Allan Kardec
O Concorde, jornal de Versalhes, de 22 de fevereiro de 1866, relata o
episódio seguinte, de uma história publicada em folhetim, sob o título de: Na Córsega, desenho à pena.
Uma jovem tinha uma velha tia
que lhe servia de mãe e à qual dedicava uma ternura filial. A tia adoeceu e
morreu.
Afastaram a jovem, mas esta se
plantou à porta da câmara mortuária, chorando e orando. De repente julgou ouvir
um grito fraco e como um gemido surdo. Abriu a porta precipitadamente e viu a tia,
que havia afastado o lençol com que a tinham coberto, e lhe fazia sinal para
que se aproximasse. Então lhe disse com voz débil e fazendo um esforço supremo:
Savéria, há pouco eu
estava morta... sim, morta... Vi o Senhor... Ele me permitiu voltar um instante
a esta Terra, para te dizer um último adeus, fazer uma última recomendação.
Então lhe renovou um conselho
muito importante, que lhe tinha dado alguns dias antes, e do qual dependia o
seu futuro.
Tratava-se de guardar segredo
absoluto sobre um fato, cuja divulgação devia provocar uma dessas terríveis
vinganças tão comuns naquela região. Tendo a sobrinha prometido conformar-se à
vontade da tia, esta acrescentou: Agora
posso morrer, pois Deus te protegerá como me protege nesta hora, porquanto,
indo embora, não sentirei o desgosto de deixar atrás de mim uma vingança a
saciar-se num rio de sangue e de maldições... Adeus, pobre filha, eu te abençoo.
Depois destas palavras, expirou.
Um dos nossos correspondentes,
que conhece pessoalmente o autor, perguntou-lhe se o relato era fruto da sua
imaginação. Não, respondeu ele, é a pura
verdade. Colhi o fato da boca da própria Savéria, quando eu estava na Córsega.
Citei suas próprias palavras e ainda omiti certos detalhes, temendo que me
acusassem de exagero.
Os fatos desta natureza não são
sem exemplo; citamos um notabilíssimo na Revista
de agosto de 1863, sob o título de O Sr.
Cardon, médico [vide este artigo
em nossa postagem de 28/07/2020, neste blog]. Eles são a prova evidente da
existência e da independência da alma, porque se o princípio inteligente fosse
inerente à matéria, extinguir-se-ia com ela. A questão é saber se, por um ato
da vontade, a alma pode entrar momentaneamente na posse do corpo que acaba de
deixar.
Não se deve assimilar o fato
acima, nem o do médico Cardon, ao estado letárgico. A letargia é uma suspensão
acidental da sensibilidade nervosa e do movimento que oferece a imagem da
morte, mas que não é a morte, pois não há decomposição e os letárgicos viveram
longos anos após o seu despertar. A vitalidade, por estar latente, não se acha
menos em toda a sua força e a alma não está mais destacada do corpo que no sono
ordinário.
Na morte verdadeira, ao
contrário, a matéria se desorganiza, a vitalidade se extingue, o perispírito se
separa; o trabalho da dissolução começa antes mesmo que a morte se tenha
efetivado. Enquanto ela não se consuma, pode haver retornos passageiros à vida,
como os que citamos, mas sempre de curta
duração, considerando-se que a vontade pode retardar por alguns instantes a
separação definitiva do perispírito, mas é impotente para deter o trabalho da
dissolução, quando chegado o momento. Sejam quais forem as aparências
exteriores, pode-se dizer que todas as vezes que houver retorno à vida, é que
não houve morte na acepção patológica do termo.
Quando a morte é completa, esses
retornos são impossíveis, pois a isto se opõem as leis fisiológicas.
Nas circunstâncias de que
falamos, podia-se, pois, racionalmente admitir que a morte não se tivesse
consumado.
Tendo sido o fato relatado na
Sociedade de Paris, o guia de um dos nossos médiuns habituais deu-lhe a
explicação seguinte, que reproduzimos com toda reserva, como uma coisa
possível, mas não materialmente provada, e a título de observação.
(Sociedade Espírita de Paris, 2 de março de 1866 – Médium: Sr. Morin)
No caso que é objeto de vossa discussão, há um fato positivo, o da
morta que falou à sua sobrinha. Resta saber se esse fato é do domínio material,
isto é, se houve retorno momentâneo à vida corporal, ou se é de ordem
espiritual; é esta última hipótese que é verdadeira, porque a velha tia estava
realmente morta. Eis o que se passou:
Ajoelhada à porta da câmara mortuária, a jovem sofreu um impulso
irresistível, que a levou para junto do leito da tia que, como disse, estava
realmente morta. Foi a ardente vontade do Espírito dessa mulher que provocou o
fenômeno. Sentindo-se morrer sem poder fazer a recomendação tão vivamente
desejada, ela pediu a Deus, numa última e suprema prece, que pudesse dizer à
sobrinha o que lhe desejava dizer. Já estando feita a separação, o fluido
perispiritual, ainda impregnado de seu desejo, envolveu a jovem e a arrastou
para junto de seus despojos. Ali, por uma permissão de Deus, ela tornou-se
médium vidente e audiente; viu e ouviu a tia, falando e agindo, não com o
corpo, mas por meio do perispírito ainda aderido ao corpo. Portanto, houve
visão e audição espirituais e não materiais.
A recomendação da tia, feita em tal momento e em circunstâncias que
pareciam uma ressurreição, devia impressionar a jovem mais vivamente e fazê-la
compreender melhor toda a importância. Embora já a tivesse feito em vida,
queria levar a certeza de que sua sobrinha a isto se conformaria, para evitar
as desgraças que teriam resultado de uma indiscrição. Sua vontade não pôde
fazer reviver seu corpo, contrariando as leis da Natureza, mas foi capaz de dar
ao seu invólucro fluídico as aparências de seu corpo.
Ebelman
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