quarta-feira, 22 de julho de 2020

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DOS FLUÍDOS ESPIRITUAIS[1]



Allan Kardec

I
Os fluidos espirituais representam importante papel em todos os fenômenos espíritas, ou melhor, são o princípio mesmo desses fenômenos. Até agora nos limitamos a dizer que tal efeito resultava de uma ação fluídica; mas esse dado geral, suficiente no início, deixa de o ser quando se quer pesquisar os detalhes.
Sabiamente os Espíritos limitaram seu ensinamento no princípio; mais tarde, chamaram a atenção para a grave questão dos fluidos, e não foi num centro único que a abordaram, mas praticamente em todos eles.
Mas os Espíritos não nos vêm trazer esta ciência, como nenhuma outra, já pronta; eles nos põem no caminho e nos fornecem os materiais, cabendo a nós estudá-los, observá-los, analisá-los, coordená-los e deles nos servirmos. Foi o que fizeram para a constituição da doutrina e agiram da mesma forma em relação aos fluidos. É do nosso conhecimento que em milhares de locais diversos eles esboçaram seu estudo; em toda parte encontramos alguns fatos, algumas explicações, uma teoria parcial, uma ideia; mas em parte alguma um trabalho completo de conjunto. Por que isto? Impossibilidade da parte deles? Não, certamente, pois o que teriam podido fazer como homens, com mais forte razão o poderão como Espíritos. Mas, como dissemos, é porque eles não vêm de modo algum nos libertar do trabalho da inteligência, sem o qual nossas forças, ficando inativas, se estiolariam; acharíamos mais cômodo que eles trabalhassem por nós.
Assim, o trabalho foi deixado ao homem; mas sendo limitados a sua inteligência, a sua vida e o seu tempo, a nenhum é dado elaborar tudo o que é necessário para a constituição de uma ciência. Eis por que não há uma só que seja, em todas as suas peças, obra de um só homem; nenhuma descoberta que o seu primeiro inventor tenha levado à perfeição. A cada edifício intelectual, vários homens e várias gerações trouxeram seu contingente de pesquisas e de observações.
Dá-se o mesmo com a questão que nos ocupa, cujas diversas partes foram tratadas separadamente, depois coligidas num corpo metódico, quando puderam ser reunidos materiais suficientes. Esta parte da ciência espírita mostra desde já que não é uma concepção sistemática individual, de um homem ou de um Espírito, mas o produto de múltiplas observações, que tiram sua autoridade da concordância existente entre elas.
Pelo motivo que acabamos de exprimir, não poderíamos pretender que esta seja a última palavra. Como temos dito, os Espíritos graduam os seus ensinos e os proporcionam à soma e à maturidade das ideias adquiridas. Assim, não se poderia duvidar que, mais tarde, eles pusessem novas observações no caminho; mas desde já há elementos suficientes para formar um corpo que, posteriormente e de modo gradual, será completado.
O encadeamento dos fatos nos obriga a tomar nosso ponto de partida de mais alto, a fim de proceder do conhecido para o desconhecido.

II
Tudo se liga na obra da Criação. Outrora se consideravam os três reinos como inteiramente independentes entre si, e teriam rido de quem pretendesse encontrar uma correlação entre o mineral e o vegetal, entre o vegetal e o animal.
Uma observação atenta fez desaparecer a solução de continuidade, provando que todos os corpos formam uma cadeia ininterrupta, de tal sorte que os três reinos não subsistem, na realidade, senão pelos caracteres gerais mais marcantes; mas nos seus limites respectivos eles se confundem, a ponto de se hesitar em saber onde termina um e começa o outro, e em qual deles certos seres devem ser colocados. Tais são, por exemplo, os zoófitos, ou animais-plantas, assim chamados porque contêm, ao mesmo tempo, elementos do animal e da planta.
Acontece a mesma coisa no que concerne à composição dos corpos. Durante muito tempo os quatro elementos serviram de base às ciências naturais; caíram diante das descobertas da química moderna, que reconheceu um número indeterminado de corpos simples. A Química nos mostra todos os corpos da Natureza formados desses elementos combinados em diversas proporções. É da infinita variedade dessas combinações que nascem as inumeráveis propriedades dos diferentes corpos. É assim, por exemplo, que uma molécula de gás oxigênio e duas de gás hidrogênio, combinadas, formam a água. Na sua transformação em água, o oxigênio e o hidrogênio perdem suas qualidades próprias; propriamente falando, não há mais oxigênio, nem hidrogênio, mas água. Decompondo a água, encontram-se novamente os dois gases, nas mesmas proporções. Se, em vez de uma molécula de oxigênio, houver duas, isto é, duas de cada gás, não será mais água, mas um líquido muito corrosivo. Bastou, pois, uma simples mudança na proporção de um dos elementos para transformar uma substância salutar numa substância venenosa. Por uma operação inversa, se os elementos de uma substância deletéria, o arsênico, por exemplo, forem simplesmente combinados em outras proporções, sem adição ou supressão de nenhuma outra substância, ela se tornará inofensiva, ou mesmo salutar. Há mais: várias moléculas reunidas, de um mesmo elemento, gozarão de propriedades diferentes, conforme o modo de agregação e as condições do meio em que se encontram. O ozônio, recentemente descoberto no ar atmosférico, é um exemplo. Reconheceu-se que essa substância mais não é que o oxigênio, um dos principais constituintes do ar, num estado particular que lhe dá propriedades distintas do oxigênio propriamente dito. O ar não deixa de ser formado por oxigênio e azoto, mas suas qualidades variam conforme contenha maior ou menor quantidade de oxigênio no estado de ozônio.
Estas observações, que parecem estranhas ao nosso assunto, não obstante a ele se ligam de maneira direta, como se verá mais tarde; elas são, além disso, essenciais como pontos de comparação.
Essas composições e decomposições se obtêm artificialmente e em pequena escala nos laboratórios, mas se operam em grande escala e espontaneamente no grande laboratório da Natureza. Sob a influência do calor, da luz, da eletricidade, da umidade, um corpo se decompõe, seus elementos se separam, outras combinações se operam e novos corpos se formam. Assim, a mesma molécula de oxigênio, por exemplo, que faz parte do nosso corpo, após a destruição deste entra na composição de um mineral, de uma planta ou de um corpo animado. Em nosso corpo atual acham-se, portanto, as mesmas parcelas de matéria, que foram partes constituintes de uma porção de outros corpos.
Citemos um exemplo para tornar a coisa mais clara.
Um pequeno grão é posto na terra, brota, cresce e torna-se uma grande árvore que, anualmente, dá folhas, flores e frutos. Quer dizer que esta árvore se achava inteirinha no grão?
Seguramente não, porque contém uma quantidade de matéria muito mais considerável. Donde, pois, lhe veio essa matéria? Dos líquidos, dos sais, dos gases que a planta extraiu da terra e do ar, que se infiltraram em seu caule e, pouco a pouco, lhe aumentaram o volume. Mas nem na terra nem no ar se encontram madeira, folhas, flores e frutos. É que esses mesmos líquidos, sais e gases, no ato de absorção, se decompuseram; seus elementos sofreram novas combinações, que os transformaram em seiva, lenho, casca, folhas, flores, frutos, essências voláteis etc. Essas mesmas partes, por sua vez, vão destruir-se, decompor-se; seus elementos, misturar-se de novo na terra e no ar; recompor as substâncias necessárias à frutificação; ser reabsorvidos, decompostos e, mais uma vez, transformados em seiva, lenho, casca etc. Numa palavra, a matéria não sofre aumento nem diminuição; transforma-se e, em consequência dessas transformações sucessivas, a proporção das diversas substâncias, em quantidade, é sempre suficiente para as necessidades da Natureza.
Suponhamos, por exemplo, que uma dada quantidade de água seja decomposta, no fenômeno da vegetação[2], para fornecer oxigênio e hidrogênio necessários à formação das diversas partes da planta; é uma quantidade de água que existe a menos na massa; mas essas partes da planta, quando de sua decomposição, vão liberar o oxigênio e o hidrogênio que elas encerravam, e esses gases, combinando-se entre si, vão reconstituir uma quantidade de água equivalente à que havia desaparecido.
Um fato que é oportuno assinalar aqui, é que o homem, que pode executar artificialmente as composições e decomposições que se operam espontaneamente na Natureza, é impotente para reconstituir o menor corpo organizado, ainda que fosse um pé de erva ou uma folha morta. Depois de ter decomposto um mineral, pode recompô-lo em todas as suas peças, tal qual era antes; mas quando separou os elementos de uma parcela de matéria vegetal ou animal, não pode reconstitui-la e, menos ainda, dar-lhe a vida. Seu poder se detém na matéria inerte: o princípio da vida está na mão de Deus.
A maioria dos corpos simples são chamados ponderáveis, porque lhes podemos medir o peso, e este está na razão da soma das moléculas contidas num dado volume. Outros são ditos imponderáveis, porque para nós não têm peso e, seja qual for a quantidade em que se acumulem em outro corpo, não lhe aumentam o peso. Tais são: o calórico[3], a luz, a eletricidade, o fluido magnético ou do ímã; este último não passa de uma variedade da eletricidade. Conquanto imponderáveis, nem por isso esses fluidos deixam de ter um grande poder. O calórico divide os corpos mais duros, os reduz a vapor e dá aos líquidos evaporados uma força de expansão irresistível. O choque elétrico quebra árvores e pedras, curva barras de ferro, funde os metais, atira ao longe enormes massas. O magnetismo dá ao ferro um poder de atração capaz de sustentar pesos consideráveis. A luz não possui esse gênero de força, mas exerce uma ação química sobre a maioria dos corpos; sob sua influência operam-se incessantemente composições e decomposições. Sem a luz, os vegetais e os animais se estiolam, os frutos não têm sabor nem coloração.

III
Todos os corpos da Natureza, minerais, vegetais, animais, animados ou inanimados, sólidos, líquidos ou gasosos, são, pois, formados dos mesmos elementos, combinados de maneira a produzir a infinita variedade dos diferentes corpos. Hoje a Ciência vai mais longe; suas investigações pouco a pouco a conduzem à grande lei da unidade. Agora é geralmente admitido que os corpos reputados simples não passam de modificações, de transformações de um elemento único, princípio universal designado sob os nomes de éter, fluido cósmico ou fluido universal, de tal sorte que, segundo o modo de agregação das moléculas desse fluido, e sob a influência de circunstâncias particulares, adquire propriedades especiais, que constituem os corpos simples; estes, combinados entre si em diversas proporções, formam, como dissemos, a inumerável variedade de corpos compostos. Segundo esta opinião, o calórico, a luz, a eletricidade e o magnetismo também não passariam de modificações do fluido primitivo universal. Assim esse fluido, que com toda probabilidade é imponderável, seria ao mesmo tempo o princípio dos fluidos imponderáveis e dos corpos ponderáveis.
A Química nos faz penetrar na constituição íntima dos corpos; mas, experimentalmente falando, não vai além dos corpos considerados simples; seus meios de análise são impotentes para isolar o elemento primitivo e determinar a sua essência. Ora, entre esse elemento em sua pureza absoluta e o ponto onde pára as investigações da Ciência, o intervalo é imenso. Raciocinando por analogia, chega-se à conclusão de que entre esses dois pontos extremos, esse fluido deve sofrer modificações que escapam aos nossos instrumentos e aos nossos materiais. É nesse campo novo, até aqui vedado à exploração, que vamos tentar penetrar.

IV
Até agora só se tinham ideias muito incompletas sobre o mundo espiritual ou invisível. Imaginavam-se os Espíritos como seres fora da Humanidade; os anjos também eram criaturas à parte, de uma natureza mais perfeita. Quanto ao estado das almas depois da morte, os conhecimentos não eram mais positivos. A opinião mais geral fazia deles seres abstratos, dispersos na imensidade e não tendo mais relações com os vivos, a não ser que estivessem, segundo a doutrina da Igreja, nas beatitudes do céu ou nas trevas do inferno. Além disso, como as observações da Ciência não vão além da matéria tangível, resulta um abismo entre o mundo corporal e o mundo espiritual, que parecia excluir toda comparação.
É este abismo que novas observações e o estudo de fenômenos ainda pouco conhecidos vêm encher, ao menos em parte.
O Espiritismo nos ensina, de saída, que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra; que progridem incessantemente, e que os anjos são essas mesmas almas ou Espíritos chegados a um estado de perfeição que os aproxima da Divindade.
Em segundo lugar, ensina-nos que as almas passam alternadamente do estado de encarnação ao de erraticidade; que neste último estado elas constituem a população invisível do globo, ao qual ficam ligadas até que tenham adquirido o desenvolvimento intelectual e moral que comporta a natureza deste globo, depois do que o deixam, passando a um mundo mais adiantado.
Pela morte do corpo, a Humanidade corporal fornece almas ou Espíritos ao mundo espiritual; pelos nascimentos, o mundo espiritual alimenta o mundo corporal; há, pois, transmutação incessante de um no outro. Esta relação constante os torna solidários, pois são os mesmos seres que entram no nosso mundo e que dele saem alternadamente. Eis um primeiro traço de união, um ponto de contato, que já diminui a distância que parecia separar o mundo visível do mundo invisível.
A natureza íntima da alma, isto é, do princípio inteligente, fonte do pensamento, escapa completamente às nossas investigações; mas agora se sabe que a alma é revestida de um envoltório ou corpo fluídico, que dela faz, depois da morte do corpo material, como antes, um ser distinto, circunscrito e individual. A alma é o princípio espiritual considerado isoladamente; é a força atuante e pensante, que não podemos conceber isolada da matéria senão como uma abstração. Revestida de seu envoltório fluídico, ou perispírito, a alma constitui o ser chamado Espírito, como quando está revestida do envoltório corporal, constitui o homem. Ora, se bem que no estado de Espírito goze de propriedades e de faculdades especiais, não deixou de pertencer à Humanidade. Os Espíritos são, pois, seres semelhantes a nós, já que cada um de nós se torna Espírito após a morte do corpo, e cada Espírito se torna homem pelo nascimento.
Esse envoltório não é a alma, pois não pensa: é apenas uma vestimenta; sem a alma, o perispírito, assim como o corpo, é uma matéria inerte privada de vida e de sensações. Dizemos matéria, porque, com efeito, o perispírito, embora de natureza etérea e sutil, não deixa de ser matéria, como os fluidos imponderáveis e, além disso, matéria da mesma natureza e da mesma origem que a mais grosseira matéria tangível, como logo veremos.
A alma não reveste o perispírito apenas no estado de Espírito; é inseparável desse envoltório, que a segue na encarnação, como na erraticidade. Na encarnação, é o laço que a une ao envoltório corporal, o intermediário com cujo auxílio age sobre os órgãos e percebe as sensações das coisas exteriores. Durante a vida, o fluido perispiritual identifica-se com o corpo, penetrando todas as suas partes; com a morte, dele se desprende; privado da vida o corpo se dissolve, mas o perispírito, sempre unido à alma, isto é, ao princípio vivificante, não perece; apenas a alma, em vez de dois envoltórios, conserva apenas um: o mais leve, o que está mais em harmonia com o seu estado espiritual.
Embora esses princípios sejam elementares para os espíritas, era útil lembrá-los para a compreensão das explicações subsequentes e a ligação das ideias.

V
Algumas pessoas contestaram a utilidade do envoltório perispiritual da alma e, em consequência, a sua existência. A alma, dizem, não precisa de intermediário para agir sobre o corpo; e, uma vez separada do corpo, é um acessório supérfluo.
A isto respondemos, primeiro, que o perispírito não é uma criação imaginária, uma hipótese inventada para chegar a uma solução; sua existência é um fato constatado pela observação.
Quanto à sua utilidade, quer durante a vida, quer depois da morte, é preciso admitir que, desde que existe, é que serve para alguma coisa. Os que lhe contestam a utilidade são como um indivíduo que, não compreendendo as funções de certas engrenagens num mecanismo, concluíssem que só servem para complicar desnecessariamente a máquina. Não vê que se a menor peça fosse suprimida, tudo seria desorganizado. Quantas coisas, no grande mecanismo da Natureza, parecem inúteis aos olhos do ignorante e, mesmo, de certos cientistas, que de boa-fé acreditam que se tivessem sido encarregados da construção do Universo, o teriam feito melhor!
O perispírito é uma das engrenagens mais importantes da economia. A Ciência o observou em alguns de seus efeitos e, sucessivamente, tem sido designado sob o nome de fluido vital, fluido ou influxo nervoso, fluido magnético, eletricidade animal etc., sem se dar conta precisa de sua natureza, de suas propriedades e, ainda menos, de sua origem. Como envoltório do Espírito após a morte, foi suspeitado desde a mais alta antiguidade. Todas as teogonias atribuem aos seres do mundo invisível um corpo fluídico. São Paulo diz em termos precisos que renascemos com um corpo espiritual (1a epístola aos Coríntios, 15:35 a 44 e 50).
Dá-se o mesmo com todas as grandes verdades baseadas nas leis da Natureza, e das quais, em todas as épocas, os homens de gênio tiveram a intuição. É assim que, desde antes de nossa era, hábeis filósofos tinham suspeitado a redondeza da Terra e seu movimento de rotação, o que nada tira ao mérito de Copérnico e de Galileu, sendo mesmo de presumir-se que estes últimos hajam aproveitado as ideias de seus predecessores. Graças a seus trabalhos, o que não passava de uma teoria individual, de uma teoria incompleta e sem provas, desconhecida das massas, tornou-se uma verdade científica, prática e popular.
A doutrina do perispírito está no mesmo caso; o Espiritismo não foi o primeiro a descobri-lo. Mas, assim como Copérnico para o movimento da Terra, ele o estudou, demonstrou, analisou, definiu e dele tirou fecundos resultados. Sem os estudos modernos mais completos, esta grande verdade, como muitas outras, ainda estaria no estado de letra morta.

VI
O perispírito é o traço de união que liga o mundo espiritual ao mundo corporal. O Espiritismo no-los mostra em relação tão íntima e tão constante, que de um ao outro a transição é quase insensível. Ora, assim como na Natureza o reino vegetal se liga ao reino animal por seres semivegetais e semianimais, o estado corporal se liga ao estado espiritual não só pelo princípio inteligente, que é o mesmo, mas ainda pelo envoltório fluídico, ao mesmo tempo semimaterial e semi-espiritual, desse mesmo princípio.
Durante a vida terrena, o ser corporal e o ser espiritual estão confundidos e agem em acordo; a morte do corpo apenas os separa. A ligação destes dois estados é tal, e eles reagem um sobre o outro com tanta força, que dia virá em que será reconhecido que o estudo da história natural do homem não poderia ser completo sem o estudo do envoltório perispiritual, isto é, sem pôr um pé no domínio do mundo invisível.
Esse paralelo é ainda maior quando se observa a origem, a natureza, a formação e as propriedades do perispírito, observação que decorre naturalmente do estudo dos fluidos.

VII
É sabido que todas as matérias animais têm como princípios constituintes o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono, combinados em diferentes proporções. Ora, como dissemos, esses mesmos corpos simples têm um princípio único, que é o fluido cósmico universal. Por suas diversas combinações eles formam todas as variedades de substâncias que compõem o corpo humano, o único de que aqui falamos, embora seja o mesmo em relação aos animais e às plantas. Disto resulta que o corpo humano não passa, na realidade, de uma espécie de concentração, de uma condensação ou, se quiserem, de uma solidificação do fluido universal, como o diamante é uma solidificação do gás carbônico. Com efeito, suponhamos a desagregação completa de todas as moléculas do corpo: recuperaremos o oxigênio, o hidrogênio, o azoto e o carbono; em outros termos, o corpo será volatilizado. Esses quatro elementos, voltando ao seu estado primitivo por uma nova e mais completa decomposição – se os nossos meios de análise o permitissem – dariam o fluido cósmico.
Sendo esse fluido o princípio de toda a matéria, ele mesmo é matéria, embora num completo estado de eterização.
Passa-se um fenômeno análogo na formação do corpo fluídico, ou perispírito: é, igualmente, uma condensação do fluido cósmico em torno de um foco de inteligência, ou alma. Mas aqui a transformação molecular se opera diferentemente, porque o fluido conserva sua imponderabilidade e suas qualidades etéreas. O corpo perispiritual e o corpo humano têm, pois, sua fonte no mesmo fluido; um e outro são matéria, conquanto em dois estados diferentes. Assim, tivemos razão de dizer que o perispírito é da mesma natureza e da mesma origem que a mais grosseira matéria.
Como se vê, nada há de sobrenatural, já que o perispírito se liga, por seu princípio, às coisas da Natureza, das quais não passa de uma variedade.
Sendo o fluido universal o princípio de todos os corpos da Natureza, animados e inanimados e, por conseguinte, da terra, das pedras, razão tinha Moisés quando disse: “Deus formou o corpo do homem do limo da terra”. Isto não quer dizer que Deus tomou terra, petrificou-a e com ela modelou o corpo do homem, como se modela uma estátua com argila e como acreditaram os que tomam as palavras bíblicas ao pé da letra; mas, sim, que o corpo era formado dos mesmos princípios ou elementos que o limo da terra.
Moisés acrescenta: “E lhe deu uma alma vivente, feita à sua semelhança.” Ele faz, assim, uma distinção entre a alma e o corpo; indica que ela é de natureza diferente, que não é matéria, mas espiritual e imaterial como Deus. Diz: uma alma vivente, para especificar que nela está o princípio da vida, ao passo que o corpo, formado da matéria, por si mesmo não vive. Estas palavras: à sua semelhança, implicam uma similitude e não uma identidade. Se Moisés houvesse considerado a alma como uma porção da Divindade, teria dito: Deus o anima dando-lhe uma alma tirada de sua própria substância, como disse que o corpo tinha sido tirado da terra.
Estas reflexões são uma resposta às pessoas que acusam o Espiritismo de materializar a alma, porque lhe dá um envoltório semimaterial.

VIII
No estado normal, o perispírito é invisível aos nossos olhos e impalpável ao nosso tato, como o são uma infinidade de fluidos e de gases. Entretanto, a invisibilidade, a impalpabilidade, e mesmo a imponderabilidade do fluido perispiritual não são absolutas; é por isso que dizemos no estado normal. Em certos casos é possível que ele sofra uma condensação maior, ou uma modificação molecular de natureza especial, que o torna momentaneamente visível ou tangível; é assim que se produzem as aparições. Sem que haja aparição, muitas pessoas sentem a impressão fluídica dos Espíritos pela sensação do tato, o que é indício de uma natureza material.
Seja qual for a maneira pela qual se opera a modificação atômica do fluido, não há coesão como nos corpos materiais; a aparência se forma e se dissipa instantaneamente, o que explica as aparições e as desaparições súbitas. Sendo as aparições o produto de um fluido material invisível, tornado visível em consequência de uma mudança momentânea na sua constituição molecular, não são mais sobrenaturais do que os vapores que, de modo alternado, fazem-se visíveis ou invisíveis pela condensação ou pela rarefação.
Citamos o vapor como ponto de comparação, sem pretender que haja similitude de causa e efeito.

IX
Algumas pessoas criticaram a qualificação de semimaterial dada ao perispírito, dizendo que uma coisa é matéria ou não o é. Admitindo que a expressão seja imprópria, seria preciso recorrer a ela, em falta de um termo especial para exprimir esse estado particular da matéria. Se existisse um mais apropriado à coisa, os críticos deveriam tê-lo indicado. Filosoficamente falando, e por sua essência íntima, o perispírito é matéria, como acabamos de ver; ninguém poderia contestá-lo. Mas não tem as propriedades da matéria tangível, tal como se a concebe vulgarmente; não pode ser submetido à análise química, porquanto, embora tenha o mesmo princípio que a carne e o mármore, na realidade nem é carne nem mármore. Por sua natureza etérea, pertence, ao mesmo tempo, à materialidade por sua substância, e à espiritualidade por sua impalpabilidade, de sorte que o vocábulo semimaterial não é mais ridículo que semiduplo e tantos outros, porque também se pode dizer que uma coisa é dupla ou não o é.

X
Como princípio elementar do Universo, o fluido cósmico assume dois estados distintos: o de eterização ou imponderabilidade, que se pode considerar o primitivo estado normal, e o de materialização ou ponderabilidade, que é, de certa maneira, consecutivo àquele. O ponto intermediário é o da transformação do fluido em matéria tangível. Mas, ainda aí, não há transição brusca, porquanto podem considerar-se os nossos fluidos imponderáveis como um termo médio entre os dois estados.
Cada um desses dois estados dá lugar, naturalmente, a fenômenos especiais: ao segundo pertencem os do mundo visível e ao primeiro os do mundo invisível. Uns, os chamados fenômenos materiais, são da alçada da Ciência propriamente dita; os outros, qualificados de fenômenos espirituais, porque se ligam à existência dos Espíritos, são da competência do Espiritismo. Mas há entre eles numerosos pontos de contato, que servem para mútuo esclarecimento e, como dissemos, o estudo de uns não poderia ser completo sem o estudo dos outros.
É à explicação desses últimos que conduz o estudo dos fluidos, de que faremos, ulteriormente, assunto para um trabalho especial.




[1] Revista Espírita – Março/1866 – Allan Kardec
[2] N. do T.: No original: phénomène de la végétation.
[3] N. do T.: Allan Kardec valia-se da teoria do calor, em voga no século XIX, segundo a qual o calórico seria o fluido responsável pelos fenômenos térmicos.

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