terça-feira, 23 de junho de 2020

NOVO E DEFINITIVO ENTERRO DO ESPIRITISMO[1]



Allan Kardec

Quantas vezes já disseram que o Espiritismo estava morto e enterrado! Quantos escritores já se gabaram de lhe haver dado o golpe de misericórdia, uns porque tinham dito palavrões temperados com sal grosso, outros porque haviam descoberto um charlatão enfarpelando-se com o nome de espírita, ou alguma imitação grosseira de um fenômeno! Sem falar de todos os sermões, pastorais e brochuras da mesma fonte, de onde o menor julgava ter lançado o raio, o aparecimento dos espectros nos teatros foi saudado com um hurra! Em toda a linha. “Temos o segredo desses espíritas”, diziam sem trégua os jornais, pequenos e grandes, desde Perpignan até Dunquerque; “jamais eles se erguerão dessa bordoada!” Os espectros passaram e o Espiritismo ficou de pé.
Depois vieram os irmãos Davenport[2], apóstolos e sumos sacerdotes do Espiritismo, que eles não conheciam e que nenhum espírita conhecia. Aí, ainda, o Sr. Robin teve a glória de salvar, pela segunda vez, a França e a Humanidade, tocando muito bem os negócios de seu teatro. A imprensa teceu coroas a esse corajoso defensor do bom-senso, a esse sábio que havia descoberto as astúcias do Espiritismo, como o Sr. Dr. Jobert (de Lamballe) tinha descoberto o segredo do músculo estalante. Contudo, os irmãos Davenport partiram sem as honras da guerra; o músculo estalante fez água e o Espiritismo vai sempre muito bem. Evidentemente isto prova uma coisa: é que ele não consiste nem nos espectros do Sr. Robin, nem nas cordas e nos tambores bascos dos Srs. Davenport, nem no músculo pequeno perônio[3]. É, pois, mais um golpe que falha. Mas desta vez, eis o bom, o verdadeiro, e é impossível que o Espiritismo se levante: são o Événement, o Opinion nationale e o Grande Journal que nos informam e o afirmam. Uma coisa muito estranha é que o Espiritismo se apraz em reproduzir todos os fatos que lhe opõem e que, segundo seus adversários, devem matá-lo. Se os julgasse muito perigosos, ele os calaria. Eis de que se trata:

O célebre ator inglês Sothem acaba de escrever a um jornal de Glasgow uma carta que dá o último golpe no Espiritismo. Esse jornal o censurava por atacar sem a menor consideração os irmãos Davenport e os adeptos das influências ocultas, depois de ele próprio ter dado sessões de Espiritismo na América, sob o nome de Sticart, que então era o seu pseudônimo de teatro. O Sr. Sothem confessa perfeitamente ter mostrado muitas vezes aos seus amigos que era capaz de executar todas as habilidades dos espíritas e mesmo ter feito proezas ainda mais maravilhosas; mas jamais suas experiências foram executadas fora de um pequeno círculo de amigos e conhecidos. Jamais fez que alguém pagasse um vintém qualquer; ele próprio cobria as despesas de suas experiências, depois das quais ele e os amigos se reuniam num alegre jantar.
Com o concurso de um americano muito ativo, obteve os mais curiosos resultados: aparição de fantasmas, ruído de instrumentos, assinaturas de Shakespeare, mãos invisíveis passando pelos cabelos dos espectadores e lhes aplicando tapas etc., etc.
O Sr. Sothem sempre disse que todas essas mágicas resultavam de combinações engenhosas, de habilidade e de astúcia, sem que os Espíritos do outro mundo nelas tomassem qualquer parte.
Em suma, o célebre artista declara que desafia os Hume, os Davenport e todos os espíritas do mundo, a fazerem alguma manifestação que ele não possa superar.
Ele jamais pretendeu fazer profissão de sua habilidade, mas apenas confundir os velhacos, que ultrajam a religião e roubam o dinheiro do público, fazendo-o crer que têm um poder sobrenatural, que mantêm relações com o outro mundo, que podem evocar as almas dos mortos. O Sr. Sothem não faz rodeios para dizer sua opinião; diz as coisas por seus nomes; chama um gato de gato e os Rollets... de vigaristas.”

Os Srs. Davenport tinham contra si duas coisas que os nossos adversários reconheceram: as exibições teatrais e a exploração. Crendo de boa-fé – pelo menos gostamos de assim pensar – que o Espiritismo consiste em malabarismos da parte dos Espíritos, os adversários esperavam que os espíritas fossem tomar partido por esses senhores; ficaram um pouco desapontados quando os viram, ao contrário, condenar esse gênero de manifestações como prejudicial aos princípios da doutrina, e demonstrar que é ilógico admitir que os Espíritos estejam a toda hora às ordens do primeiro que chegar querendo servir-se deles para ganhar dinheiro. Certos críticos até fizeram, de moto-próprio, valer este argumento contra os Srs. Davenport, sem suspeitar que defendiam a causa do Espiritismo. A ideia de pôr os Espíritos em cena e fazê-los servir de comparsas com vistas ao interesse, provocou um sentimento geral de aversão, quase de repulsa, mesmo nos incrédulos, que se disseram: “Não cremos nos Espíritos; mas se os há, não é em tais condições que devem mostrar-se; e devemos tratá-los com mais respeito.” Não acreditavam em Espíritos vindo a tanto por sessão e nisto tinham completa razão; donde se pode concluir que a exibição de coisas extraordinárias e a exploração são os piores meios de fazer prosélitos. Se o Espiritismo patrocinasse tais coisas, este seria o seu lado fraco; seus adversários o compreendem tão bem, que é sobre este que não perdem nenhuma ocasião de ferir, crendo atingir a doutrina. O Sr. Gérôme, do Univers illustré, respondendo ao Sr. Blanc de Lalésie (ver nossa Revista de dezembro), que o censurava por falar do que não conhecia, disse:

Praticamente estudei o Espiritismo com os irmãos Davenport, e isto me custou 15 francos. É verdade que os irmãos Davenport hoje trabalham a preços mais suaves: por 3 ou 5 francos pode-se ver suas farsas; preços de Robin, ainda bem!

O autor do artigo sobre a jovem cataléptica da Suábia[4], que não é espírita (vide o número de janeiro), tem o cuidado de ressaltar, como prova de confiança nesses fenômenos extraordinários, que os pais não pensam absolutamente em tirar partido das estranhas faculdades de sua filha.
A exploração da ideia espírita é, pois, um motivo de descrédito. Os espíritas condenam a especulação, e é por isto que se tem o cuidado de apresentar o ator Sothem como completamente desinteressado, na expectativa de torná-lo um argumento vitorioso. É sempre essa ideia que o Espiritismo só vive de fatos maravilhosos e de trapaças.
Que a crítica bata quanto queira nos abusos; que desmascare os truques e as astúcias dos charlatães. O Espiritismo, que não usa nenhum método secreto e cuja doutrina é toda moral, não poderá senão ganhar em se ver livre dos parasitas que dele fazem um degrau e dos que lhe desnaturam o caráter.
O Espiritismo teve como adversários homens de real valor, em saber e em inteligência, que contra ele empregaram, sem sucesso, todo um arsenal de argumentação. Vejamos se o ator Sothem terá mais êxito que os outros para enterrá-lo. Ele o estaria a muito tempo se tivesse repousado nos absurdos que lhe atribuem. Se, pois, depois de haver matado o charlatanismo e desacreditado as práticas ridículas, ele existe sempre, é que há nele algo de mais sério, que não foi possível atingir.




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1866 – Allan Kardec
[2] Vide IRMÃOS DAVENPORT, publicado neste blog em 10/12/2018
[3] Vide O MÚSCULO ESTALANTE, publicado neste blog em 16/06/2020.
[4] Vide A JOVEM CATALÉPTICA DA SUÁBIA, publicado neste blog em 09/06/2020.

Nenhum comentário:

Postar um comentário