Allan Kardec
(Sociedade de Paris – Médium: Sr. Leymarie)
O Sr. Cardon tinha passado uma parte de sua vida na marinha mercante,
como médico de um baleeiro, e havia adquirido hábitos e ideias um pouco
materialistas. Retirado para o vilarejo de J..., ali exercia a modesta
profissão de médico rural. Desde algum tempo adquirira a certeza de que sofria
uma hipertrofia do coração e, sabendo que tal doença é incurável, o pensamento
da morte o mergulhava em sombria melancolia, da qual nada o podia distrair.
Com cerca de dois meses de antecedência, predisse o seu fim em dia
fixo; quando se viu perto de morrer, reuniu a família para lhe dar o último
adeus. Sua esposa, sua mãe, seus três filhos e outros parentes estavam em volta
de seu leito. No momento em que a esposa tentava erguê-lo, ele se prostrou,
tornou-se de um azul lívido, os olhos fecharam e o deram por morto; a esposa colocou-se
à frente para ocultar o espetáculo aos filhos. Após alguns minutos abriu os
olhos; seu rosto, por assim dizer iluminado, tomou uma expressão de radiosa
beatitude e exclamou: “Oh! Meus filhos, como é belo! como é sublime! Oh! A
morte! Que benefício! Que coisa suave! Eu estava morto e senti minha alma elevar-se
bem alto; mas Deus me permitiu voltar para vos dizer: Não temais a morte; é a
libertação... Não vos posso descrever a magnificência do que vi e as impressões
de que me senti penetrado! Mas não o compreenderíeis... Oh! Meus filhos, conduzi-vos
sempre de maneira a merecer essa inefável felicidade, reservada aos homens de
bem; vivei segundo a caridade; se tiverdes alguma coisa, dai àqueles a quem
falta o necessário... Querida esposa, deixo-te numa posição que não é feliz;
devem-nos dinheiro, mas eu te suplico, não atormentes os que nos devem; se
estiverem em dificuldades, espera que possam pagar, e aos que não puderem, faze
o sacrifício: Deus te recompensará. E tu, meu filho, trabalha para sustentar
tua mãe; sê sempre um homem honesto e guarda-te de fazer algo que possa desonrar
nossa família. Toma esta cruz que vem de minha mãe; não a deixes e que ela te
lembre sempre meus últimos conselhos... Meus filhos, ajudai-vos e sustentai-vos
mutuamente; que a boa harmonia reine entre vós; não sede vãos, nem orgulhosos;
perdoai aos vossos inimigos, se quiserdes que Deus vos perdoe”. Depois, tendo
feito os filhos se aproximarem, estendeu as mãos para eles e acrescentou: “Meus
filhos, eu vos abençoo.” E, desta vez, seus olhos se fecharam para sempre; mas
seu rosto conservou uma expressão tão imponente que, até o momento em que foi
enterrado, uma multidão numerosa o veio contemplar com admiração.
Esses interessantes detalhes nos
foram transmitidos por um amigo da família, levando-nos a pensar que uma
evocação poderia ser instrutiva para todos e, ao mesmo tempo, para o Espírito.
Evocação
– Estou ao vosso
lado.
Contaram-nos os vossos últimos instantes, os quais nos
encheram de admiração. Teríeis a bondade de descrever, o melhor possível, o que
vistes no intervalo do que se poderia chamar vossas duas mortes?
– Poderíeis
compreender o que vi? Não sei, pois não encontraria expressões capazes de
tornar compreensível o que vi durante os poucos instantes em que me foi
possível deixar meus despojos mortais.
Dai-vos conta de onde estivestes? É longe da Terra, num
outro planeta ou no espaço?
– O Espírito não
conhece o valor das distâncias, tal como as considerais. Levado não sei por que
agente maravilhoso, vi o esplendor de um céu como só nossos sonhos poderiam
realizá-lo. Essa excursão através do infinito se fez de modo tão rápido que não
posso precisar os instantes gastos por meu Espírito.
Atualmente desfrutais da felicidade que vislumbrastes?
– Não; bem queria
poder frui-la, mas Deus assim não me pode recompensar. Muitas vezes me revoltei
contra os abençoados pensamentos ditados pelo coração, e a morte me parecia uma
injustiça. Médico incrédulo, tinha adquirido na arte de curar um aversão contra
a segunda natureza, que é o nosso movimento inteligente, divino; a imortalidade
da alma era uma ficção própria para seduzir as naturezas pouco elevadas; a
despeito disto, o vazio me aterrorizava, pois maldizia muitas vezes esse agente
misterioso que fere sempre e sempre. A filosofia me desviara, sem me dar a
compreender toda a grandeza do Eterno, que sabe repartir a dor e a alegria para
o ensino da Humanidade.
Quando de vossa verdadeira morte, logo vos reconhecestes?
– Não; reconheci-me
durante a transição feita por meu Espírito para percorrer lugares etéreos; mas,
após a morte real, não; foram necessários alguns dias para o meu despertar. Deus
me havia concedido uma graça. Vou dizer-vos a sua razão:
Minha incredulidade inicial
não mais existia; antes da morte eu já tinha acreditado, porquanto, depois de
ter cientificamente sondado a matéria pesada que me fazia definhar, eu só
encontrara razões divinas. Elas me tinham inspirado, consolado, e minha coragem
era mais forte que a dor. Eu bendizia o que havia amaldiçoado; o fim me parecia
a libertação. O pensamento de Deus é grande como o mundo! Oh! Que suprema consolação
na prece que dá enternecimentos inefáveis; ela é o elemento mais seguro de nossa
natureza imaterial; por ela compreendi, acreditei firmemente, soberanamente, e
é por isto que Deus, enxergando minhas abençoadas ações, houve por bem
recompensar-me antes que se me findasse a encarnação.
Poder-se-ia dizer que da primeira vez estáveis morto?
– Sim e não. Tendo
deixado o corpo, naturalmente a carne se extinguia; mas o Espírito, ao retomar
a posse de minha morada terrena, fez voltasse ao corpo a vida que tinha sofrido
uma transição, um sono.
Nesse momento sentíeis os laços que vos prendiam ao corpo?
– Sem dúvida. O
Espírito tem um laço difícil de desatar, fazendo-se necessário um último
estremecimento da carne para que retorne à sua vida natural.
Como se explica, durante a vossa morte aparente e no curso
de alguns minutos, que vosso Espírito pudesse desprender-se instantaneamente e
sem dificuldade, ao passo que a morte real foi seguida de uma perturbação de
alguns dias? No primeiro caso, subsistindo mais que no segundo os laços entre a
alma e o corpo, parece que o desprendimento deveria ser mais lento; e foi o
contrário que se deu.
– Muitas vezes
fizestes a evocação de um Espírito encarnado e recebestes respostas reais. Eu
estava na situação desses Espíritos. Deus me chamava e seus servidores me
tinham dito: “Vem...” Obedeci e agradeço a Deus a graça especial que ele se dignou
de me fazer. Pude ver a infinitude de sua grandeza e dela me dar conta.
Agradeço a vós por me terdes permitido, antes da morte real, ensinar aos meus,
a fim de que tenham boas e justas encarnações.
De onde vos vinham as belas e boas palavras que, por
ocasião do vosso retorno à vida, dirigistes à vossa família?
– Eram o reflexo do
que tinha visto e ouvido. Os Espíritos bons inspiravam-me a voz e davam vida ao
meu rosto.
Que impressão julgais que a vossa revelação tenha causado
nos assistentes e, de modo especial, nos vossos filhos?
– Extraordinária,
profunda; a morte não é mentirosa e os filhos, por mais ingratos que possam
ser, inclinam-se ante a partida dos que se vão. Se se pudesse perscrutar os
seus corações junto a um túmulo entreaberto, só se sentiriam batidas de sentimentos
verdadeiros, profundamente tocados pela mão secreta dos Espíritos que a todos
ditam os pensamentos: Tremei, se estiverdes em dúvida; a morte é a reparação, a
justiça de Deus; e eu vo-lo asseguro, malgrado os incrédulos, meus amigos e
minha família acreditarão nas palavras que minha voz pronunciou antes de morrer.
Eu era o intérprete de um outro mundo.
Dissestes que não desfrutais da felicidade que entrevistes.
Sois infeliz?
– Não, pois acreditava antes de morrer, e isto
na alma e na consciência. A dor aperta neste mundo, mas reedifica para o futuro
espírita. Notai que Deus soube levar em conta as minhas preces e minha crença
absoluta nele; estou no caminho da perfeição e chegarei ao fim que me foi
permitido entrever. Orai, meus amigos, por esse mundo invisível que preside aos
vossos destinos; este intercâmbio fraterno é caridade; é uma poderosa alavanca,
que põe em comunicação os Espíritos de todos os mundos.
Gostaríeis de dirigir algumas palavras à vossa esposa e
aos vossos filhos?
– Rogo a todos os
meus que creiam em Deus, poderoso, justo, imutável; na prece que consola e
alivia; na caridade, que é o ato mais puro da encarnação humana; que se lembrem
que se pode dar pouco: o óbolo do pobre é o mais meritório perante Deus, que
sabe que um pobre dá muito dando pouco. É preciso que o rico dê muito e muitas
vezes para merecer tanto quanto aquele.
O futuro é a
caridade, a benevolência em todas as ações; é crer que todos os Espíritos são
irmãos, jamais se prevalecendo de todas as vaidades pueris.
Família bem-amada,
tereis rudes provas; mas sabei suportá-las corajosamente, pensando que Deus vos
vê.
Dizei sempre esta
prece:
Deus de amor e de
bondade, que dás tudo e sempre, concede-nos essa força que não recua ante
nenhum sofrimento; torna-nos bons, mansos e caridosos, pequenos pela fortuna, grandes
pelo coração; que nosso Espírito seja espírita na Terra, para melhor te
compreender e te amar.
Que teu nome, ó meu
Deus, emblema de liberdade, seja o objetivo consolador de todos os oprimidos,
de todos os que têm necessidade de amar, perdoar e crer.
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