terça-feira, 9 de junho de 2020

A Jovem Cataléptica da Suábia (Estudo Psicológico)[1]



Allan Kardec

Sob o título de Segunda Vista, vários jornais reproduziram o seguinte fato, entre outros o Patrie de 26 e o Evénement de 28 de novembro (1865):

Espera-se em Paris a chegada próxima de uma jovem, originária da Suábia, cujo estado mental apresenta fenômenos que deixam muito longe as trapaças dos irmãos Davenport e outros espíritas.
Com dezesseis anos e meio, Louise B... mora com seus pais, proprietários-cultivadores no lugar chamado Bondru (Seineet-Marne), onde se estabeleceram depois de haver deixado a Alemanha.
Em consequência de violento pesar, causado pela morte de sua irmã, Louise caiu num sono letárgico, que durou cinquenta e seis horas. Após esse lapso de tempo despertou, não para a vida real e normal, mas para uma existência estranha, que se resume nos fenômenos seguintes:

Louise perdeu subitamente a sua vivacidade e a sua alegria, embora sem sofrer, mas caindo numa espécie de beatitude, que se alia à mais profunda calma. Durante o dia inteiro fica imóvel numa cadeira, respondendo apenas por monossílabos às perguntas que lhe são feitas. Chegada a noite, cai num estado cataléptico, caracterizado pela rigidez dos membros e a fixidez do olhar.
Neste momento as faculdades e os sentidos da jovem adquirem uma sensibilidade e um alcance que ultrapassam os limites fixados ao poder humano. Não somente ela possui o dom da segunda vista, mas também o da segunda audição, isto é, ouve palavras proferidas perto de si, como as que são pronunciadas num local mais ou menos afastado, para o qual concentra sua atenção.
Nas mãos da cataléptica, cada objeto adquire para ela uma imagem dupla. Como todo mundo, tem o sentimento da forma e da aparência exterior do objeto; além disso, vê distintamente a representação de seu interior, isto é, o conjunto das propriedades que possui e os usos a que se destina na ordem da criação.
Num grande número de plantas, de amostras metálicas e mineralógicas, submetidas à sua inconsciente apreciação, assinalou virtudes latentes e inexploradas, que reportam o pensamento às descobertas dos alquimistas da Idade Média.
Louise experimenta efeito análogo em relação ao aspecto das pessoas com as quais entra em comunicação pelo contato das mãos. Ela as vê ao mesmo tempo tais quais são e tais quais foram em idade menos avançada. Os sinais de envelhecimento e de doença desaparecem aos seus olhos e, se alguém perdeu algum membro, para ela é como se ainda subsistisse.
A jovem camponesa pretende que, protegida contra todas as modificações da ação vital exterior, a forma corporal continua integralmente reproduzida pelo fluido nervoso.
Transportada a lugares onde se acham túmulos, Louise vê e descreve da maneira que acabamos de referir, as pessoas cujos despojos foram confiados à terra. Então sofre espasmos e crises nervosas, do mesmo modo que quando se aproxima dos locais onde existem água e metais, seja qual for a profundidade do solo em que se encontrem.
Quando a jovem Louise passa da vida ordinária a esse modo de vida, que se pode chamar superior, parece que um espesso véu cai de seus olhos.
Para ela a Criação, explicada de maneira nova, representa objeto de inexaurível admiração e, embora iletrada encontra, para exprimir seu entusiasmo, comparações e imagens verdadeiramente poéticas.
Nenhuma preocupação religiosa se mistura a essas impressões. Os pais, longe de achar nesses fenômenos insólitos motivo de especulação, ocultam-nos com o maior cuidado. Se se decidem a trazer, sem ruído, a mocinha a Paris, é porque essa superexcitação constante do sistema nervoso exerce sobre seus órgãos uma influência destrutiva e ela definha a olhos vistos. Os médicos que dela cuidam opinaram que a levassem à capital, tanto para reclamar o auxílio dos mestres na arte de curar, quanto para submeter à Ciência fatos que escapam da esfera ordinária de suas investigações, e cuja explicação ainda não foi encontrada.

Diz o autor do artigo que os fenômenos apresentados por essa jovem deixam muito longe as trapaças dos irmãos Davenport e outros espíritas. Se esses fenômenos são reais, que relações podem ter com malabarismos? Por que essa comparação entre coisas desiguais, e dizer que uma ultrapassa a outra? Com intenção de lançar uma pequena maldade contra o Espiritismo, o autor anuncia, sem o querer, uma grande verdade, em apoio do que quer denegrir; proclama um fato essencialmente espírita, que o Espiritismo reconhece e aceita como tal, ao passo que jamais tomou os Srs. Davenport sob seu patrocínio e, ainda menos, os apresentou como adeptos e apóstolos. É o que esses senhores jornalistas saberiam, se tivessem levado em conta os inúmeros protestos que lhes chegaram de toda parte contra a assimilação que pretenderam estabelecer entre uma doutrina essencialmente moral e filosófica e exibições teatrais.
A explicação desse fenômeno, dizem, ainda não foi dada pela ciência oficial; isto é certo. Mas, para a ciência espírita, há muito tempo isto não é mais mistério. Contudo, não faltam meios de esclarecer. Os casos de catalepsia, de dupla vista e de sonambulismo natural, com as estranhas faculdades que se desenvolvem nesses diversos estados, não são raros. Por que a Ciência ainda está à procura de sua explicação? É que a Ciência se obstina em buscá-la onde não está, onde jamais a encontrará: nas propriedades da matéria.
Eis um homem que vive: pensa, raciocina; um segundo depois morre; não dá mais nenhum sinal de inteligência. Então havia nele, enquanto pensava, algo que já não existe, pois não pensa mais. O que pensava nele? Dizeis que é a matéria. Mas a matéria continua sempre lá, intacta, sem uma parcela a menos. Por que, então, pensava há poucos instantes e agora não pensa mais? – É porque está desorganizada; sem dúvida as moléculas se desagregaram; talvez se tenha rompido uma fibra; um nada se desarranjou e o movimento intelectual parou. – Eis assim o gênio, as maiores concepções humanas à mercê de uma fibra, de um átomo imperceptível, e perdidos os esforços de toda uma vida de labor! De todo esse mobiliário intelectual, adquirido a duras penas, nada resta; a mais vasta inteligência não passa de pêndulo bem montado que, uma vez deslocado, só serve como ferro velho!
É pouco lógico e pouco encorajador; com tal perspectiva, sem dúvida seria melhor cuidar apenas de comer e beber. Mas, enfim, é um sistema.
Segundo vós, a alma é apenas uma hipótese. Mas essa hipótese não se torna realidade em casos análogos ao da jovem em questão? Aqui a alma se mostra a descoberto; não a percebeis, mas a vedes pensar e agir isoladamente do envoltório material; transporta-se para longe; vê e ouve, apesar do estado de insensibilidade dos órgãos. Pode-se explicar só pelos órgãos fenômenos que se passam fora de sua esfera de ação? E nisto não está a prova da independência da alma? Como, pois, não reconhecê-la por sinais tão evidentes? É que, para isto, seria preciso admitir a intervenção da alma nos fenômenos patológicos e fisiológicos, que, assim, deixariam de ser exclusivamente materiais. Ora, como reconhecer um elemento espiritual nos fenômenos da vida, quando, constantemente, se tem dito o contrário? É o que não podem decidir, pois seria preciso admitir que se haviam enganado; e é duro, para certos amores-próprios, receberem um desmentido da própria alma que negaram. Assim, desde que ela se mostra em qualquer parte com muita evidência, logo se apressam em cobri-la com um alqueire e não se ouve mais falar no assunto. Assim sucedeu com o hipnotismo e tantas outras coisas. Queira Deus que assim não aconteça com Louise B... Para liquidar a questão, dizem que esses fenômenos são ilusões, e que seus promotores são loucos ou charlatães.
Tais são as razões que fizeram negligenciar o estudo tão interessante e tão fecundo em resultados morais dos fenômenos psico-fisiológicos; tal é, também, a causa da repulsa do materialismo pelo Espiritismo, que repousa inteiramente nas manifestações ostensivas da alma, durante a vida e depois da morte.
Mas, dirão, o partido religioso, fustigado pelo materialismo, deve acolher com ardor os fenômenos que vêm derrubar a incredulidade pela evidência. Por que, então, em vez de transformá-los em arma, os repele? É que a alma é uma indiscreta, que vem apresentar-se em condições muito diversas do estado em que no-la mostram, e sobre o qual construíram todo um sistema; teriam de voltar a crenças que dizem imutáveis; depois ela vê bem claro; assim, era preciso interditar-lhe a palavra. Mas não contaram com a sua sutileza: ela não pode ser encerrada como um pássaro numa gaiola; se lhe fecham uma porta, ela abre mil outras. Hoje ela se faz ouvir em toda parte, para dizer de um a outro extremo do mundo: eis o que somos. Muito hábeis serão os que a impedirem.
Voltemos ao nosso assunto. A jovem em questão oferece o fenômeno, muito comum em casos semelhantes, da extensão das faculdades. Essa extensão, diz o artigo, atinge um alcance que ultrapassa os limites fixados ao poder humano.
Deve-se distinguir aqui duas ordens de faculdades: as faculdades perceptivas, isto é, a visão e a audição, e as faculdades intelectuais.
As primeiras são postas em atividade pelos agentes exteriores, cuja ação repercute no interior; as segundas constituem o pensamento que irradia do interior para o exterior. Inicialmente falemos das primeiras.
No estado normal, a alma percebe por intermédio dos sentidos. Aqui a jovem percebe o que está fora do alcance da vista e do ouvido; vê no interior das coisas, penetra os corpos opacos, descreve o que se passa longe; portanto, vê de outro modo que não pelos olhos e ouve de outra forma que não pelo ouvido, e isto num estado em que o organismo é acometido de insensibilidade. Se se tratasse de um fato único, excepcional, poder-se-ia atribui-lo a um capricho da Natureza, a uma espécie de monstruosidade; mas é muito comum. Mostra-se de maneira independente, embora em graus diferentes, na maior parte dos casos de catalepsia, na letargia, no sonambulismo natural e artificial, e mesmo em numerosos indivíduos que têm todas as aparências de estado normal. Produz-se, pois, em virtude de uma lei. Como a Ciência, que leva suas investigações ao movimento de atração do mais insignificante grão de poeira, tenha negligenciado um fato tão capital?
O desenvolvimento das faculdades intelectuais é ainda mais extraordinário. Eis uma jovem, uma camponesa analfabeta, que não só se exprime com elegância, com poesia, mas em quem se revelam conhecimentos científicos sobre coisas que não aprendeu e – circunstância não menos singular – isto ocorre num estado particular, ao sair do qual tudo é esquecido: volta a ser tão ignorante quanto antes. Entrando no estado extático, a lembrança lhe volta com as mesmas faculdades e os mesmos conhecimentos; para ela são duas existências distintas.
Se, conforme a escola materialista, são produto direto dos órgãos; se, para nos servirmos da expressão desta escola, “o cérebro secreta o pensamento, como o fígado secreta a bile”, então também secreta conhecimentos acabados, sem o concurso de um professor. É uma propriedade que ainda não se conhecia nesse órgão. Nessa mesma hipótese, como explicar esse desenvolvimento intelectual extraordinário, essas faculdades transcendentes, alternadamente possuídas, perdidas e recobradas quase instantaneamente, enquanto o cérebro é sempre o mesmo? Não está aí a prova patente da dualidade do homem, da separação do princípio material e do princípio espiritual?
Aí, nada ainda de excepcional: esse fenômeno é tão comum quanto o da extensão da visão e da audição. Como este último, depende, pois, de uma lei. São essas leis que o Espiritismo procurou e a observação lhe deu a conhecer.
A alma é o ser inteligente; nela está a sede de todas as percepções e de todas as sensações; ela sente e pensa por si mesma; é individual, distinta, perfectível, preexistente e sobrevivente ao corpo. O corpo é o seu invólucro material: é o instrumento de suas relações com o mundo visível. Durante sua união com o corpo, ela percebe por meio dos sentidos, transmite seu pensamento com a ajuda do cérebro; separada do corpo, percebe diretamente e pensa mais livremente. Tendo os sentidos um alcance circunscrito, as percepções recebidas por seu intermédio são limitadas e, de certo modo, amortecidas; recebidas sem intermediário, são indefinidas e de uma sutileza surpreendente, porque ultrapassa, não a força humana, mas todos os produtos de nossos meios materiais. Pela mesma razão, o pensamento transmitido pelo cérebro se peneira, a bem dizer, através desse órgão. A grosseria e os defeitos do instrumento a paralisam e em parte a abafam, como certos corpos transparentes absorvem uma parte da luz que os atravessa.
Obrigada a servir-se do cérebro, a alma é como um músico muito bom, diante de um instrumento imperfeito. Livre desse incômodo auxiliar, desdobra todas as suas faculdades.
Tal é a alma durante a vida e depois da morte. Para ela há, portanto, dois estados: o de encarnação ou de constrangimento, e o de desencarnação ou de liberdade; em outras palavras: o da vida corporal e o da vida espiritual. A vida espiritual é a vida normal, permanente da alma; a vida corporal é transitória e passageira.
Durante a vida corporal, a alma não sofre constantemente o constrangimento do corpo, e aí está a chave dos fenômenos físicos, que só nos parecem estranhos porque nos transportam para fora da esfera habitual de nossas observações.
Qualificaram-nos de sobrenaturais, embora, na realidade, estejam submetidos a leis perfeitamente naturais, porque essas leis nos eram desconhecidas. Hoje, graças ao Espiritismo, que deu a conhecer essas leis, desapareceu o maravilhoso.
Durante a vida exterior de relação, o corpo necessita de sua alma ou Espírito por guia, a fim de dirigi-lo no mundo; mas nos momentos de inatividade do corpo, a presença da alma não é mais necessária; dele se desprende, sem, contudo, deixar de a ele se prender por um laço fluídico, que a ele o chama, tão logo se fizer necessária a sua presença. Nesses momentos recobra parcialmente a liberdade de agir e de pensar, da qual só desfrutará completamente depois da morte do corpo, quando deste estará completamente separada. Esta situação foi espiritualmente e muito veridicamente descrita pelo Espírito de uma pessoa viva, que se comparava a um balão cativo, e por um outro, o Espírito de um idiota vivo, que dizia ser como um pássaro, amarrado pela pata. (Revista Espírita, junho de 1860).
Esse estado, que chamamos emancipação da alma, ocorre normalmente e periodicamente durante o sono. Só o corpo repousa para recuperar as perdas materiais; mas o Espírito, que nada perdeu, aproveita essa pequena trégua para se transportar para onde queira. Além disso, tal estado também ocorre toda vez que uma causa patológica, ou simplesmente fisiológica, produz a inatividade total ou parcial dos órgãos da sensação e da locomoção. É o que se passa na catalepsia, na letargia, no sonambulismo. O desprendimento ou, se se quiser, a liberdade da alma, é tanto maior quanto mais absoluta a inércia do corpo. É por essa razão que o fenômeno adquire seu maior desenvolvimento na catalepsia e na letargia. Nesse estado, a alma não percebe mais pelos sentidos materiais, mas, se assim nos podemos exprimir, pelo sentido psíquico; é por isso que suas percepções ultrapassam os limites ordinários; seu pensamento age sem a intercessão do cérebro, razão por que desdobra faculdades mais transcendentes que no estado normal. Tal é a situação da jovem B...; também ela diz, e com razão, que “quando passa da vida ordinária a esse modo de vida superior, parece-lhe que um espesso véu cai de seus olhos”. Tal é, também, a causa do fenômeno da segunda vista, que não é senão a visão direta pela alma; da visão a distância, que resulta do transporte da alma ao lugar que ela descreve; da lucidez sonambúlica etc.
“Quando Louise B... vê pessoas vivas, os sinais de envelhecimento desaparecem, e se alguém perdeu algum membro, para ela é como se ainda subsistisse; a forma corporal continua integralmente reproduzida pelo fluido nervoso”. Se ela visse simplesmente o corpo, vê-lo-ia tal qual é; o que ela vê é o envoltório fluídico; o corpo material pode ser amputado: o perispírito não o é; o que aqui se designa por fluido nervoso não é senão o fluido perispiritual.
Ela vê também os que estão mortos; então lhes resta alguma coisa. Que vê ela? Não pode ser o corpo, que não mais existe; no entanto, os vê com uma forma humana, a que possuíam em vida. O que ela vê é a alma, revestida de seu corpo fluídico ou perispírito. Portanto, as almas sobrevivem ao corpo e, assim, não são seres abstratos, centelhas, chamas, sopros perdidos na imensidade do reservatório comum, mas seres reais, distintos, circunscritos, individuais. Se tanto vê os mortos como os vivos, é porque os vivos têm, como os mortos, o mesmo corpo fluídico imperecível, ao passo que o grosseiro envoltório material se dissolve com a morte. Ela não vê almas perdidas nas profundezas infinitas do espaço, mas em meio a nós, o que prova a existência do mundo invisível que nos rodeia, e em cujo meio vivemos sem o suspeitar.
Tais revelações não levam a refletir seriamente? Quem pôde dar tais ideias a essa moça? A leitura de obras espíritas? Mas ela não sabe ler. A convivência com os espíritas? Ela nunca ouviu falar deles. É, pois, espontaneamente que ela descreve todas essas coisas. É produto de sua imaginação? Mas ela não é a única: milhares de videntes disseram e dizem a mesma coisa todos os dias, o que a Ciência nem desconfia. Ora, é desse concurso universal de observações que o Espiritismo deduziu a teoria.
Em vão a Ciência buscará a solução desses fenômenos, enquanto fizer abstração do elemento espiritual, pois aqui está a chave de todos esses pretensos mistérios. Que ela admita, ainda que a título de hipótese, e tudo se explicará sem dificuldade.
Observações desta natureza, sobre pacientes como Louise B..., exigem muito tato e prudência. Não se deve perder de vista que, nesse estado de excessiva susceptibilidade, a menor comoção pode ser funesta; a alma, feliz por estar desprendida do corpo, a este se prende apenas por um fio, que um nada pode romper para sempre. Em casos semelhantes, experiências feitas sem cautela podem matar.




[1] Revista Espírita – Janeiro/1866 – Allan Kardec

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