec
muito operoso, extremamente ocupado, mesmo assim preocupado em atender às
pessoas que o procuravam e que lhe escreviam; um homem que se pensava
encarregado de uma missão, mas sem nenhuma vaidade disso; alguém sempre em luta
para sobreviver (e isso desde as cartas de Rivail que vi para o documentário) –
o que deve ter dificultado bastante o seu trabalho no espiritismo; uma pessoa
embebida de uma espiritualidade profunda que não impedia o seu empenho sincero
e rigoroso em fazer do espiritismo uma busca científica e filosófica.
Confesso que a personalidade de
Kardec me fala ao coração e embora hoje considere que alguns aspectos de sua
obra devam ser repensados porque estavam num contexto muito diferente do nosso,
há sim verdades atemporais que ele tocou, trilhas importantes que ele abriu e,
sobretudo, uma bondade, uma boa fé e uma integridade de caráter que a mim, me
emocionam.
Digo tudo isso porque tenho
pensado, como outros espíritas de hoje, a respeito da necessidade da releitura
de Kardec para o século XXI, mas não me agrada nem um pouco faltar com gratidão
e respeito para com esse mestre que nos abriu um horizonte novo. Cabe-nos
avançar sem deixar de reconhecê-lo e, digo mesmo, de amá-lo.
[1] https://blogabpe.org/2020/09/05/50-documentos-ineditos-de-kardec-primeiras-impressoes/
[2] Disponível em: http://projetokardec.ufjf.br/items/show/40 Acesso em: 5
Set 2020. Projeto Allan Kardec
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