Allan Kardec
Se Deus está em toda parte, por
que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? Também são perguntas que
se formulam todos os dias.
A primeira é fácil responder.
Por serem limitadas as percepções dos nossos órgãos visuais, elas os tornam
inaptos à visão de certas coisas, mesmo materiais. Alguns fluidos nos fogem totalmente
à visão e aos instrumentos de análise. Vemos os efeitos da peste, mas não vemos
o fluido que a transporta; vemos os corpos em movimento sob a influência da
força de gravitação, mas não vemos essa força.
Os nossos órgãos materiais não
podem perceber as coisas de essência espiritual. Unicamente com a visão
espiritual é que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial.
Somente a nossa alma, portanto,
pode ter a percepção de Deus.
Dar-se-á que ela o veja logo
após a morte? A esse respeito, só as comunicações de além-túmulo nos podem
instruir. Por elas sabemos que a visão de Deus constitui privilégio das mais depuradas
almas e que bem poucas, ao deixarem o envoltório terrestre, se encontram no
grau de desmaterialização necessária a tal efeito. Algumas comparações vulgares
o tornarão facilmente compreensível.
Uma pessoa que se ache no fundo
de um vale, envolvido por densa bruma, não vê o Sol. Entretanto, pela luz difusa,
percebe que está fazendo sol. Se se dispõe a subir a montanha, à medida que for
ascendendo, o nevoeiro se irá tornando mais claro, a luz cada vez mais viva.
Contudo, ainda não verá o Sol. Quando começa a percebê-lo ainda está velado,
pois basta o mais leve vapor para enfraquecer o seu brilho. Só depois que se
haja elevado acima da camada brumosa e chegado a um ponto onde o ar esteja perfeitamente límpido, ela o contemplará
em todo o seu esplendor.
Dá-se outro tanto com aquele que
tivesse a cabeça envolta por vários véus. A princípio não vê absolutamente
nada; a cada véu que se retira, distingue um clarão cada vez mais nítido; apenas
quando desaparece o último véu é que percebe as coisas claramente.
Também se dá o mesmo com um
licor carregado de matérias estranhas; de começo fica turvo; a cada destilação
sua transparência aumenta até que, estando completamente depurado, adquire
perfeita limpidez e não apresenta nenhum obstáculo à visão.
Assim é com a alma. O envoltório
perispirítico, conquanto nos seja invisível e impalpável, é, com relação a ela,
verdadeira matéria, ainda grosseira demais para certas percepções.
Ele, porém, se espiritualiza, à
medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como véus
que obscurecem sua visão. Cada imperfeição de que ela se desfaz é um véu a
menos; todavia, só depois de se haver depurado completamente é que goza da
plenitude das suas faculdades.
Sendo Deus a essência divina por
excelência, unicamente os Espíritos que atingiram o mais alto grau de desmaterialização
o podem perceber em todo o seu esplendor. Pelo fato de não o verem, não se
segue que os Espíritos imperfeitos estejam mais
distantes dele do que os outros; esses Espíritos, como os demais, como
todos os seres da Natureza, se encontram mergulhados no fluido divino, do mesmo
modo que nós o estamos na luz; os cegos também estão mergulhados na luz e,
contudo, não a veem. As imperfeições são véus que ocultam Deus à visão dos Espíritos
inferiores. Quando o nevoeiro se dissipar, vê-lo-ão resplandecer. Para isso,
não lhes é preciso subir, nem procurá-lo nas profundezas do infinito.
Desimpedida a visão espiritual das belidas[3]
morais que a obscureciam, eles o verão de todo lugar onde se achem, mesmo da
Terra, porquanto Deus está em toda parte.
O Espírito só se depura com o
tempo, sendo as diversas encarnações o alambique em cujo fundo deixa de cada
vez algumas impurezas. Com o abandonar o seu invólucro corpóreo, os Espíritos
não se despojam instantaneamente de suas imperfeições, razão por que, depois da
morte, não veem a Deus mais do que o viam quando vivos; mas, à medida que se
depuram, têm dele uma intuição mais clara. Não o veem, mas compreendem-no
melhor; a luz é menos difusa. Quando, pois, alguns Espíritos dizem que Deus lhes
proíbe respondam a uma dada pergunta não é que Deus lhes apareça, ou dirija a
palavra, para lhes ordenar ou proibir isto ou aquilo, não; eles, porém, o
sentem; recebem os eflúvios do seu pensamento, como nos sucede com relação aos
Espíritos que nos envolvem em seus fluidos, embora não os vejamos.
Nenhum homem, conseguintemente,
pode ver a Deus com os olhos da carne. Se essa graça fosse concedida a alguns,
só o seria no estado de êxtase, quando a alma se acha tão desprendida dos laços
da matéria que torna possível o fato durante a encarnação. Tal privilégio,
aliás, exclusivamente pertenceria a almas de eleição, encarnadas em missão, que
não em expiação. Mas, como os Espíritos da mais elevada categoria refulgem de
ofuscante brilho, pode dar-se que Espíritos menos elevados, encarnados ou desencarnados,
maravilhados com o esplendor de que aqueles se mostram cercados, suponham estar
vendo o próprio Deus. É como quem vê um ministro e o toma pelo seu soberano.
Sob que aparência se apresenta
Deus aos que se tornaram dignos de vê-lo? Será sob uma forma qualquer? Sob uma figura
humana, ou como um foco de resplendente luz? A linguagem humana é impotente
para dizê-lo, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação capaz de
nos facultar uma ideia de tal coisa. Somos quais cegos de nascença a quem
procurassem inutilmente fazer compreendessem o brilho do Sol. A nossa linguagem
é limitada pelas nossas necessidades e pelo círculo das nossas ideias; a dos
selvagens não poderia descrever as maravilhas da civilização; a dos povos mais
civilizados é extremamente pobre para descrever os esplendores dos céus, a
nossa inteligência muito restrita para compreendê-los e a nossa vista, por
muito fraca, ficaria deslumbrada.
[1] N. do T.: Vide A Gênese, capítulo II, itens 31 a 37.
[2] Revista Espírita
– Maio/1866 – Allan Kardec
[3] Pano, cortina, máscara, véu.
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