terça-feira, 21 de julho de 2020

A Visão de Deus[1], [2]



Allan Kardec

Se Deus está em toda parte, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Também são perguntas que se formulam todos os dias.
A primeira é fácil responder. Por serem limitadas as percepções dos nossos órgãos visuais, elas os tornam inaptos à visão de certas coisas, mesmo materiais. Alguns fluidos nos fogem totalmente à visão e aos instrumentos de análise. Vemos os efeitos da peste, mas não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos em movimento sob a influência da força de gravitação, mas não vemos essa força.
Os nossos órgãos materiais não podem perceber as coisas de essência espiritual. Unicamente com a visão espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial.
Somente a nossa alma, portanto, pode ter a percepção de Deus.
Dar-se-á que ela o veja logo após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos podem instruir. Por elas sabemos que a visão de Deus constitui privilégio das mais depuradas almas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório terrestre, se encontram no grau de desmaterialização necessária a tal efeito. Algumas comparações vulgares o tornarão facilmente compreensível.
Uma pessoa que se ache no fundo de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz difusa, percebe que está fazendo sol. Se se dispõe a subir a montanha, à medida que for ascendendo, o nevoeiro se irá tornando mais claro, a luz cada vez mais viva. Contudo, ainda não verá o Sol. Quando começa a percebê-lo ainda está velado, pois basta o mais leve vapor para enfraquecer o seu brilho. Só depois que se haja elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja perfeitamente límpido, ela o contemplará em todo o seu esplendor.
Dá-se outro tanto com aquele que tivesse a cabeça envolta por vários véus. A princípio não vê absolutamente nada; a cada véu que se retira, distingue um clarão cada vez mais nítido; apenas quando desaparece o último véu é que percebe as coisas claramente.
Também se dá o mesmo com um licor carregado de matérias estranhas; de começo fica turvo; a cada destilação sua transparência aumenta até que, estando completamente depurado, adquire perfeita limpidez e não apresenta nenhum obstáculo à visão.
Assim é com a alma. O envoltório perispirítico, conquanto nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela, verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções.
Ele, porém, se espiritualiza, à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como véus que obscurecem sua visão. Cada imperfeição de que ela se desfaz é um véu a menos; todavia, só depois de se haver depurado completamente é que goza da plenitude das suas faculdades.
Sendo Deus a essência divina por excelência, unicamente os Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização o podem perceber em todo o seu esplendor. Pelo fato de não o verem, não se segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais distantes dele do que os outros; esses Espíritos, como os demais, como todos os seres da Natureza, se encontram mergulhados no fluido divino, do mesmo modo que nós o estamos na luz; os cegos também estão mergulhados na luz e, contudo, não a veem. As imperfeições são véus que ocultam Deus à visão dos Espíritos inferiores. Quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não lhes é preciso subir, nem procurá-lo nas profundezas do infinito. Desimpedida a visão espiritual das belidas[3] morais que a obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se achem, mesmo da Terra, porquanto Deus está em toda parte.
O Espírito só se depura com o tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada vez algumas impurezas. Com o abandonar o seu invólucro corpóreo, os Espíritos não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da morte, não veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se depuram, têm dele uma intuição mais clara. Não o veem, mas compreendem-no melhor; a luz é menos difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes proíbe respondam a uma dada pergunta não é que Deus lhes apareça, ou dirija a palavra, para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo, não; eles, porém, o sentem; recebem os eflúvios do seu pensamento, como nos sucede com relação aos Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos.
Nenhum homem, conseguintemente, pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns, só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Tal privilégio, aliás, exclusivamente pertenceria a almas de eleição, encarnadas em missão, que não em expiação. Mas, como os Espíritos da mais elevada categoria refulgem de ofuscante brilho, pode dar-se que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados, maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma pelo seu soberano.
Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura humana, ou como um foco de resplendente luz? A linguagem humana é impotente para dizê-lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de nos facultar uma ideia de tal coisa. Somos quais cegos de nascença a quem procurassem inutilmente fazer compreendessem o brilho do Sol. A nossa linguagem é limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas ideias; a dos selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a dos povos mais civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência muito restrita para compreendê-los e a nossa vista, por muito fraca, ficaria deslumbrada.




[1] N. do T.: Vide A Gênese, capítulo II, itens 31 a 37.
[2] Revista Espírita – Maio/1866 – Allan Kardec
[3] Pano, cortina, máscara, véu.

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